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Página atualizada em 27.5.2000
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Simone Ostrowski
 

Alma errante da 
mulher surrealista 

in Jornal do Brasil, Idéias, 29.5.2000

No mais memorável texto do movimento que criou, 
André Breton investiga o mistério fugidio da identidade

NADJA
André Breton
Tradução de Ivo Barroso
Imago, 152 páginas
R$ 18

 SIMONE OSTROWSKI

 Nadja é a mais famosa obra do escritor francês e decano do surrealismo André Breton. Nela, Breton encontra aquela que será o arquétipo da mulher surrealista; o romance narra o seu relacionamento com uma jovem inspirada, uma espécie de sibila que o presenteia com frases perturbadoras, visões e desenhos bizarros. Excêntrica, criativa, alma errante, sereia, Melusine, próxima da clarividência e a um passo da loucura, Nadja é uma revelação fulgurante, e ao mesmo tempo um malogro.

 O surrealismo foi definido por Breton no célebre manifesto como "Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja de outro modo qualquer, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de preocupações estéticas ou morais." Em suma, a libertação do espírito, a exploração dos recônditos do mundo interior, o que não ia sem ressonâncias revolucionárias. Se o projeto era ambicioso, o resultado não teve o mesmo brilho. Nadja é, na verdade, o mais memorável dos textos que o surrealismo produziu, um de seus poucos ápices.

 Esse protótipo da mulher surrealista é definido como um "gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente fixar, mas em caso algum submeter." A fulguração de Nadja é perturbadora: em um restaurante, deixa o garçom de tal modo atônito que "do começo ao fim da refeição (entramos novamente no reino do incrível) conto ao todo onze pratos partidos." Sua forma de se governar é "fundamentada na mais pura intuição." Possui uma liberdade inigualada. Logo no segundo encontro com Breton visualiza corretamente a sua vida familiar, a mulher pequena e morena, o cachorro e o gato. As crianças a cercam fascinadas. Ela atinge o ponto alto das aspirações surrealistas com sua forma de vida, entregue por completo aos ritmos interiores; desprendeu-se de "liames terrenos". Essa cintilação é também infinitamente frágil e indefesa, pouco afeita aos aspectos práticos da existência, à mercê das ruas; à deriva daqueles que estão próximos da loucura. Pois Nadja desliza para a loucura, e terminará em um asilo. Quanto a Breton, resta-lhe admitir: "Por mais vontade que tivesse, e também talvez alguma ilusão, nunca estive à altura do que ela me propunha." E essa proposta, compreende Breton vagamente, é o amor, "o único, o confundível e indubitável amor, que não pode ser senão à prova de tudo".

 A sobriedade e a exatitude da narrativa deixam o foco do extraordinário sobre Nadja; Breton empresta uma ordem minuciosa ao relato, contrastando com a deriva da "alma errante". O relacionamento entre os dois só perde de vez o encanto no final, com a queda na loucura. Até lá, se entregarão ao "furor dos símbolos", unidos por uma cumplicidade imponderável. Uma superação: "De que decorre o fato de, projetados juntos, uma vez para sempre, bem longe da terra, nos curtos intervalos que nosso maravilhoso estupor nos permitia, termos podido trocar algumas impressões incrivelmente harmoniosas por cima dos escombros fumegantes do velho pensamento e da sempiterna vida?" Ao mesmo tempo, não se entendem sobre as coisas simples da vida, e do malogro final ficará como saldo o próprio livro, com todos os seus laivos de beleza convulsiva.

 "É possível que a vida peça para ser decifrada como um criptograma (...) pode-se conceber a grande aventura do espírito como uma viagem desse gênero ao paraíso dos ardis", pondera Breton. Em Nadja estão o gosto pelo enigma e o mistério fugidio da identidade; questões inquietantes sobre o relacionamento entre o homem e o mundo; e os impasses e limites, de Breton e do próprio surrealismo. 

Simone Ostrowski é escritora
 
 



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