Carlos Augusto Viana


José Alcides Pinto

As águas do rio Acaraú te ensinaram, ainda menino, o grave movimento das palavras. E, desde então, uma guitarra te espera na noite flamejante. Uma guitarra, e suas cordas que estendem sobre o abissal olhar das amadas ou sobre o silêncio de cactos. Uma guitarra que constrói, sem degraus, uma escada. Uma guitarra que adormece o cansaço das lavadeiras. Uma guitarra que aponta, no escuro, o riso do ditador. Uma guitarra que cata siri, com as crianças, nos mangues do Recife. Uma guitarra que despe a moça de blusa azul e a pluma de seus sapatos. Uma guitarra que se estende sobre o longo caminhar das formigas e conhece de cor a sanha das urtigas. Uma guitarra que persegue os verdes abutres da colina e espia de cócoras o pão que o diabo amassou. Uma guitarra que, espinha do arco-íris impele navios como se fossem canções. II Guardas, dentro de mim, um povoado: o poste aceso escorado no oitãoda memória. Calado, conversas com tua gente: um moinho de vento girando sem sentido. No Alto dos Angicos, aprendeste a suportar todas as pragas, os presságios todos, tantas visões, os sofrimentos tantos. Desde então, compreendes os homens, debulhas suas espigas, aprendeste o amor e as veredas de suas sílabas. Desde então, recuperas pés soçobrados nos curtumes, mãos em chagas de espinhos, olhos derramados por sobre léguas em brasa. Desde então, adormeces nos cabelos de palha da amada ou rondas a madrugada como um lobo, porque, antes, certamente, contemplaste o poente que, em rugas, se dissolvia no peito azul da água de um rio imemorial. III Tua poesia és tu mesmo, e somos todos nós. Nós que pendoam nos labirintos noturnos. Nós que cosem e descosem dúvidas, anseios, boca esquecida num fragmento de tarde, olhos que tecem adeuses com finíssimas agulhas, mãos que catam siris e, da lama, fazem brotar a flor do poema. Tua poesia são os olhos sem cal do pássaro morto, a lucidez de um piano, o corvo a assombrar as estrelas, tuas horas e teu suor acumulados. Por isso carrego comigo o teu Pequeno Caderno de Palavras, Os Seres, os Cantos de Lúcifer, a Ilha dos Patrupachas, de onde fluem as águas, as pontes, o chão de apodrecidas frutas, o tortuoso vôo de um morcego. Lá, às vezes, só brota a flora vegetal das urtigas, sob os indiferentes pés da moça de preto, que, por ser um poema, é mesmo tua namorada. IV Um dia, desceste ao Vale dos Abutres e te anunciaste o guardião dos corpos insepultos, dançaste para os gatos e para tua própria morte. E como houvesse uma irremediável aurora, e como o cigarro se transformasse num corvo, e como o tempo nada mais fosse que tardes e montanhas incendiadas, costuraste, em silêncio, as melodias de um secreto carnaval.



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