Jorge de Sena


Panfleto

Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes: Tanto fervor desviado e perdido! Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo e tão poucos lutando para lhe abrir caminho! Há uma vida inteira a jogar e gastar no pano verde imenso das campinas do mundo. Há desertos cativos de uma ausência dos povos. Há uma guerra devastando a vida, enquanto a supuserem redimida! E em nós a redenção quase perdida!... Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma, vamos gritar aos homens que os enganam, que não é a força, que não é a glória, que não é o sol nem a lua nem as estrelas, nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos, nem o prazer nem a dor nem a amizade, nem o indivíduo só compreendendo as causas, nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas, — a redenção sou eu, se formos nós sem forma, sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas! Aqui está a redenção. Tomai-a toda. E se é verdade a fome, se é verdade o abismo, se é verdade o pensamento úmido que pestaneja ansioso nos cortejos públicos, se são verdade as redenções que mentem: Matem essa gente para salvar a Vida! E matem-me com elas para que as queime ainda!


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