Jorge de Sena


Declaração

Sinto que vou voltar-me para Ti, Para Ti — como te descrevem e não há que fugir, não como te penso. Mesmo o que eu sinto é que, mais tarde ou mais cedo, cairei rendido. Contudo sei que vou acreditar e esquecer o resto porque é lógico, tão lógico!, tão claro que enraivece e cansa e desconsola... Ah eu bem conheço que não somos racionais, mas sempre somos nós e sermo-nos é o haver mistérios na alma e no mundo e o não haver necessidade de mistérios em Ti. Contudo sei que um dia cairei rendido e hei de acreditar nos dogmas e nessa crença encontrarei a alegria de quem contempla paredes verdadeiras só do seu lado, encontrarei uma alegria de sedução poética ... Sei também que hei de acabar por ter piedade dos que não acreditarem e que hei de deixar de compreender o mundo uma maneira de sentir de cada um, para primeiro sinceramente o considerar maneira vaga de Tu seres, de Tu te revelares, e depois me esquecer de tudo e ir ajoelhar diante dos teus altares com crepitações mansas de felicidade e achando poucas todas as velas e flores para o trono em que estarás por dentro dos meus olhos. Sei que hei de repetir inefavelmente as orações e todos esses requerimentos divinos em que há um espaço para o meu nome; sei que me hei de entregar a quanto dizem a Teu respeito e que a minha alma passará a ser minha e de quem a pesquisar e dormirá tranqüila; sei que hei de beijar a mão aos íntimos dos teus símbolos e que os hei de ouvir como se tivesses bocas terrenas, ah sei que hei de ter preferência por uma ou outra das formas que dão a Tua Mãe, sei que hei de olhar enlevado o que não é o Teu retrato, principalmente aquele de quando eras menino, e que hei de admitir a Tua presença atual e simultânea do Teu corpo em todas as Tuas idades e seus acontecimentos; sei que poderei servir a propaganda — olhem-no!, como se converteu — e sei que o meu orgulho se revoltará e tirarei prazer de Ti nessa revolta; sei que hei de distinguir entre Ti e o Teu coração, sei que hei de ser sincero em tudo por não dar por isso, e sei que hei de esperar confiado a hora de ir ter conTigo, atribuindo-Te entretanto, sem querer e sem pensar, qualidades mesquinhamente humanas e quimericamente divinas, vendo sinais de Ti em todas as coisas até na minha inércia, sinais da Tua justiça no mínimo contratempo, sinais dos Teus desígnios na maior catástrofe... E SEI QUE, ENTÃO ME HEI DE RENEGAR E ESTE POEMA À FRENTE? que hei de renegar tudo, e por isso Te previno do que sei para que toda a gente possa ver que eu sinto o que hás de ser — é que eu conheço-me e adivinho os outros ou julgo adivinhá-los, tanto faz para o caso. Talvez que eu me engane e esteja a sustentar-me de erros, mas os meus erros também são eu próprio! e eu sei que hei de ser eu e Tu e os meus erros entre nós dois enquanto não fechar os olhos e os não reabrir tal como te descrevem e não há que fugir. Por tudo, por nada, por mim, que eu abandonarei, Por Ti, sim, por Ti!... e tudo é tudo, eu Te previno e mais Te digo: não irei para Ti..., Perdoa-me! ... (Olha, já Te peço perdão!) não caminharei para Ti por hábito ou por fé, nem por tradição, nem por interesse, mas porque o Outro, cá dentro, abdicará, não tarda... e para onde me voltarei eu, eu!. . ., senão por Ti até acreditar em Ti como te fazem? É melhor assim — não procurar. Tudo está feito, tudo está escrito, tudo está murado, e bem, com alicerces nos nossos próprios defeitos '— é só ouvir, é só ler, é só pasmar sereno, é só ficar.


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