Alma errante da
mulher surrealista
in Jornal do Brasil, Idéias, 29.5.2000
No mais memorável texto do movimento que criou,
André Breton investiga o mistério fugidio da identidade
NADJA
André Breton
Tradução de Ivo Barroso
Imago, 152 páginas
R$ 18
SIMONE OSTROWSKI
Nadja é a mais famosa obra do escritor
francês e decano do surrealismo André Breton. Nela, Breton
encontra aquela que será o arquétipo da mulher surrealista;
o romance narra o seu relacionamento com uma jovem inspirada, uma espécie
de sibila que o presenteia com frases perturbadoras, visões e desenhos
bizarros. Excêntrica, criativa, alma errante, sereia, Melusine, próxima
da clarividência e a um passo da loucura, Nadja é uma revelação
fulgurante, e ao mesmo tempo um malogro.
O surrealismo foi definido por Breton no célebre
manifesto como "Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe
expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja de outro modo qualquer,
o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência
de todo controle exercido pela razão, fora de preocupações
estéticas ou morais." Em suma, a libertação do espírito,
a exploração dos recônditos do mundo interior, o que
não ia sem ressonâncias revolucionárias. Se o projeto
era ambicioso, o resultado não teve o mesmo brilho. Nadja é,
na verdade, o mais memorável dos textos que o surrealismo produziu,
um de seus poucos ápices.
Esse protótipo da mulher surrealista é
definido como um "gênio livre, algo como um desses espíritos
do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente fixar,
mas em caso algum submeter." A fulguração de Nadja é
perturbadora: em um restaurante, deixa o garçom de tal modo atônito
que "do começo ao fim da refeição (entramos novamente
no reino do incrível) conto ao todo onze pratos partidos." Sua forma
de se governar é "fundamentada na mais pura intuição."
Possui uma liberdade inigualada. Logo no segundo encontro com Breton visualiza
corretamente a sua vida familiar, a mulher pequena e morena, o cachorro
e o gato. As crianças a cercam fascinadas. Ela atinge o ponto alto
das aspirações surrealistas com sua forma de vida, entregue
por completo aos ritmos interiores; desprendeu-se de "liames terrenos".
Essa cintilação é também infinitamente frágil
e indefesa, pouco afeita aos aspectos práticos da existência,
à mercê das ruas; à deriva daqueles que estão
próximos da loucura. Pois Nadja desliza para a loucura, e terminará
em um asilo. Quanto a Breton, resta-lhe admitir: "Por mais vontade que
tivesse, e também talvez alguma ilusão, nunca estive à
altura do que ela me propunha." E essa proposta, compreende Breton vagamente,
é o amor, "o único, o confundível e indubitável
amor, que não pode ser senão à prova de tudo".
A sobriedade e a exatitude da narrativa deixam o
foco do extraordinário sobre Nadja; Breton empresta uma ordem minuciosa
ao relato, contrastando com a deriva da "alma errante". O relacionamento
entre os dois só perde de vez o encanto no final, com a queda na
loucura. Até lá, se entregarão ao "furor dos símbolos",
unidos por uma cumplicidade imponderável. Uma superação:
"De que decorre o fato de, projetados juntos, uma vez para sempre, bem
longe da terra, nos curtos intervalos que nosso maravilhoso estupor nos
permitia, termos podido trocar algumas impressões incrivelmente
harmoniosas por cima dos escombros fumegantes do velho pensamento e da
sempiterna vida?" Ao mesmo tempo, não se entendem sobre as coisas
simples da vida, e do malogro final ficará como saldo o próprio
livro, com todos os seus laivos de beleza convulsiva.
"É possível que a vida peça
para ser decifrada como um criptograma (...) pode-se conceber a grande
aventura do espírito como uma viagem desse gênero ao paraíso
dos ardis", pondera Breton. Em Nadja estão o gosto pelo enigma
e o mistério fugidio da identidade; questões inquietantes
sobre o relacionamento entre o homem e o mundo; e os impasses e limites,
de Breton e do próprio surrealismo.
Simone Ostrowski é escritora
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