Consuelo Pondé de Sena
Castro Alves - A índole de Cecéu
in Jornal A Tarde, 15/03/97
Era passional e emotivo. Dotado de uma plasticidade excepcional e de uma impressionabilidade que beirava à exaltação. Tendia a querer ampliar o campo do eu, a sair dos próprios limites (como nos mitos, os heróis saem da vida terrena para afundar-se no mar, na ilusória busca de uma solução para os próprios sofrimentos ou para tentar a sorte na afirmação de si) e com freqüência se identificava com as próprias imagens internas ou com as visões cósmicas que emergem das profundezas inconscientes.
Senhor! Vendo tua sombra curvada sobre o abismo,/Colher a prece alada, o canto que esvoaça/E a lágrima que orvalha o lírio da desgraça./Então, num santo êxtase escuto a terra e os céus,/E o vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus”.
Dado a devaneio, percebia o domínio do infinito e de tudo quanto é indeterminado: o mar era o seu símbolo misterioso que, na avaliação de Carl Jung, é o “símbolo do inconsciente, porquanto sob os reflexos brilhantes de superfície encerra insuspeitas profundezas.
Castro Alves buscava conhecer além de si mesmo. Reagia a cada estímulo e amava todo o risco, sentindo-se atraído pelas metas mais longínquas. Absorvia tudo quanto contemplava e experimentava e, freqüentemente, conseguia alcançar ambiciosos objetivos a que se propunha. Costumava expressar um excessivo espírito de sacrifício atitude oblativa e penitencial para recuar “culpas” nem sempre cometidas. Entregava-se aos devaneios, às fantasias, aos paraísos imaginários encarnando a grande nostalgia do absoluto.
“Então.../ Nos brancos mantos, que arregaçam,/Da meia-noite os Anjos alvos passam/Em longe procissão!/E eu murmuro ao fitá-los assombrado/São os anjos do amor de meu passado/Que desfilando vão”.
Os valores espirituais e morais eram por ele revelados, aparecendo também claramente o seu fundo religioso ou místico.
“E não vedes que ali na mirra e nardo/Vai toda a crença da judia loura.../E que o óleo, que lava os pés de Cristo,/É uma reza também da pecadora”.
Sobre sua época de menino escreve Carneiro Ribeiro, seu Mestre, no Ginásio Baiano: “Muito verde em idade, muito afável, de índole benévola, fisionomia por extremo simpática, olhos quase à flor do rosto, fonte alta e espaçosa; estimadíssimo no colégio por diretor, professores e condiscípulos, alguns dos quais lhe chamavam Cecéu, nome que lhe dera a família”, no depoimento de Xavier Marques. Praticava o bem com o coração aberto, com prazer.
Por outro lado, tinha necessidade de sentir-se amado. De dar e receber amor. Afinal, o amor é fundamental ao equilíbrio do ser humano. Desejava um amor espontâneo, livre. Mas, amar não é apenas desejar o bem dos outros, também é sofrer, com o sofrimento deles e regozijar-se com a sua alegria.
Castro Alves fazia o bem com participação do sentimento e do amor. Por isso, Jorge Amado sobre ele escreveu: “Castro Alves foi um artista que encarou a vida de frente, que não teve medo de se envolver nos problemas dos homens”. É que, segundo o romancista: “Na Bahia aprendera com seu tio o valor do povo. Estava apto para o Recife, para o ambiente da faculdade, para lutas e também para o amor. Recife há de lhe dar a sua amada, aquela que encherá de alegria e de desgraça a sua vida tão breve e tão imensa”. A índole sociável de Castro Alves era muito desenvolvida e seu encanto pessoal sensibilizava os corações mais frios. Sua bela aparência física impressionava fortemente. Expansivo, encontrou um escoadouro criativo por meio da sua poesia comunicativa e aliciante. Era elegante e se trajava com apuro, sendo sua maior tentação o prazer, incluindo o prazer da visão, do gosto, do tato, das emoções.
Aliado à sua qualidade especial de encanto e sociabilidade, Castro Alves tinha um modo de se comunicar muito sensível: sentia-se sintonizado com o público e as necessidades das pessoas, expressando-se de maneira perceptiva. Relacionar-se com a humanidade e com os outros lhe trazia plena realização emocional. Tinha magnetismo e atração popular. Tinha premonição de sua finitude, manifestando sua intuição da morte em muitos dos seus poemas.
“Morrer... quando este mundo é um paraíso./E a alma um cisne de douradas plumas; Não! O seio da amante é um lago virgem.../Quero boiar à tona das espumas” (...)
“Quando eu morrer... não lancem meu cadáver/No fosso de um sombrio cemitério.../Odeio o mausoléu que espera o morto/Como o viajante desse hotel funéreo”.
Mas, a morte o espreitava e, cumprindo o destino dos românticos, cedo se foi, deixando um rastro luminoso da sua terrena trajetória. E hoje, decorridos 150 anos do seu nascimento, estamos todos a louvar aquele poeta extraordinário “que tinha o sol no crâneo e os séculos no coração”.
Amoroso, afeiçoado, firme e leal, tinha uma ligação especial com a terra, agradando-lhe sobremaneira a vida pastoral. Amante das artes, era também dotado de diplomacia e sociabilidade. Expressava-se bem e era abençoado com uma voz de timbre agradável, sendo dado à representação teatral. Por mais de uma vez, deixou a cidade e saiu em busca das profundezas sertanejas.
Gostava muito de caçar, de embrenhar-se pelo mato...
“Meu nobre perdigueiro! Vem comigo! Vamos a sós, meu corajoso amigo,/Pelos ermos vagas!/Vamos lá dos geniais, que o vento açoita,/Dos verdes capinzais n’agreste moita/ – A perdiz levantar!
Não se esquecia do sertão que tanto amava e no qual buscava os bons ares para melhorar sua débil saúde: “A tarde morria! Nas águas barrentas/As sombras das margens deitavam-se longos/Na esguia atalaia das árvores secas/Ouvia-se um triste chorar de arapongas”.
Apreciava a vida e tinha encanto por viver. Suas decisões sobre a sobrevivência tinham relação com os seus desejos. O desejo representava tudo quanto o ajudava a frustrar qualquer tendência à inércia. Ansiava pelo contato físico, conforme se pode observar na sua poesia sensual, às vezes, até erótica.
“Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora! As luas nas janelas bate em cheio/Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde... Não me apertes assim contra teu seio//
Boa-noite... E tu dizes – Boa-noite/Mas não digas assim por entre beijos.../Mas não mo digas descobrindo o peito – Mar de amor onde vagam meus desejos”/.
Esse desejo forte de ligação com o outro, por vezes se convertia no
amor universal expresso de maneira ampla e sem limites. Altruísta e abnegado,
transmutava, por vezes, seu amor pelas mulheres, pelos familiares,
estendendo-o à humanidade.
“A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/Cria águas em seu calor/Senhor! pois quereis a prece?/Desgraçada a populaça/Só tem a rua de seu/Ninguém nos roube os castelos/Tendes palácios tão belos/Deixai a terra ao Anteu.
* Consuelo Pondé de Sena é professora da UFBA e presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
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