Zunino Neto
Um Lado Qualquer de Alfredo
I
O ônibus pára.
Desde Alfredo e a marmita.
Desce metade da vida
que ainda nem começou.
Passos desacertados
levam o Alfredo cansado
pela velha calçada apertada
onde ele segue andando.
O jeito é interessante,
como se andar fosse,
naquele instante,
a segunda coisa mais importante
para um ser que quase não existe.
Mas Alfredo insiste.
E chega, enfim, à pobre casa.
Beija primeiro o filho mais novo e,
de novo, discute com a mulher doente.
Sem se dar conta
que ela já não entende,
Sem se lembrar
que ela nunca entendeu.
Alfredo é que não percebeu.
Cai a roupa nos pés latejantes.
Cai, gotejante, a água do banho.
Alfredo se lava e se deixa molhar.
Debaixo da ducha, de mente arejada,
consciência limpa e alma lavada
são vãs ilusões que Alfredo não tem.
II
E vai à cama também,
como se ao templo fosse.
Quanto vão longe
aqueles tempos doces
em que o menino Alfredo
só fazia brincar...
Mas, feito a vida, curta é a noite.
Esta chega ao fim
antes do sol e do sonho,
acordando o tristonho
e sonolento Alfredo,
que levanta cedo
e não pediu pra nascer.
Calçada, ônibus, caminho de revolta
onde ele solta mais passos desacertados.
Assim é a vida.
Mais uma vez,
o Alfredo e a marmita.
No trajeto dos buracos,
no cotidiano ingrato
de uma mente fraca
o destino encontra
o passageiro sem banco,
jogado no meio do canto
de um lado qualquer de Alfredo.
Dentro do peito franzino
vive a raiva do destino,
o futuro de um cretino
que Alfredo cansou de ser.
Dentro do corpo surrado
vive a dor do passado,
um Alfredo castigado
que tem pressa em morrer.
III
No descompasso da lenta agonia,
na praga da paga da saga do dia,
na busca incessante à própria alforria,
Alfredo suspira e se deixa levar.
Mas o tempo é bandido e teimoso;
insensato, insensível em seu jeito tinhoso,
parado na dor, instantâneo no gozo,
sem a mesma pressa de Alfredo em chegar.
Assim tão sofrido, coitado, abatido,
um Alfredo encolhido começa a chorar.
E assim tão doente, largado, descrente,
nem homem valente o consegue escutar.
Só se ouve um ruído, o lamento retido
de um Alfredo esquecido
que tem medo de ter medo.
Só se ouve a lamúria, um triste barulho.
O resto do orgulho é o choro de Alfredo.
De cada ponto que passa,
das ruas, das praças,
Alfredo tenta se esconder.
Como se cada ponto,
cada rua e cada praça
fosse uma página da desgraça
que não há como esquecer.
O sonho de Alfredo é pequeno,
menor até do que a própria alegria.
Esta, nem aparece; aquele, nem poderia.
IV
Se é tempo de paz na alma,
deve ser ainda de força,
e de silêncio também.
Porque o pobre Alfredo só fala quando,
diante do espelho, se cala,
por não enxergar alguém.
E lá vai o ônibus, lotado.
Vai Alfredo também, sozinho.
O Alfredo de nada,
fazendo promessas pra si mesmo,
querendo que a vida seja outra,
achando que a outra face da vida
pode ser melhor que a dor do fracasso.
O Alfredo sentado
permanece esperando,
permanece doído, Alfredo permanecido.
Metido em pensamentos fracos
ele tenta juntar os cacos
de uma vida que é inteira.
Parece a própria cadeira
em que senta descontraído
o fraco Alfredo, ensimesmado.
O mesmo Alfredo, enfraquecido.
Presenças incomodavam Alfredo,
que se incomodava em ver Alfredo beber.
Do meio da cara, um palhaço.
Do lado morto da vida, a vergonha.
À noite um Alfredo torto bebia e, no dia, apenas Alfredo.
Outra vez.
Alfredo imóvel, risível, inerte, sem graça.
Alfredo zero, que nem passa nem fica
e logo se complica com a simplicidade de existir.
O singular mais comum.
O qualquer um por aí.
V
Alfredo finge ser gente,
pensando na coragem que nunca teve.
Imagina como seria o sabor de uma certeza,
o prazer de uma decisão.
A importância da importância de um Alfredo anônimo.
Poderia ser Jerônimo...
Este é o crônico detalhe
da história de Alfredo,
cidadão do seu mundo,
que conseguiu ser a pedra de frente para o fundo.
De repente desperta
e acerta o compasso do seu pensar.
Sem demora, faz na hora a sua vez, a sua chance,
o grande lance para, enfim, mudar.
Abre os olhos e um sorriso ameno...
Decide então, sem mais nem menos,
ser o admirável Alfredo
que Alfredo sempre soube ser.
Ainda que sem querer
Num rompante de ódio,
dá o último adeus ao passivo passado, e
como o eterno desejo
que o Alfredo inconformado
sempre quis realizar...
Levanta-se!
E vai trabalhar.
Para que tudo seja,
de uma vez por todas,
do jeito que sempre foi.
Então o ônibus pára.
A linha chegou ao fim.
Desce Alfredo e a marmita.
Porque metade da vida desce assim.
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