Por caminhos imprevistos vieram-nos as mãos três livros de
poesia de Álvaro Pacheco, intelectual moço do Piauí,
há muito com tenda armada no Rio de Janeiro. Os poetas nortistas
ou nordestinos costumam ser verbosos, mais na linha do reconhecimento do
que da explicação do mundo. Seus poemas gesticulam,
têm cores vivas e coros altissonantes. Ao contrário
dos mineiros, por exemplo, que trefilam o verso, sóbrios, medidos,
recatados. Assim, recebemos os livros com certa reserva, mas desde logo
tranqüilizam-nos ao saber que o poeta pertence à estirpe dos
Pacheco, na qual se destacaram figuras de talento no campo da política,
do Direito e até das letras. O talento resgata os impulsos.
Além disso, um dos livros vinha acompanhados do aval de Odylo Costa
,Filho que tem compromissos com o bom gosto e a seriedade literária.
Isso predispôs a leitura à aceitação.
E não nos arrependemos. Pasto da Solidão, Margem Rio
Mundo e Sonho dos Cavalos Selvagens são botelhas de generoso vinho.
Neles transita a veraz poesia, a que nasce da súbita catalisação
do momento poético idôneo e prolonga, aprofunda, acera o clima
encantatório no manuseio destro da forma. Vejamos se não
temos razão.
A metáfora do primeiro título, Pasto da Solidão, antecipa
ingrediente de segura validez. A recusa ao mundo quando não
é falsa e exila o artista das ligeirezas e banalidade da vida, os
condicionamentos burgueses, faz maturar a inquietação, conduz
à preparação do diálogo definitivo com o mistério.
Se não falham os meios de expressão, a obra produzida
reveste-se necessariamente das galas da beleza. Álvaro Pacheco
em certas passagens desse livro realiza versos de nobre inspiração
e requintada leitura. Anotamos: "O brado de esperança
era o desejo/ de não ser imortal, porém amante/ de terna
margarida florescente". O poeta adensa a atmosfera do seu viático:
"Pouco a pouco irmão o teu amor/ surgirá dos escombros dessas
sombras/ sólido, impávido/ incompreensível/ como uma
bela construção de pedra e cal". … uma linguagem econômica
e exata, surpreendente num poeta moço. E também moderno
no bom sentido do despojamento. Temos ainda no mesmo diapasão
tenso, substantivo: No ponto de não ser mais/ ou de ser
a vida toda/ e ter na ponta da unha/ sonho, sal, sangue, silêncio."
E se quisermos mais liberdade, isto é, ruptura com os apaziguamentos
da vida, ecos talvez de Fernando Pessoa, eis aqui um brado redentor:
Ah! você é um sujeito difícil de ser feliz, que
só serve mesmo para fazer a barba/ dolorosamente todas as manhãs."
Pasto da Solidão, apesar da precedência cronológica,
é dos três livros que oferece material poético mais
rico, mais frutuoso, menos epidérmico. Por certo, foi elaborado
na fase mais sofrida da existência do poeta, sofrimento decorrente,
sobretudo, do esforço anímico de desafiar e conquistar
o mundo circundante. À proporção que o poeta
se habitua ao mundo, adere ao meio físico, à platéia,
aos comparsas, às testemunhas e, por conseguinte, concede, transige,
mimetiza-se enfraquece-se o poder criador, a poesia esmorece e não
há ginásticas verbais ou recursos técnicos capazes
de fazê-la transcender. … assim até com os poetas maiores,
os audazes, os heróis das grandes contestações que
muitas vezes, para poupar-se, se repetem. Mitigados, vão perdendo
desconsoladoramente a comunicação com os estágios
superiores da poesia. Álvaro Pacheco, é claro, ainda
se encontra em fase de pesquisa formal, ainda não escavou
todo o fundo de sua mina órfica, mas já enfraquece no segundo
livro a modulação do canto. Margem Rio Mundo é
mais circunstancial, pois nele a paisagem protagoniza. E na verdade,
que fabricar de novo se tantos concorrentes célebres já esgotaram
a geografia nordestina? O rio, as estradas cruas, a vegetação,
o sol, as pequenas cidades, os tipos populares, tudo isso são dados
freqüentados que só ganhariam significação poética
em sutil transfiguração. Manipular esses temas não
vem a ser senão compromissos românticos com a terra natal.
Mas aqui e ali o poeta se descuida, esquece os horizontes enfocados e deixa
escapar a voz interior:
"Plantando minhas semente
nas pedras rubras da estrada
nos ventos acres do outono
nos olhos céu da manhã".
Outro lírio entre folhagens:
"Rio de duas cidades
dividido entre tristeza
uma ponte assim os une
não de aço, de pobrezas".
Finalmente, esta súbita e mais enérgica retomada do antigo
filão.
"Sei. Esta hora busca perder-me".
Em Margem Rio Mundo, de outra parte, notam-se tentativas menos felizes,
para não dizer frustradas, de desatar a linguagem, libertando-a
dos comedimentos léxicos e sintáticos. Em poesia confrangem
utilizações como estas: claraboiar-me, esfrangalhar-lhe,
afervento-me, escaldo-me, etc. Tais pecadilhos, porém, podem
rapidamente ser perdoados se se vai ao terceiro livro. O Sonho dos
Cavalos Selvagens, e ali nos reconciliamos com o nobre poeta de Pasto da
Solidão.
Não obstante os pequenos truques de composição, as
variações sincopadas do verso, mera cortesia aos trejeitos
em voga, a poesia ressurge recompondo-se em idioma próprio que empresta
singularidade e, portanto, autenticidade à mensagem. SÓ
se é poeta quando intuitiva ou lucidamente se possui o dom de desvendar
novos mistérios. O poeta é um inventor. A sua
fala não pode nunca ser uma dublagem. E nesse sentido, não
por inteiro, o que seria cobrar impiedosamente de autor tão novo.
Álvaro Pacheco é poeta. A contraprova está em
O Sonho dos Cavalos Selvagens.
Agora já não o move a paisagem contingente. Mas o amor,
a morte, a visão intemporal, a ‚ânsia de eternidade, a crueldade
do mundo, a queda e a dor dos homens, o flagelo do eu implacável.
Um verso como este foi temperado na angustia:
"Sonho de cavalos selvagens disparados pelo sangue".
Tem o sopro do desespero em vigília um verso desta dimensão:
"Como não ser aflito
com tudo em volta, tão entreaberto
e tão pouco tempo para a morte?"
Antes parecia que no seu ex-libris poético a divisa de Álvaro
Pacheco era o sonho, o sal, o sangue, o silêncio, quadratura de símbolos
da solidão. Entretanto, neste terceiro ato o amor sobe ao
trono, pois é de amor o mais natural e o mais belo de todos os seus
poemas, Mulher. O trecho reproduzido, remate do artigo, há
de convidar os leitores a repetir o encantamento que nos causou a poesia
de Álvaro Pacheco:
Ah! e quem explica este bicho invisível
em sua forma corpórea, carbonitrada,
que é uno e plural (a estrela palpável)
o agente completo do bem e do mal. |