Miguel Torga

Afonso de Albuquerque

Quando esta escrevo a Vossa Alteza Estou com um soluço que é sinal de morte. Morro à vista de Goa, a fortaleza Que deixo à índia a defender-lhe a sorte. Morro de mal com todos que servi, Porque eu servi o rei e o povo todo. Morro quase sem mancha, que não vi Alma sem mancha à tona deste lodo. De Oeste a Leste a índia fica vossa; De Oeste a Leste o vento da traição Sopra com força para que não possa O rei de Portugal tê-la na mão. Em Deus e em mim o império tem raízes Que nem um furacão pode arrancar... Em Deus e em mim, que temos cicatrizes Da mesma lança que nos fez lutar. Em mais alguém, Senhor, em mais ninguém O meu sonho cresceu e avassalou A semente daninha que de além A tua mão, Senhor, lhe semeou. Por isso a índia há de acabar em fumo Nesses doiros paços de Lisboa; Por isso a pátria há de perder o rumo Das muralhas de Goa. Por isso o Nilo há de correr no Egito E Meca há de guardar o muçulmano Corpo dum moiro que gerou meu grito De cristão lusitano. Por isso melhor é que chegue a hora E outra vida comece neste fim... Do que fiz não cuido agora: A índia inteira falará por mim.


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