Tendo estreado em livro com Os Instantes e os Gestos (1958), Álvaro
Pacheco manteve um silêncio de sete anos até ao aparecimento
de Pasto da Solidão, a que se seguiram , em breves intervalos, sete
outros volumes de poesia, tudo isso estabelecendo uma carreira altamente
considerada pela crítica e por bons conhecedores sem que o seu nome
se haja de fato implantado em nossa consciência literária
(tal como se reflete nas referências consagradas do colunismo especializado
e nas enumerações convencionais dos resenhadores).
Dispondo-se, segundo parece, a destruir esse muro de indiferença
(a indiferença de rotina que os habitantes da República das
Letras normalmente reservam para tudo o que não está na moda),
ele publicou sucessivamente em 1984 uma "Seleção de
Poemas" (Artenova), escolhidos na sua obra por Odylo Costa, filho, Rubem
Fonseca e Fábio Lucas, e a Balada do Nadador do Infinito (Record),
com o qual, aliás, transpõe as fronteiras fragmentárias
do "livro de poemas" para o território mais grave do poema filosófico,
meditação sobre o Destino que É, no fundo, toda grande
poesia, não no plano abstrato dos princípios e doutrinas,
mas a partir da realidade concreta que É a condição
humana ó o "homem absurdo" a que Camus consagrou em 1942 um livro
célebre, hoje tão esquecido ou, pelo menos, tão histórico"
e datado quanto a filosofia existencialista que ele então combatia
(o que não impediu passasse a ser visto, por causa dele, como "discípulo"
de Jean Sartre, equívoco que levaria anos para se desfazer).
Dois suicídios aparentemente inexplicáveis (como são
todos eles, mesmo quando o suicida deixa a tradicional nota explicativa)
puseram em movimentos no seu espírito o mecanismo interior que produziu
este longo poema, acrescido de alguns outros, à primeira vista esparsos,
que o completam e prolongam ó e é por a" que se liga ao famoso
postulado de Camus segundo o qual o suicídio é o único
problema filosófico verdadeiramente sério, não por
ser suicídio, mas por ser a única solução racional,
embora absurda, para o absurdo da condição humana.
Em outras palavras, o "único problema filosófico verdadeiramente
sério" É a morte, sobre o qual de resto, os filósofos
vêm meditando desde que há filósofos e que pensam:
um deles chegou mesmo a escrever em filosofar é aprender a morrer.
Assim como perceber o sentido mais profundo da poesia enquanto instrumento
de penetração nesse mistério, podemos acrescentar
por nossa conta à leitura de Álvaro Pacheco.
Apesar de tudo haver sido dito sobre a morte, observava Camus, nada
sabemos sobre ela, porque, na realidade, não há experiência
da morte". Só podemos falar sobre a morte dos outros, isto
é, a morte só admite uma explicação ou uma
interpretação "poética", neste sentido de que a poesia
aceita, por definição, o irracional ou o inexplicável,
enquanto tal explicação não existe" no plano filosófico
que, ao contrário e também por definição, só
pode aceitar o racional e o lógico Camus, "pelo simples jogo
da consciência" transformava em regra de vida o que era um convite
para a morte ó e recusava o suicídio. Mas, o poeta
no caso Álvaro Pacheco, não o aceita nem recusa, partindo
da situação absurda do suicida para uma meditação
sobre o absurdo não menos evidente da morte, quero dizer, da vida,
pois ambas se manifestam exatamente pelos mesmos sinais, são exatamente
a mesma coisa, conforme Machado de Assis escrevia num poema que merece
mais atenção do que lhe costumamos reservar.
Até que ponto a angústia existencial da morte está
dominando o espírito do homem Álvaro Pacheco É tópico
que não nos compete averiguar neste momento e cuja resposta, num
sentido ou outro, seria necessariamente indiscreta. Que lhe domina
o espírito enquanto temática de poesia, É mais do
que evidente nos seus últimos livros e, em particular, na Balada
do Nadador do Infinito. Nadadores do infinito, em certo sentido, somos
todos nós, na medida em que, para cada um, É infinito o tempo
finito que nos foi reservado pelo Destino ou, se quisermos, pela programação
genética (dois nomes diferentes para a mesma coisa). … a morte,
dizia André Malraaux, que transforma a vida em destino e, por isso
mesmo, essa É noção puramente retroativa, e não
projetiva, como geralmente se pensa; projetiva, e a longo prazo, é
a programação genética, que o suicídio, justamente
parece desmentir e recusar, visto introduzir um elemento de irregularidade
e inesperado num processo que se desenvolve com a progressiva periodicidade
de um mecanismo. Contudo, essa mesma irregularidade bem pode estar
igualmente programada: o que nos parece absurdo na morte resulta da nossa
insistência em lhe acrescentarmos dimensões metafísicas,
quando se trata de mero fenômeno biológico.
A nossa superioridade sobre os animais, dizia mais ou menos Pascal, está
em sabermos que vamos morrer, ao passo que eles não o sabem; podem-se
discutir as duas partes desse postulado, primeiro para verificar se trata,
de fato, de uma superioridade, e, depois para confirmar que os animais
não sabem que morrem. Tudo indica que sabem, no momento próprio,
a diferença estando em que só o sabem nesse momento, sem
parar a vida preocupados com perguntas sem sentido e sem resposta.
Ou que, como ficou dito, só podem ter respostas "poéticas",
essa, e somente essa, sendo a nossa indiscutível superioridade sobre
os animais.
A primeira parte deste livro composta de poemas construídos segundo
uma arquitetura estrófica comum, É a tradução
poética dessas noções em face do "fogo-fátuo"
que É a vida, não a vida vegetativa e filosófica,
creio eu, mas a "vida" como espírito imaterial, aquela "alma" que
as gravuras ingênuas e piedosas representavam como um homúnculo
que os moribundos expiravam pela boca no instante supremo; "de qualquer
lado/ do oceano da memória", diz o poeta nos espreita a vida", isto
É, a vida talvez não seja senão a maioria do vivido,
mais do que a vivência atual. Nessas perspectivas têm
outro sentido os registros internacionais com que Álvaro Pacheco
data os seus poemas e que [P muitos pensam tratar-se apenas de esnobismo
ou ingenuidade turística: É que a vida é sempre a
mesma, nas cidades mais exóticas ou nos ambientes familiares;
em Bali ou no pequeno vilarejo do Piauí as memórias nos afogam,
no próprio e no figurado, são elas a vida, de que só
nos "libertamos" (palavra expressiva!) como os suicídios de Álvaro
Pacheco, pelo mergulho definitivo nesse outro símbolo do esquecimento
e desintegração mineral que são as águas do
oceano. Nada disso nos informa sobre a qualidade propriamente poética
destas composições, mas É evidente que não
justificariam a leitura aqui proposta se não se situassem no plano
da grande poesia, não só apesar, mas por causa da sua obscuridade
eventual, das enigmáticas alusões e referências autobiográficas
que nem sempre podemos decifrar. |