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Valéria Nogueira Eik


 


Se é semente, vai germinar


 


 

O cão levou um pontapé e saiu ganindo de dor, e talvez, de humilhação.

Sabe-se lá se um cão tem esse tipo de sentimento. Sabe-se lá!
Adélia manteve o olhar muito baixo, quase apagado.

Gostava do animal, mas, temia o marido.

- Jorge, hoje é dia de pagar água e luz.

O homem grunhiu os palavrões habituais e outros mais, e exigiu ver as contas.

Quando Adélia trouxe os papéis, estes tremiam tanto quanto as suas mãos.

- Você é uma perdulária! Olhe bem para essas contas! Está querendo morar na sarjeta? Pois é para lá que você vai se esses valores não baixarem e muito no mês que vem. Estamos entendidos?

Ela não respondeu e nem respirou.

Tinha três filhos pequenos e eles precisavam viver.

Adélia desejava que os meninos estudassem e tivessem diplomas.

Lavava, passava, cozinhava e ainda ajudava as crianças com as tarefas da escola.

Exigia deles a perfeição.

E eles cumpriam a tarefa, pois sabiam que somente dessa forma uma porta se abriria para a liberdade.

Todos os dias eram iguais.

Mentira!

Alguns eram piores.

Jorge chegava em casa encharcado de álcool, e nesse dia, Adélia apanhava de cinta, de cabo de vassoura, de chinelo, ou de qualquer coisa por coisa qualquer.

Os meninos ficavam quietinhos, sem fazer ruído algum.

Eles eram pequenos demais para terem coragem, mas, grandes o suficiente para sentirem ódio.

No dia seguinte, Jorge acordava de ressaca, quebrava um prato, chutava as cadeiras e o cão, e saía para o trabalho.

Só então as crianças tinham permissão para sair da cama.

Tomavam o café da manhã, sempre frugal por força da avareza do pai, e seguiam para a escola, engolindo o choro e a vontade de matar.
Adélia se entregava ao trabalho, moída e colorida pelas pancadas.

O cão se achegava a ela e juntos lamentavam a vida desgraçada.

- Adélia! Tá em casa, amiga?

Era Jurema, a vizinha.

Adélia ficou em silêncio.

Não queria que Jurema visse os hematomas e a vergonha.

Mas, a vizinha ouvira a surra da noite anterior e não iria embora sem saber como estava a amiga.

- Adélia! Abre a porta, menina!

Quando Jurema viu Adélia, seu rosto se franziu de ódio.

- Vamos à delegacia da mulher agora mesmo! Você precisa denunciar esse desgraçado!

- Não, Jurema, pelo amor de Deus! Tenho medo. Tenho medo demais.

- Mas, isto não pode continuar. Qualquer hora ele te mata!

- Não! Ele só bate!

- Quem bate pode matar. Você não entende?

- Não quero pensar, Jurema.

- Até quando você vai continuar apanhando?

- Não sei.

Adélia chorou.

O choro provocava mais dores onde já doía tanto.

Mas, não tomou nenhuma providência.

De noite, Jorge entrou em casa e jogou um pacotinho em cima da mesa.

- Adélia! Pega! É pra você.

Ela abriu o pequeno saco pardo e deu de cara com duas paçocas, seu doce predileto.

Era assim que ele pedia desculpas pelas surras.

Era assim que ele comunicava o seu desejo de trepar.

Engolindo as lágrimas de revolta, ela partiu as paçocas ao meio e deu para os meninos.

O último pedaço seria dado ao cão num momento propício.

Afinal, também o animal precisava de um pedido de desculpas.

- Você não comeu os doces?

- Estou sem vontade.

- Mal agradecida!

Ela sabia que hoje, pelo menos hoje, não levaria outra surra.

Jorge precisava esporrar toda a sua maldade, e com isso, aliviar a tensão.

Final de ano.

As crianças foram aprovadas na escola e acariciadas pela mãe.

Férias.

Antônio, o filho mais velho, tinha um emprego garantido na quitanda do seu Joaquim.

Mal completara quinze anos, mas, já era um guerreiro.

Adolfo, o filho do meio, tinha treze anos.

E Augusto, o caçula, ainda não alcançara os onze anos.

Adélia servia as refeições para os filhos sempre mais cedo, para evitar confrontos à mesa.

E quando o marido voltava do trabalho, ao final do dia, os meninos já estavam deitados, com os olhos pregados na escuridão.

E tudo ficava sob um controle asfixiante, onde o ar denso e tenso poderia ser cortado à faca.

As noites, dentro de casa, eram negras e repletas de medo.

As noites, fora de casa, eram enluaradas e cheias de estrelas.

Mas, Antônio não via a Lua.

Vinha correndo, atrasado, cansado e apavorado.

Trabalhara até mais tarde nas entregas da quitanda.

E quando entrou em casa, o pai se levantou e veio em sua direção:

- Onde você estava, vagabundo?

- Trabalhando, pai.

- O que? Onde?

- Na quitanda do Seu Joaquim.

- Mentiroso! Aposto que você estava fazendo o que não devia!

E desferiu um soco no rosto de Antônio.

O garoto caiu.

Caiu e se levantou.

Encarou o pai, do alto de seus quinze anos e disse:

- Nunca mais encoste as suas mãos em mim! Sou capaz de matar você!

Jorge levantou a mão para bater de novo, mas, Antônio estava preparado e cheio de ódio.

Segurou o braço do pai e torceu com tamanha violência, que até o silêncio ouviu o estalo seco.

Adélia veio correndo.

O cachorro veio correndo.

E até os meninos ousaram se levantar da cama, para assistir a cena.

Jorge estava pálido de dor, segurando o braço quebrado.

Olhou Antônio mais uma vez e saiu.

- Meu filho! O que você fez? O que vai ser de nós agora?

- Não sei, mãe. Mas, precisamos enfrentar o pai.

Com exceção dos garotos menores, ninguém dormiu.

O cão gania baixinho, aos pés de Adélia, pressentindo alguma desgraça.

Mãe e filho passaram a noite, sentados na varanda.

Pela primeira vez, em muito tempo, enxergaram as estrelas.

As nuvens, vez por outra, encobriam a Lua.

E em seguida, generosas, mostravam novamente todo o brilho do céu.

Se não fosse pela espera aterrorizante, eles diriam que a noite estava linda.

Lá pelas tantas da madrugada, Jorge voltou.

Estava com o braço engessado.

Seu andar era firme.

Seu olhar era ódio.

- Pegue a sua trouxa e dê o fora daqui, moleque!

Antônio olhou para a mãe, esperando que ela tomasse alguma atitude.

Ela estava calada.

- Vamos, vagabundo! Está esperando o que?

Adélia puxou um fio de voz e disse:

- Vou fazer a trouxa.

O homem sorriu vitorioso.

Refestelou-se na cadeira da varanda e manteve o ar prepotente e cínico de todos os dias.

Antônio seguiu a mãe.

Estava decepcionado. Estava triste.

Ao invés de seguir para o quarto do menino, Adélia entrou em seu próprio quarto.

A coragem brotara, como semente que finalmente acorda e sai da terra.

Pegou um lençol, abriu-o sobre a cama e jogou nele todas as roupas de Jorge.

Reservou somente uma cinta ao lado da mochila improvisada.

Antônio chorou baixinho. Estava agradecido. Estava feliz.

A mãe olhou para ele e sorriu.

Era um sorriso calmo.

Amarrou a trouxa.

Caminhou serena até a varanda, carregando as roupas num braço e a cinta no outro.

- Pronto, Jorge. Aqui estão as suas roupas.

- O que significa isso?

- Que você está indo embora.

Jorge começou a rir e desafivelou a cinta.

- Hoje vou bater em você com muito gosto, vagabunda!

- Não, Jorge. Nunca mais!

Antônio fincou os pés ao lado da mãe e apenas olhou para o pai.

Jorge avançou sobre eles.

Adélia empurrou o marido.

O braço quebrado fez com que ele perdesse o equilíbrio e caísse.

Adélia levantou a cinta, ante o olhar espantado de Jorge e bateu.

Bateu e bateu.

Bateu na revolta.

Surrou a vergonha.

Espancou o tempo perdido.

Bateu até sentir um gosto de sangue na boca.

Era o seu próprio sangue escorrendo e também querendo bater.

- Chega, mãe. Ele já está pronto para ir embora!
 

 

 

 


 

27/07/2006