Vitorino Nemésio

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova Como uma libra ou uma raiz, Dêem a minha roupa a uma mulher nova Para o amante que a não quis. Façam coisas bonitas por minha alma: Espalhem moedas, rosas, figos. Dando-me terra dura e calma, Cortem as unhas aos meus amigos. Quando eu morrer mandem embora os lírios: Vou nu, não quero que me vejam Assim puro e conciso entre círios vergados. As rosas sim; estão acostumadas A bem cair no que desejam: Sejam as rosas toleradas. Mas não me levem os cravos ásperos e quentes Que minha Mulher me trouxe: Ficam para o seu cabelo de viúva, Ali, em vez da minha mão; Ali, naquela cara doce... Ficam para irritar a turba E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação. Quando eu morrer e for chegando ao cemitério, Acima da rampa, Mandem um coveiro sério Verificar, campa por campa (Mas é batendo devagarinho Só três pancadas em cada tampa, E um só coveiro seguro chega), Se os mortos têm licor de ausência (Como nas pipas de uma adega Se bate o tampo, a ver o vinho): Se os mortos têm licor de ausência Para bebermos de cova a cova, Naturalmente, como quem prova Da lavra da própria paciência. Quando eu morrer. . . Eu morro lá! Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras, Pois quando me comovo até o osso é sonoro. Minha casa de sons com o morador na lua, Esqueleto que deixo em linhas trabalhado: Minha morte civil será uma cena de rua; Palavras, terras onde moro, Nunca vos deixarei. Mas quando eu morrer, só por geometria, Largando a vertical, ferida do ar, Façam, à portuguesa, uma alegria para todos; Distraiam as mulheres, que poderiam chorar; Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos, E levem-me - só horizonte - para o mar.


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