|
Bio-bibliografia
Ensaio & Crítica
|
|
uma loucura que não deu muito certo no Brasil Lista de adeptos do movimento em nossa prosa cabe numa nota de rodapé O peixe solúvel, le poisson soluble: lá está ele, em fibra de vidro e isopor, todo rosa e medindo 12 m de comprimento, bem mais lourd que soluble (pesa 180 quilos), suspenso sob a rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio. Pintado em cada vidraça, aquele céu anil algodoado de cúmulos como só Magritte sabia fazer. Impressas sobre as imaginárias escamas do poisson, uma palavra com passaporte em todas as línguas: SURREALISMO. Enquanto durar a exposição que o CCBB inaugura na segunda-feira, o símbolo oficial do movimento surrealista lá permanecerá dependurado, para nos lembrar de pelo menos duas coisas: da dissolução da lógica, do realismo e da razão, proposta pelo surrealismo, e da paradoxal, e por certo inconsciente, ligação do surrealismo com o cristianismo, que nos seus primórdios fez do peixe sua senha gráfica. Paradoxal porque qualquer surrealista que se preza abomina o catolicismo e, por extensão, toda e qualquer crença religiosa, a não ser a sua própria, criada e pontificada por André Breton. Quem viu L'Âge d'Or, de Buñuel, sabe até onde pode ir o anticlericalismo surrealista. Não obstante, dois dos mais notórios apóstolos do surrealismo no Brasil, Ismael Nery e Murilo Mendes, não só acreditavam em Deus como iam à missa aos domingos - onde vez por outra comungavam ao lado de um e outro comunista, pois não há limites para o absurdo neste País irremediavelmente surreal. De qualquer modo, nosso maior pensador católico, Alceu Amoroso Lima, nem esperou a tinta do primeiro manifesto de Breton secar direito para excomungá-lo. Em junho de 1925, escandalizado com seu culto ao automatismo, ao escrever sem pensar, instintivo, maquinal, dr. Alceu acusou o supra-realismo (sic) de valer-se de uma falsa interpretação da psicanálise e abolir valores essenciais como a lógica, a consciência, a lucidez e a inteligência, escravizando "o homem ao animal que habita em nós", em detrimento da razão e da "espiritualidade superior". Não o tinha na conta de "uma simples expressão de cabotinismo" ou "efêmera ambição de um revoltado, de um original, de um segregado", mas de algo muito mais ambicioso, por isso mesmo "mais grave". Para ele, contudo, as perigosas afetações do supra-realismo só chegariam a estas plagas dali a 25 anos. Fizera seus cálculos com base no tempo que o cubismo levara para amealhar "servis imitadores" nos "salões das bas-bleus paulistanas". O contágio, porém, deu-se em outra velocidade. Já num quadro de Tarsila do Amaral de 1925, O Vendedor de Frutas, havia traços da influência surrealista, que se tornariam ainda mais visíveis no larvar Urutu, pintado três anos depois. Se Tarsila chegou ao surrealismo através do douanier Rousseau, Cícero Dias o faria através de Chagall, pouco tempo depois, em líricas aquarelas com mulheres que nadam e sonhos que levitam ou voam. Porque passou quase a metade dos anos 20 em Paris - onde, dizia, fez seu "serviço militar no cubismo" (na verdade, já um pós-cubismo) -,Tarsila viu o surrealismo nascer, ao passo que Dias precisou esperar até 1937 para estabelecer contato direito com os mestres que o haviam influenciado. Àquela altura, nosso maior surrealista, Ismael Nery, já estava morto fazia três anos. Também chagalliano, mais cosmopolita do que Dias e com outras influências (De Chirico, Cocteau), Nery foi o pintor maldito do modernismo, um pigmentador de angústias, pesadelos, náuseas, convulsões e vísceras espirituais. Fraternal amigo do poeta e artista plástico Murilo Mendes, a quem influenciou com o seu "essencialismo" e converteu ao catolicismo, morreu cedo, com a idade do século. Apesar de sua fé, Nery preferiu o inferno, liberando o céu para Guignard. Sim, Guignard foi outro em cuja obra o surrealismo deixou marcas difusas. Até o Portinari de 1940 (Paisagem de Brodosqui e Os Espantalhos) rendeu-se a um onirismo de perfil dalinesco. Vivendo em Paris desde 1923, Di Cavalcanti tampouco escapou do sarampão surrealista, que também afetou, visivelmente, Santa Rosa, Djanira, Reynaldo Fonseca e, sobretudo, a escultora Maria Martins, que radicalizou tanto sua comunhão com os ismos vanguardistas do começo do século passado, que acabou tendo um caso com Marcel Duchamp. De todos os ismos que as vanguardas européias despejaram no mercado das idéias, há pouco menos de cem anos, o surrealismo pode não ter sido o que mais rápida e proficuamente entre nós se difundiu (nossos modernistas fecharam com o futurismo e o cubismo), mas foi o que mais tempo permaneceu em circulação, aqui e lá fora, e maior popularidade conquistou, a despeito das pressões dos comunistas ortodoxos, que consideravam o antistalinista Breton uma espécie de Trotski do espírito. Não sem bons motivos. Breton idolatrava Trotski e até o visitou em seu exílio mexicano, em 1938, quando juntos redigiram e firmaram um manifesto em prol de uma arte revolucionária e independente. Independente, acima de tudo, do realismo socialista totemizado pelo reacionarismo stalinista. De início, os surrealistas formavam um grupo minúsculo, que freqüentava o Café de Flore, no Quartier Latin de Paris, onde às quartas-feiras Apollinaire batia ponto religiosamente. Breton morou algum tempo no hotel des Grands Hommes, sustentado pelos pais que o acreditavam queimando as pestanas em livros de medicina. Com sua cotérie, passava as tardes ora examinando quadros de De Chirico e Picasso, ora deleitando-se com cartas de tarô ou com os desafios do jogo da verdade. Discutia-se a valer, sobretudo Robert Desnos com Roger Vitrac, que se odiavam mutuamente. Nem todos conseguiram manter a sanidade através do humor (ou da "alegria pânica", para usar uma expressão bretoniana), talvez a mais preciosa arma dos surrealistas. Daí a freqüência com que alguns deles, em mais um gesto que os aproximava dos românticos, davam cabo da vida. Jacques Vaché foi o primeiro a sucumbir à tristeza pânica. Em 1929, chegou a vez de Jacques Rigaut. René Crével só esperou até 1935. Louis Morin preparava uma tese sobre Crével quando, em 1967, resolveu fechar para balanço, aos 28 anos. "Em vez de destruir para construir, construía para destruir". Assim Jean-Paul Sartre sintetizou sua crítica ao surrealismo. Albert Camus não foi menos implacável. Embora, como Sartre, simpatizasse com o caráter libertário do movimento, condenou-lhe o "niilismo cheio de contradições". Apesar das brigas e dos suicídios, a onda surrealista foi crescendo além fronteiras. Na década de 30, grupos, exposições e revistas despontaram na Bélgica, Inglaterra, Espanha, Checoslováquia, Dinamarca; até no Japão e em Madagascar. E não mais cessou de ter um simpatizante (Buñuel, Dali, Jacques Prévert, Julien Gracq, Samuel Beckett, Eugene Ionesco) sob o spot da notoriedade. Portugal teve pelo menos três afamados poetas surrealistas: Herberto Helder, Mario Cesarini e Alexandre O'Neil. Na América Latina, o movimento também deixou raízes, com notável impacto no México (Alvarez Bravo, Carlos Mérida, Octavio Paz), no Chile (Matt Echaurri, Braulio Arenas, Jorge Cáceres, Enrique Gonzáles Correa), na Argentina (Enrique Molina, Julio Llinás, Aldo Pellegrini), em Cuba (Wilfredo Lam) e no Peru (César Moro). Sempre agitado por cisões e defecções, o surrealismo atravessou cinco décadas nas costas de seu sumo pontífice, mantendo razoavelmente intocada a maioria de seus dogmas, ritos e idiossincrasias. Nem com a morte de Breton, em 1966, o movimento definhou e desapareceu. Até hoje vemos ou lemos coisas que, de tão espantosas, qualificamos automaticamente de surrealistas. Nem sempre o são, no sentido estrito da palavra, mas o adjetivo lhes cai à perfeição. Seus feitos continuam sendo celebrados, mundo afora, em simpósios e exposições. Nos três últimos meses do ano passado, a nova Tate de Londres botou gente pelo ladrão com uma mostra, Desire Unbound (Desejo Solto), dedicada às relações de Dalí, Magritte, Max Ernst, Duchamp e De Chirico com a psicanálise, que a partir de janeiro estará no MoMA de Nova York. Em novembro de 1985, paulistas e cariocas assistiram a uma Semana Surrealista, com mostras, conferências, debates e o lançamento simultâneo de três livros: os Manifestos do Surrealismo, de Breton; Amor Sublime, de Benjamin Péret; e Por Uma Arte Revolucionária Independente, de Breton e Trotski. Todos ou quase todos os surrealistas e trotskistas históricos daqui já não habitavam o mundo dos vivos, mas os poetas Claudio Willer, Roberto Piva e Sérgio Lima fizeram as honras de casa e do movimento. Sim, ainda havia surrealistas (e trotskistas) no Brasil década e meia atrás. Poucos, como sempre foram, mas ativos. E quase todos poetas, herança deixada por Murilo Mendes e seus versos repletos de homens alados e anjos com dentes de pérolas e lábios de coral, olhos dotados de pernas, estátuas que mudam de camisa em praças desertas e ventos em ré menor. O poeta Jorge de Lima foi mais surrealista em seus romances, assombrados por sonhos e alegorias, mas não criou discípulos nessa área, de resto pouco fertilizada pelas idéias de Breton. A influência do surrealismo em nossa prosa talvez caiba todinha numa nota de rodapé: os primeiros contos de Breno Accioly, Murilo Rubião, Campos de Carvalho, quem mais? Se incluídos os praticantes do realismo mágico, a nota aumenta de tamanho, nela cabendo até um comunista, Dias Gomes, que nunca apoiou Trotski, muito pelo contrário. Mário de Andrade ameaçou aderir, flertou um pouquinho, mas afinal saiu pra outra. É só ler O Turista Aprendiz. As notas que tomou durante suas viagens ao Norte e ao Nordeste, entre 1927 e 1928, denotam um modo surrealista de encarar a realidade. Mas um surrealismo sui generis, tapuia, quiçá antropófago, sem os intelectualismos e as aflições do original francês, um olhar mais lírico, telúrico e um tanto ou quanto malicioso, como se pode notar nesta visão-transfiguração da cidade amazonense de Itacoatiara: "Vista em sonhos. É a mais linda cidade do mundo, só vendo. Tem setecentos palácios triangulares feitos com um granito muito macio e felpudo, com uma porta de mármore vermelho. As ruas são todas líquidas, e o modo de condução habitual é o peixe-boi e, pras mulheres, o boto. Enxerguei logo um bando de moças lindíssimas, de encarnado, montadas em botos que as conduziam rapidamente para os palácios, onde elas me convidavam para entrar em salas frias, com redes de ouro e prata para descansar ondulando..." O papa do surrealismo foi só até o México, mas um de seus cardeais, Benjamin Péret, passou entre nós duas temporadas (1929-1931 e 1955-1956) e daqui foi embora com o título de "antropófago honorário", deixando um filho brasileiro (dele e Elsie Houston), que faria carreira como piloto de aviação. Costas amplas, peito largo, nariz adunco de rapina, compassivo, porém extremamente polêmico e rabugento - foi assim que a figura de Péret ficou gravada na memória do jornalista Cláudio Abramo, que muito o paparicou, na companhia dos trotskistas Mário Pedrosa e Lívio Xavier. Durante o segundo séjour do poeta, é claro. Abramo ainda não tinha idade para freqüentar as rodas em que Péret aqui circulou da primeira vez, mas já estava crescido o bastante para ouvir e guardar na lembrança o episódio mais pitoresco e surrealista que o poeta viveu, ou melhor dito, encenou nestas bandas, quando pegou um bonde, sentou-se ao lado de um padre e, subitamente, levantou-se aos gritos, fazendo gestos e apontando para o sacerdote, dando a entender que ele lhe teria feito alguma proposta indecorosa. O padre quase morreu de susto e vergonha com a brincadeira
pânica. E é bastante provável que o dr. Alceu tenha
ficado ainda mais indignado com os supra-realistas.
O Estado de São Paulo, Caderno 2, 18.08.2001 |
|
|