Quase 3.000 poetas!

SOARES DE PASSOS

António Augusto SOARES DE PASSOS: Nasceu no Porto em 1826, e morreu tuberculoso com 33 anos. Estudou em Coimbra onde foi um dos poetas de O Novo Trovador. Boa parte da sua poesia se ressente da tristeza duma vida que a morte espreita. Foi um poeta muito divulgado no seu tempo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quase 3.000 poetas!

O Firmamento

  

Glória Deus!  Eis aberto o livro imenso,

O livro do infinito,  

Onde em mil letras de fulgor intenso

Seu nome adoro escrito. 

Eis do seu tabernáculo corrida

Uma ponta do véu misterioso:

Desprende as asas, remontando à vida,

Alma que anseias pelo eterno gozo!

 

 

Estrelas, que brilhais nessas moradas,

Quais são vossos destinos? 

Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas

De seus umbrais divinos. 

Pululando do selo onipotente,

E sumidas por fim na eternidade,

Sois as faíscas do seu carro ardente

A rolar através da imensidade.

 

 

E cada qual de vós um astro encerra,

Um Sol que apenas vejo,

Monarca doutros mundos como a terra

Que formam seu cortejo.

Ninguém pode contar-vos: quem pudera

Esses mundos contar a que dais vida,

Escuros para nós, qual nossa esfera

Vos é nas trevas da amplidão sumida.

  

 

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas

Do trono soberano;

Quem vos há de seguir nas profundezas

Desse infinito oceano?

E quem há de contar-vos nessas plagas

Que os céus ostentam de brilhante alvura,

Lá onde sua mão sustém as vagas

Dos sóis que um dia romperão na altura?

  

 

E tudo outrora na mudez jazia,

Nos véus do frio nada;

Reinava a noite escura; a luz do dia

Era em Deus concentrada.

Ele falou! e as sombras mim momento

Se dissiparam na amplidão distante!

Ele falou! e o vasto Armamento

Seu véu de mundos desfraldou ovante!

 

  

E tudo despertou, e tudo gira imerso em seus fulgores;

E cada mundo é sonorosa lira

Cantando os seus louvores.

Cantai, ó mundos que o seu braço impele,

Harpas da criação, fachos do dia,

Cantai louvor universal Àquele,

Que vos sustenta e nos espaços guia!

 

  

Terra, globo que geras nas entranhas

Meu ser, o ser humano,

Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,

E com teu vasto oceano? 

Tu és um grão de areia arrebatado

Por esse imenso turbilhão de mundos

Em volta de seu trono levantado

Do universo nos seios mais profundos.

 

 

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho

Quando soberbo te elevas,

Buscando sem cessar abrir caminho

Por tuas densas trevas? 

Que és tu com teus impérios e colossos?

um átomo sutil, um frouxo alento!

Tu vives um instante, e de teus ossos

Só restam cinzas, que sacode o vento.

 

 

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes

À razão encadeias;

Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves

Na chama das idéias:

Alegra-te, imortal, que esse alto lume

Não morre em trevas num jazigo escasso!

Glória a Deus, que num átomo resume

O pensamento que transcende o espaço!

 

 

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre

Conquista áureo destino,

E de século em século mais nobre

Eleva a Deus teu hino;

E tu, ó terra, nos floridos mantos

Abriga os filhos que em teu seio geras,

E teu canto de amor reúne aos cantos

Que a Deus se elevam de milhões de esferas!

 

Dizem que já sem forças, Moribunda,

Tu vergas decadente:

Oh! Não!  De tanto Sol que te circunda

Teu Sol inda é fulgente;

Tu és jovem ainda: a cada passo

Tu assistes de um mundo às agonias,

E rolas entretanto nesse espaço

Coberta de perfumes e harmonias.

 

 

Mas ai! tu findarás!  Além cintila

Hoje um astro brilhante;

Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,

E fenece arquejante.

Quem foi?  Quem o apagou?  Foi seu alento

Que extinguiu essa luz já fatigada,

Foram séculos mil, foi um momento

Que a eternidade fez volver ao nada.

 

 

Um dia, quem o sabe? um dia ao peso

Dos anos e ruínas,

Tu cairás nesse vulcão aceso

Que teu Sol denominas;

E teus irmãos também, esses planetas

Que a mesma vida, a mesma luz inflama,

Atraídos enfim, quais borboletas,

Cairão como tu na mesma chama!

 

 

Então, ó Sol, então nesse áureo trono,

Que farás tu ainda,

Monarca solitário, e em abandono,

Com tua glória finda?

Tu findarás também, a fria morte

Alcançará teu carro chamejante:

Ela te segue, e profetiza a sorte

Nessas manchas que toldam teu semblante.

 

 

Que são elas?  Talvez os restos frios

De algum antigo mundo,

Que inda referve em borbotões sombrios

No teu seio profundo,

Talvez, e envolta pouco e pouco a frente

Nas cinzas sepulcrais de cada filho,

Debaixo deles todos de repente

Apagarás teu vacilante brilho.

 

 

E as sombras passarão no vasto império

Que teu facho alumia;

Mas que vale de menos um saltério

Dos orbes na harmonia?

Outro Sol como tu, outras esferas

Virão no espaço descansar seu hino,

Renovando nos sítios onde imperas

Do Sol dos Sóis o resplendor divino.

 

 

Glória a seu nome!  Um dia meditando

Outro céu mais perfeito,

O céu d'agora ao seu altivo mando

Talvez caia desfeito.

Então mundos, estrelas, Sóis brilhantes,

Qual bando d’águias na amplidão disperso,

Chocando-se em destroços fumegantes,

Desabarão no fundo do universo.

 

 

Então a vida, refluindo ao seio

Do foco soberano,

Parará concentrando-se no meio

Desse infinito oceano:

E, acabado por fim quanto fulgura,

Apenas restarão na imensidade:

— O silêncio, aguardando a voz futura,

O trono de Jeová, e a eternidade!

 

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A CAMÕES


Ai do que a sorte assinalou no berço
Inspirado cantor, rei da harmonia!
Ai do que Deus às gerações envia
Dizendo - vai, padece, é teu fadário;
Como um astro brilhante o mundo o admira,
Mas não vê que essa chama abrasadora
Que o cerca d'esplendor, também devora
Seu peito solitário.


Pairar nos céus em alteroso adejo,
Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;
E ver passar, quais sombras ilusórias,
Essas imagens de fulgor divino:
Tais s o vossos destinos, ó poetas,
Almas de fogo, que um vil mundo encerra;
Tal foi, grande Camões, tal foi na terra
Teu mísero destino.


A cruz levaste desde o berço à campa:
Esgotaste a amargura ate às fezes:
Parece que a fortuna em seus revezes
Te mediu pelo génio a desventura.
Combateste com ela como o cedro
Que provoca o rancor da tempestade,
Mas cuja inabalável majestade
Lhe resiste segura.

Foste grande na dor como na lira!
Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?
Um anjo viste de celeste encanto,
E aos pés caíste da visão querida...
Engano! foi um astro passageiro,
Foi uma flor de perfumado alento
Que ao longe te sorriu, mas que sedento
Jamais colheste em vida.


Sob a couraça que cingiste ao peito
Do peito ansioso sufocaste a chama,
E foste ao longe procurar a fama,
Talvez, quem sabe? procurar a morte.
Mas, qual onda que o náufrago arremessa
Sobre inóspita praia sem guarida,
A morte crua te arrojou a vida,
E as injúrias da sorte.


De praia em praia divagando incerto
Tuas desditas ensinaste ao mundo:
A terra, os homens, 'té o mar profundo
Conspirados achavas em teu dano.
Ave canora em solidão gemendo,
Tiveste o génio por algoz ferino:
Teu alento imortal era divino,
Perdeste em ser humano:


Índicos vales, solidões do Ganges,
E tu, ó gruta de Macau, sombria,
Vós lhe ouvistes as queixas, e a harmonia
Desses hinos que o tempo não consome.
Foi lá, nessa rocha solitária,
Que o vate desterrado e perseguido,
À pátria, ingrata, que lhe dera o olvido,
Deu eterno renome.


"Cantemos!" disse, e triunfou da sorte.
"Cantemos!" disse, e recordando glórias,
Sobre o mesmo teatro das vitórias,
Bardo guerreiro, levantou seus hinos.
Os desastres da pátria, a sua queda,
Temendo já no meditar profundo,
Quis dar-lhe a voz do cisne moribundo
Em seus cantos divinos.


E que sentidos cantos! d'Inês triste
Se ouve mais triste o derradeiro alento,
Ensinando o que pode o sentimento
Quando um seio que amou d'amores canta:
No brado heróico da guerreira tuba
O valor português soa tremendo,
E o fero Adamastor com gesto horrendo
Inda hoje o mundo espanta!


Mas ai! a pátria não lhe ouvia o canto!
Da pátria e do cantor findava a sorte:
Aos dois juraram perdição e morte,
E os dois juntaram na mansão funérea...
Ingratos! ao que, alçando a voz do génio
Além dos astros nos erguera um sólio,
Decretaram por louro e capitólio
O leito da miséria!


Ninguém o pranto lhe enxugou piedoso...
Valeu-lhe o seu escravo, o seu amigo:
"Dai esmola a Camões, dai-lhe um abrigo!"
Dizia o triste a mendigar confuso!
Homero, Ovídio, Tasso, estranhos cisnes,
Vós, que sorvestes do infortúnio a taça,
Vinde depor as c'roas da desgraça
Aos pés do cisne luso!


Mas não tardava o derradeiro instante...
O raio ardente, que fulmina a rocha,
Também a flor que nela desabrocha,
Cresta, passando, coas etéreas lavas!
Que cena! enquanto ao longe a pátria exangue
Aos alfanges mouriscos dava o peito,
De mísero hospital num pobre leito,
Camões, tu expiravas!


Oh! quem me dera desse leito à beira
Sondar teu grande espírito nessa hora,
Por saber, quando a mágoa nos devora,
Que dor pode conter um peito humano;
Palpar teu seio, e nesse estreito espaço
Sentir a imensidade do tormento,
Combatendo-te n'alma, como o vento,
Nas ondas do Oceano!


O amor da pátria, a ingratidão dos homens,
Natércia, a glória, as ilusões passadas,
Entre as sombras da morte debuxadas,
Em teu pálido rosto já pendido;
E a pátria, oh! e a pátria que exaltaras
Nessas canções d'inspiração profunda,
Exalando contigo moribunda
Seu último gemido!


Expirou! como o nauta destemido,
Vendo a procela que o navio alaga,
E ouvindo em roda no bramir da vaga
D'horrenda morte o funeral presságio,
Aos entes corre que adorou na vida,
Em seguro baixel os põe a nado,
E esquecido de si morre abraçado
Aos restos do naufrágio:


Assim, da pátria que baixava à tumba,
Em cantos imortais salvando a pátria,
E entregando-a dos tempos à memória,
Como em gigante pedestal segura:
"Pátria querida, morreremos juntos!"
Murmurou em acento funerário,
E envolvido da pátria no sudário
Baixou à sepultura.


Quebrando a lousa do feral jazigo,
Portugal ressurgiu, vingando a afronta,
E inda hoje ao mundo sua glória aponta
Dos cantos de Camões no eterno brado;
Mas do vate imortal as frias cinzas
Esquecidas deixou na sepultura,
E o estrangeiro que passa, em vão procura
Seu túmulo ignorado.


Nenhuma pedra ou inscrição ligeira
Recorda o grã cantor... porém calemos!
Silêncio! do imortal não profanemos
Com tributos mortais a alta memória.
Camões, grande Camões; foste poeta!
Eu sei que tua sombra nos perdoa:
Que valem mausoléus antes a coroa
De tua eterna glória?



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O NOIVADO DO SEPULCRO


BALADA


Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.


Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
- "Oh vejo sim... recordação fatal!
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


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