As idéias viajantes experimentam estranhas metamorfoses, conforme
as peculiaridades
dos países em que fazem escala. As idéias de Euclides
da Cunha, muito discutidas este
ano devido ao centenário da destruição de Canudos,
não constituem nenhuma
exceção. Na Alemanha, por exemplo, a recepção
de Os sertões foi em grande parte
condicionada pelo estado de espírito anti-moderno que hoje em dia
influencia tantos
intelectuais alemães. Surgiu, em conseqüência, uma curiosa
interpretação, segundo a
qual Euclides teria sido um precursor dos atuais críticos da modernidade.
Se for preciso ver em Euclides um precursor, eu preferiria dizer que ele
antecipa, não a
crítica, mas a dialética do Iluminismo, tal como exposta
por Adorno, Horkheimer e
Benjamin.
O cerne dessa dialética é que a modernidade iluminista não
se emancipou da dimensão
tradicional que ela ostensivamente combate, o que vale dizer que a modernidade,
contendo em si elementos míticos, não é suficientemente
racional, e a pretexto de lutar
contra a barbárie, produz freqüentemente efeitos desumanos.
O novo que ela promete
é uma simples transfiguração do antigo. Ao mesmo tempo,
não é possível combater os
males gerados pela modernidade e pelo Iluminismo senão recorrendo
à própria
modernidade e ao próprio Iluminismo.
A leitura que Euclides faz do conflito entre tradição e modernidade,
em Canudos, se
aproxima dessa dialética.
As forças que aparentemente representavam a modernidade, na tragédia
de Canudos,
eram elas próprias arcaicas. O delírio de Canudos tinha uma
contrapartida exata na
capital. Em Canudos, os jagunços baleavam os intrusos com seus clavinotes,
no Rio
os florianistas linchavam transeuntes e empastelavam jornais. Para os conselheiristas,
a República era o reino do anti-Cristo, para os citadinos, Canudos
era o centro de uma
conspiração monarquista. Para os cariocas, Canudos era a
Vendéia, para os jagunços
o Rio era a Babilônia. Os dois campos tinham seus rituais. Os conselheiristas
tocavam
sinos e cantavam hinos religiosos, as tropas do governo saudavam o aniversário
da
queda da Bastilha metralhando os jagunços com uma salva de 21 tiros
e cantando o
Hino Nacional. Os dois campos se interpenetravam. Os soldados e os combatentes
do
arraial eram idênticos na origem regional, na fala, muitas vezes
no vestuário. Sua
religiosidade era a mesma. Criados ouvindo lendas sobre os milagres do
Conselheiro,
os soldados do Norte tinham as mesmas crendices dos jagunços. A
dar crédito a
Euclides, havia o mesmo arcaísmo entre os oficiais. Todos os que
tombavam à entrada
de Canudos tinham no peito esquerdo, em medalhas de bronze, a efígie
de Floriano e
morrendo saudavam sua memória com o mesmo fervor que os jagunços
reservavam ao
Bom Jesus. A crueldade era idêntica nos dois lados. Os soldados mandavam
os
prisioneiros gritarem viva a República, e depois os degolavam, fazendo
com a faca o
que a outra República, a francesa, tinha feito com a guilhotina.
Para Euclides, o
Conselheiro e o Coronel Moreira César eram figuras simétricas.
O Conselheiro era um
doente mental, o Coronel um epiléptico. Duas patologias, reforçadas
por duas
sociedades retrógradas. O uniforme de Moreira César era o
avesso do camisolão azul
do Conselheiro. Em suma, se houvesse um psiquiatra para as nacionalidades,
como os
há para os indivíduos - assim termina o livro - ele descobriria
no Brasil oficial as
mesmas "linhas essenciais da loucura e do crime" que a ciência julgou
encontrar no
crânio de Antônio Conselheiro.
A modernidade que ordenara a destruição de Canudos era falsa,
porque representada
por elites urbanas que não tinham conseguido absorver verdadeiramente
a civilização
européia. Por dentro, elas continuavam tão primitivas quanto
as populações do
interior. Mas eram mais instáveis, porque tinham se confrontado
bruscamente com
uma cultura superior, para a qual não estavam preparadas, o que
gerou graves
desequilíbrios psíquicos. Essa civilização
de empréstimo, por sua vez, aprofundou o
fosso entre o Brasil oficial e o Brasil arcaico. O fosso poderia ter sido
reduzido por
métodos não-violentos. Em vez disso, conclui Euclides, esses
bárbaros que se
acreditavam civilizados dizimaram os sertanejos com canhões Krupp.
No entanto, Euclides não extrai dessa crítica da pseudo-modernidade
uma denúncia da
modernidade. Na luta entre o atraso e o progresso, ele se coloca inequivocamente
no
campo do progresso. Mas como via ele a modernidade autêntica? Ela
deveria ter como
alicerce a população sertaneja, "a rocha viva de nossa raça".
Os sertanejos, pelo fato
de terem ficado isolados do mundo exterior, tiveram a sorte de evoluir
segundo seu
próprio ritmo, num processo de miscigenação por assim
dizer autárquico, que formou
um tipo racial uniforme, sólido, enérgico, adaptado ao meio.
O sertanejo é um
retardatário, mas não é um degenerado. Degenerados
eram os mestiços litorâneos que
devastaram Canudos em nome de uma ideologia republicana que eles não
podiam
compreender. O sertanejo, pelo contrário, é um titã.
Ele é pedra, e sobre essa pedra
Euclides quer edificar a nacionalidade futura. Livre de influências
européias
indesejáveis, num processo evolutivo que poderia, no máximo,
ser acelerado por
medidas pedagógicas capazes de diminuir a distância que o
separava do resto do
Brasil, o sertanejo ascenderia progressivamente ao estágio da civilização,
transformando-se no sustentáculo de uma modernidade real, sem regressões
temporais, sem compromissos com o mundo antigo, sem desníveis de
consciência,
sem heterogeneidades territoriais.
O que complica uma avaliação objetiva das idéias de
Euclides é o paradigma racial que
ele adota. Mas já que ele próprio acabou se distanciando
desse paradigma,
negando-se a ver nos sertanejos uma raça inferior, como exigia a
ciência do seu tempo,
talvez não estivéssemos traindo seu pensamento se transpuséssemos
o código racial
num código sociológico. Com isso, suas idéias se tornariam
pelo menos
argumentáveis, perdendo seu aspecto extravagante. Segundo essa "transcodificação",
a guerra de Canudos seria a metáfora de uma modernização
de fachada, resultante da
aliança entre o "feudalismo tacanho" do interior e as frágeis
elites burguesas
(constituídas, em parte, pelos famosos "mestiços neurastênicos
do litoral"). Com isso,
desvendaríamos o fundamento sociológico da mistura do velho
e do novo que
Euclides identificou nas forças pretensamente modernizadoras. A
mescla vinha da
circunstância de que a burguesia republicana não era na realidade
uma força
progressista, porque estava comprometida com a grande propriedade e com
a antiga
classe escravocrata, revelando-se incapaz de cumprir sua missão
histórica de realizar a
reforma agrária. A "modernização" pretendida por essa
burguesia era de fato a
perpetuação do latifúndio, o novo a serviço
do velho. Os agentes e fundamentos da
verdadeira modernização seriam os camponeses - os sertanejos
de Euclides, a "rocha
viva" sobre a qual se construiria a nova civilização.
Em nossa época pós-marxista, talvez muitos considerem esse
código sociológico tão
pouco plausível quanto o racial. Mas isso não nos impede
de encontrar algumas
analogias entre as duas dialéticas da modernidade, a de Euclides
e a de Adorno.
Ambas podem ser resumidas em duas teses: a pseudo-modernidade é
na verdade a
selvageria, e sem a modernidade não há como implantar uma
civilização humana. Em
Euclides da Cunha, essas duas teses podem ser ilustradas por duas citações.
A
primeira denuncia o Iluminismo enquanto barbárie: Canudos só
viu "o brilho da
civilização através do clarão das descargas".
A segunda afirma que a modernidade é
inevitável: "Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos ou desaparecemos".
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