Tristão de Athayde
Affonso Romano de Sant'Anna,
Poesia Planetária
Meses atrás, para respirar um ar mais puro dó que o poluído
pelo ambiente político de uma ditadura de pacotilha em liquidação,
voltei-me para os poetas. E os encontrei bem longe daqueles que fizeram
do modernismo o quinto grande momento poético de nossas letras.
E tive então a oportunidade de escrever o seguinte, a propósito
dos vultos mais recentes deste nosso pós-modernismo, como Gilberto
Mendonça Teles, Gerardo Mello Mourão, Jamil Haddat, Marcos
Konder Reis e tantos mais, pois a florada é grande. "Se a preocupação
nacionalista e por vezes regionalista, populista ou tropicalista, foi uma
nota típica do modernismo, e o nacionalismo o marcou profundamente,
o planetarismo é que está marcando o pós-modernismo
e a atual posição de nossa poesia. Não que os nossos
poetas mais destacados deste momento se declarem, como J. L. Borges, "europeus
residentes nos subúrbios do Velho Mundo". Mas tudo indica que se
colocam no centro do grande ciclone mundial em que estão todos envolvidos.
Ao mesmo tempo no centro e na circunferência, desse tornado universal"
(JB. 28-7-78).
Nesse grupo do planetarismo poético deste início de fim
de século, se destaca, do modo mais impressionante e original, a
figura universitária e sobretudo meta-universitária do poeta
e crítico Affonso Romano de Sant'Ana. Como sempre considerei a crítica
como uma forma de criação e não apenas de apreciação
literária, a presença simultânea, neste momento, dois
grandes críticos que são ao mesmo tempo, grandes poetas,
Gilberto Mendonca Teles e Affonso Romano de Sant'Anã, é a
prova de um dos traços mais típicos de nossas letras atuais,
destacado aliás por Affonso Romano no trabalho que apresentou ao
1º Encontro com a Literatura Brasileira (S. Paulo 25/30 setembro,
1977). Esse traço é a atual vitalidade literária,
em contraste e protesto contra a mortalidade política. Ao contrário
da coexistência pacífica dos modernistas com as autoridades
públicas do seu tempo. As ditaduras políticas, como a lança
de Amfortas, podem cicatrizar as próprias feridas que produzem.
Esse trabalho crítico de Affonso Sant'Ana é a página
mais completa e mais original que já foi escrita sobre a poesia
brasileira contemporânea e seus "sete diferentes grupos". Essa passagem
da poesia de água destilada a que aspiraram os parnasianos e os
simbolistas, à poesia de água nascente e seu tratamento químico
depurador, até mesmo à poesia "sórdida" a que Ferreira
Goulart concorreu com seu famoso Poema Sujo, constitui um, caminho em direção
à vida, em sua totalidade e em suas contradições,
da água nascente mais pura às águas mais poluídas.
Daí também, deste anseio de vitalismo prático das
mais jovens gerações. esse salto do localismo ao planetarismo,
de que Affonso Sant'Ana é, seguramente, um dos expoentes destacados.
Seu grande poema mais recente e porventura o fruto mais maduro e sumarento
de seu longo, variado e fecundo roteiro poético e critico, é
A Grande Fala do índio Guarani Perdido na História e Outras
Derrotas (Sumus Editorial - S. Paulo - Rio, capa e vinhetas de Glauco Rodrigues,
180 págs. 1979).
Referi-me, acima, a J. L. Borges, o grande poeta latino-americano de
renome universal, cantando os feitos das ditaduras militares que lhe permitem
isolar-se em sua torre de marfim, pulsando o seu alaúde. Affonso
Sant'Ana se coloca em posição diametralmente oposta a Borges.
Não que ponha sua criatividade poética a serviço de
qualquer causa política, por mais justa e universal que seja. Mas
se abre à vida, em sua totalidade, do modo mais feroz, digamos assim,
e longe de se situar "nos subúrbios do Velho Mundo", coloca-se em
pleno continentalismo do Novo Mundo, com suas aspirações
universais e suas frustrações patéticas. Não
é à toa que, como subtítulo de seu poema cíclico,
coloca o ambicioso subtítulo de Moderno Popol Vuh. Como se sabe,
esse poema guatemalteco, em. língua quiché, de meados do
século XVI, já era um grito de alarme e de agonia contra
o fim de uma civilização milenar e autóctone, ameaçada
pela conquista dos soldados do Velho Mundo político e imperialista,
mas também redimida pelos missionários de um Novo Mundo espirtual,
que transcendia a todos os imperialismos políticos, dos velhos e
de novos continentes.
Affonso Sant'Ana, em seu poema brasílico, que surge quatro séculos
depois do grito do genial indígena anônimo guatemalteco, começa
com uma angústia e termina com um desafio. Vai muito mais longe
do que o Popol Vuh. Pois coloca face a face o homem supercivilizado do
século XX e o selvagem ou pré-civilizado, se considerarmos
a civilização como sendo o alargamento, pela cultura e pela
técnica, do conhecimento do mundo e de sua dominação
pela inteligência do homem moderno.
Affonso Sant'Ana tem uma cultura poética universal. Leu tudo
e tudo assimilou, até a saturação. Até o desespero.
Consciente ou inconscientemente, partiu do verso famoso de Mallarmé
"le ciel vide hélas, et j'ai lu tous les livres". Leu aparentemente
o que é possível ler de todos os livros, mas não chegou
a esvaziar o céu, pelo que se denota, não de algumas invectivas
ateístas do herói guarani, mas de certas passagens de sua
copiosa bibliografia critica. Por isso mesmo, o drama latente que faz a
beleza profunda de seu poema é o contato e o contraste entre o homem
da natureza que tudo intui e nada leu, com o homem de cultura, que tudo
leu mas também tudo tenta intuir. E chegou à conclusão
da vaidade total de todo acúmulo de saber, principalmente em face
do mistério da poesia. Pois seu poema é uma longa e patética
interrogação em torno do poder e do alcance da poesia, não
só como beleza formal, no sentido estético, mas como alcance
formal no sentido epistemológieo, em que forma significa aquilo
que é.
O mistério da poesia e do seu sentido profundo persegue esse
grande poeta-crítico, ao menos desde os seus escritos de Los Angeles
(l966), reunidos em um dos seus livros mais analíticos, Poesia Sobre
Poesia. o canto do seu herói epônimo do nativismo americano
começa, e não apenas começa, mas tropeça a
cada passo, na grande, constante e dramática interrogação:
"Onde lerei eu os poemas do meu tempo?" E do mesmo modo como, na sua meditação
crítico-poética anterior, procura cirurgicamente dissecar
o que é a poesia que existe nele próprio e nos poetas em
geral, no seu, grande poema cíclico disseca o seu longo roteiro
poético-crítico à procura do "ouro da mina". E nesses
18 cantos do poema chega, constantemente, a momentos de alta poesia, como
no canto 10, em que a própria forma tipográfica dá
ao seu canto amazônico uma beleza de rio-mar.
Esse poema merece uma análise em profundidade, como aquele que
o poeta-crítico dedica à obra de Carlos Drummond de Andrade,
que considera naturalmente como sendo o ponto central e genial de toda
poesia brasüeira moderna.
Depois de Basílio da Gama, de Santa Rita Durão, de Gonçalves
Dias, de Alencar, de Raul Bopp, de Cassiano Ricardo, de Mário de
Andrade, de Darcy Ribeiro. Affonso Romano de Sant'Ana retoma o tema lndianista
e o leva a um horizonte planetário, a que nenhum de seus predecessores
o levou. Seu poema é um ponto alto em nossas letras. E até
em nosso momento político, como reação contra sua
mediocridade e conformismo.
Pois tudo é poesia.
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