Valéria Nogueira Eik
Tragicômico
Andar pelo centro da cidade tem se
tornado, a cada dia, uma aventura, na qual Indiana Jones perderia o
chicote e Crocodilo Dundee, o facão e a pose.
É algo trágico, mas, a nossa mente
esperta deixa quase tudo com ares cômicos, para poder sobreviver.
Mendigos das mais variadas escolas
representam seus papéis e marcam seus pontos, no grito ou no soco.
A voz fininha e lamurienta da mulher
de lenço na cabeça quase me convenceu que eu precisava ajudá-la.
Ou quem sabe, arrumar meu próprio
ponto, pois isso sempre me pareceu um negócio bem lucrativo.
Um dia desses, peguei a tal mulher
saindo no berro com a funcionária do banco. (Não é o banco da praça,
certo? É aquele banco que tem dinheiro).
A mulherzinha queria exercer a
profissão de pedinte fora do espaço pré-estabelecido pela associação
municipal dos mendigos, ou seja, dentro do estabelecimento bancário
e foi impedida pela funcionária.
Levei o maior susto ao ouvir o berro da mulher de voz fininha e
lenço na cabeça, pois de soprano em falsete, ele passou para um
barítono autêntico.
Isso é trágico, mas, é cômico.
A outra mendiga chorava de maneira
desesperada, soluçando e falando ao mesmo tempo, e as suas lágrimas
quase se juntaram às minhas, tão desolada eu fiquei ao assistir a
dor da pobre e ainda imaginar o drama que essa criatura deveria
estar vivendo.
Mas, em segundos ela se irritou com
alguma esmola irrisória, parou imediatamente de chorar e soluçar, e
soltou um bando de palavrões que até a beira do cais mais ordinária
ficaria ruborizada ao ouvir.
Em novos segundos, ela recomeçou a
chorar.
Lágrimas de crocodilo (não é o Dundee,
certo?) e palavras de baixo calão, alternadas com tanta rapidez,
devem provocar um cansaço muito grande ao final do dia, mas, cada um
tem seu trabalho nesse teatro urbano.
Isso é cômico, mas, é trágico.
Continuando a caminhar, passei por uma
loja imensa e a música sertaneja que saía lá de dentro era tão feia
e tão brega que obrigou meus passos a saírem do ritmo.
Com isso, fiquei meio manca e
totalmente desengonçada, e gritei uma ordem para as minhas pernas:
- Não escutem! Não escutem! Voltem ao
passo normal e finjam que nada está acontecendo!
A letra era tão ridícula que eu não
pude deixar de revirar os olhos e torcer a boca, num desprezo
absoluto pela proposta que o peão estava fazendo para a amada.
“Venha para mim e eu te prometo casa,
comida e roupa lavada. Paro de beber e chego cedo em casa.”
Pensando bem, se ele realmente possuir
boa mão na cozinha, deixar a louça limpinha, lavar e passar toda a
roupa e ainda parar de beber, eu acho que a amada poderia considerar
a proposta, desde que ele não levasse a sério o último item, chegar
cedo em casa.
Isso é ridículo e cômico.
O carro do corpo de bombeiros passou
voando, com a sirene ligada.
Fiquei arrepiada de angústia.
Isso é trágico.
A mulher que estava na minha frente
tropeçou, ficou com vergonha e olhou para mim.
Eu segurei o riso e fiquei olhando
fixamente para ela, tentando passar alguma solidariedade.
Isso é cômico.
Finalmente, cheguei ao meu destino: um
foto qualquer da cidade.
Sentei ao lado da mocinha gentil com
ares competentes e entreguei os disquetes com as fotografias que eu
queria imprimir.
Decidimos o tamanho e o preço das
fotos e o horário para pegá-las.
Antes de sair, resolvi perguntar se
ali no estabelecimento era possível escanear fotos e qual seria o
preço.
Ela me disse que se fossem recentes
era tanto e se fossem antigas, dois tantos.
- Ah, que beleza! Então vocês fazem um
trabalho de restauração nas velhas fotos?
- Sim, mas, para isso cobraremos os
dois tantos mais outro tanto.
- Desculpe a minha ignorância, moça,
mas, eu acho que não entendi absolutamente nada.
- E pelo nada que eu entendi, o
scanner teria receio de entrar em contato com o papel idoso da
fotografia e ficar gagá?
- É por isso que fica tão mais caro
escanear uma foto antiga?
Saí de lá sem a explicação.
Mas, absolutamente decidida a mandar
arrumar o meu próprio scanner que já anda enfiando caraminholas no
fusível, querendo uma aposentadoria por tempo de serviço.
Andei por ali, por lá e por aqui, e
peguei as fotografias prontas.
Quando olhei, não pude acreditar.
As pessoas das fotos só possuíam uma
parte da cabeça.
Estavam sem testa e sem cabelos.
Reclamei de forma educada, mas, firme.
- Veja, falei para a moça que estava
me atendendo, as fotos estão mal enquadradas e vocês vão precisar
refaze-las.
- Claro, respondeu a moça, mas, a
senhora terá que pagar um pouco mais por isso.
- Como assim? Perguntei espantada.
- É o seguinte: para que a foto seja
enquadrada de forma correta, a senhora precisa pagar um preço
adicional por este serviço.
- Isto aqui é um foto? Perguntei,
arregalando os olhos e começando a babar.
- Sim, claro.
- Que susto, moça! Por um milésimo de
segundos achei que era um laboratório de pesquisas científicas,
daqueles que montam gente com pedaços de gente.
- Mas, me diga! Um foto não tem a
obrigação de fazer um trabalho decente?
- E nós fazemos, ela respondeu.
- Fazem? Perguntei colocando um enorme
ponto de interrogação ao final da frase irônica.
- Sim, senhora.
- Olha, moça, você não tem culpa de
nada. Mas, isso é a coisa mais pervertida que eu já escutei na minha
vida.
- Eu trouxe ótimas fotografias e vocês
me entregaram pessoas sem cabeça.
- E para ter as cabeças de volta eu
preciso pagar um adicional?
Desta vez, o ponto de interrogação ficou ainda maior, quase
preenchendo a loja e obrigando as pessoas que lá estavam a
participar da cena.
A mocinha, antes tão educada, fez um muxoxo quase malcriado e falou:
- As coisas aqui são assim.
- Tudo bem. Vou pagar pelas cabeças.
E assim foi.
Voltei algumas horas depois e consegui
pegar as testas e os cabelos que haviam ficado presos no
enquadramento automático do computador.
Ainda pude avistar lá no fundo da
máquina alguns olhos, orelhas, pés, mãos e até mesmo outras partes
que prefiro nem mencionar.
Que trágico!
Mas, esta é a era da automatização.
Precisamos nos acostumar.
Precisamos?
Sem gagueiras ou brincadeiras, isso
tudo é tra-gi-co-cô-mi-co.
É.
Pois é.
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