Zemaria Pinto
Sobre poesia, poemas & poetas
Se o homem se esquecesse da poesia, se esqueceria de
si próprio. Voltaria ao caos original.
(Octavio Paz)
I - A ditadura do dicionário
Poesia versus poema. De tão antigo, o
tema pode parecer ao leitor menos atento um tanto esgotado. Nada
mais enganoso. É recorrente escrever, e falar, que fulano lançou um
livro de "poesias", sicrano recitou suas "poesias", fulaninha vai
lançar um livro de "poesias" etc. Vá ao dicionário e constate:
poesia é uma "composição poética de pequena extensão". Até quantos
versos, exatamente? - poderá perguntar o leitor cioso das precisões
matemáticas e/ou lingüísticas. Não sei. Mas, esqueçamos o que diz o
dicionário e caminhemos um pouco por esse movediço e improvável
terreno da teoria literária.
Poesia é o gênero literário,
subdivisível nas categorias épica, dramática e lírica. Poesia é a
experiência cósmica de um poeta, o conjunto de sua obra. Poesia pode
ser também o coletivo do fazer poético em um determinado tempo ou
espaço. O poema, por sua vez, é, para efeito didático, a unidade que
enforma o todo da poesia: é a composição, um conjunto de versos
dispostos de maneira arbitrária pelo poeta, obedecendo a cânones
preestabelecidos, estando entre estes, inclusive, a desobediência a
cânones preestabelecidos!
Poesia e poema são, portanto, dois
animais distintos: este vive sem aquela tanto quanto esta não
precisa daquele para ser. Um poema sem poesia, então? Claro, digno
da lata de lixo mais próxima, mas um poema. E quantos poemas são
perpetrados e quantos livros de poemas são editados sem poesia... A
contrapartida define um paradoxo insofismável: a poesia é um estado
do ser, é contemplação mística, é o i/logismo a serviço do
ir/racional - a poesia é. Ponto.
Há uma enorme carga de poesia em
Grande Sertão: Veredas, em A Paixão Segundo GH. Há poesia num quadro
de Van Gogh, num filme de Herzog, num pôr-do-sol no rio Negro, num
fim de tarde em São Paulo, num passo de contradança, e, com o perdão
da má palavra, também se encontra poesia num sorriso de criança. Já
o poema, o poema-coisa, o poema-com-poesia, traduz em palavras
aquilo que o artista-poeta discerniu no ser da poesia: a poesia
traduzida em música, a poesia das imagens, a poesia que inventa
línguas, remove palavras e fundamenta a linguagem.
A didática do dicionário, já não tenho
mais nenhuma dúvida, é um instrumento ideológico de coerção à
poesia: ao tentar reduzir o geral dando-lhe a mesma definição, e,
por extensão, as mesmas deformações do específico, procura, em
verdade, eliminar ou esquecer o caráter arquetípico primordial da
poesia - porque é através da palavra que o homem se aproxima do Ser
e de si mesmo. Ignorar essa relação é frustrar todo o acúmulo de
conhecimento produzido, desde Aristóteles às mais recentes
discussões sobre o caráter intersemiótico da poesia.
Para o leitor cúmplice que aceita que
poema e poesia são vocábulos cujos significados se interpolam mas
jamais se cruzam, ainda que sejam partes da mesma gênese grega
(poesia = fazer, poema = o que se faz), cito um exemplo bem mais
prosaico do reacionarismo do dicionário: ao nomear o feminino de
poeta como poetisa, diz que esta é uma "mulher que faz poesias".
Evidenciada a má fé (a conotação pejorativa para a palavra poetisa),
proponho a adoção definitiva do substantivo poeta comum aos dois
gêneros. A bênção, tia Cecília Meireles, que, depois do primeiro
espanto, me iluminou.
II - Da arte de fingir
Vimos o quanto é pernicioso o uso do
dicionário ao pé da letra, ignorando-se sutilezas próprias de uma
linguagem mais técnica e, por isso mesmo, menos vulgar. Mas não é só
o dicionário que trama contra a poesia. Quando um crítico confunde,
deliberadamente, a obra de um poeta com sua biografia, vendo
reflexos desta naquela, ele dá demonstrações de nada entender de
nada, caindo numa armadilha secular, que pretende ver na poesia,
unicamente, manifestações mentais limitadas ao "eu" do poeta.
No ensaio As Três Vozes da Poesia, T.
S. Eliot, identifica-as da seguinte forma: a voz do poeta que fala
consigo mesmo, ou com ninguém; a voz do poeta ao dirigir-se a uma
platéia; a voz do poeta quando cria uma personagem dramática. Eliot,
referia-se, respectivamente, à poesia lírica, à épica e à dramática.
Como a minha área de interesse é essa coisa indevidamente chamada de
"poesia lírica" (tema para uma outra discussão), vou-me ater
unicamente, à questão da primeira voz - "a voz do poeta que fala
consigo mesmo, ou com ninguém".
Acontece que o ensaio de Eliot, na
verdade uma conferência, apresentada em 1953, não traz nenhuma
novidade, uma vez que a crítica empobrecedora sempre achou que o
poeta lírico fala somente de si mesmo. Isso é de um reducionismo tão
estúpido, que é preciso começar explicando o próprio "caso Eliot":
longe de se considerar um poeta lírico, menor, via-se, unicamente,
como poeta épico e dramático, nessa ordem, o que facilitava
enormemente sua visão distorcida de que todo o resto é poesia
confessional.
O poeta lírico, é bem verdade,
confunde o leitor desavisado ao escrever na primeira pessoa. Mas o
"eu lírico" ou "eu poético", a voz emissora do poema, deve ser visto
pelo crítico/leitor como uma máscara (persona) do autor. O poeta
alarga sua percepção do mundo e verbaliza em valores positivos e/ou
negativos tal percepção, daí resultando o poema, que vai refletir
sua experiência pessoal, pois é disso que se alimenta a literatura:
da realidade recriada, transmutada, transfigurada.
Poesia é, pois, ficção. Do contrário
será confissão, e isso é uma tremenda bobagem, porque a ninguém
interessa a dor pessoal de ninguém. (A menos que ninguém se chame
Manuel Bandeira, por exemplo, que, ao individualizar sua dor,
mitifica-a. Mas esse é outro papo). Poesia também é fissão,
rompimento, fratura, fragmentação, reinvenção da linguagem.
Equacionando, para gozo dos estruturalistas:
Poesia = (ficção + fissão) - confissão
E não é mero jogo de fonemas. Vejamos
o caso extremo de Fernando Pessoa, criador de personas-poetas. Pelo
conceito de Eliot, Pessoa está mais para poeta dramático que lírico,
revelando-se este no interior daquele. Para mim, cada heterônimo
despe/veste máscaras diferentes a cada poema. Logo, Pessoa não é
apenas Caeiro, Campos, Reis ou ele-mesmo, mas muitos, muitos outros:
Vivem em nós inúmeros (...)/ Tenho mais almas que uma./ Há mais eus
do que eu mesmo (...). Mário de Andrade pegou isso legal, também: Eu
sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta (...). Eliot conclui seu
trabalho com uma constatação genial, se não fosse óbvia: "duvido que
em qualquer verdadeiro poema apenas uma voz seja audível". Menos
mal, não?
O que eu quero propor, afinal, em
comum acordo com o mestre britânico, é que o poeta lírico encarna,
em cada poema ou grupo de poemas, uma personagem específica, que
traz em si a carga de experiência do autor, mas não é ele. Para
ficarmos no âmbito da literatura amazonense, quando Tenreiro Aranha
escreveu, há duzentos anos, o antológico soneto da Maria Bárbara,
vestiu a máscara da mulher assassinada, despedindo-se do esposo: a
voz emissora era a da própria Maria Bárbara, personagem. Tenreiro
Aranha, o poeta-cidadão, por outro lado, exprimia-se por ele mesmo,
provavelmente, quando praticava aquele aulicismo sem-vergonha, que
marca a maior parte de sua obra conhecida, e não precisava fingir
que fingia sentir o que não sentia. Aliás, aquilo nem é poesia.
Estas reflexões remetem-me a uma outra
falsa crença: a inspiração. É desnecessário, por tudo o que já se
disse, enfatizar o caráter falacioso desse fantasma, mas é preciso
dizer em alto e bom som que sem muito trabalho não se fazem poemas,
não se constrói poesia. As musas não têm escolhidos: somos nós, os
poetas, que as escolhemos, que as buscamos incessantemente, as
assediamos através de muita leitura, pesquisa e exercício. O
devaneio não é um atributo do poeta, mas sim de todo aquele que
desenvolve um trabalho criador. E aqui não podemos esquecer
Coleridge, para quem "a imaginação é a condição primeira de todo
conhecimento".
A sinonímia poeta/profeta está
presente no imaginário ocidental desde Sócrates, via Platão, para
quem "é quando estão possessos e inspirados por um deus que eles
recitam todos esses belos poemas". As "antenas da raça", na verdade,
colocam-se à frente de seu tempo (profetas) porque usam a imaginação
com mais liberdade que os demais artistas. O poeta anda nu e tem
plena consciência disso, não fosse o sorriso maroto que lhe aflora
aos lábios, denunciando seu estado de vigília permanente em pleno
devaneio. Et tout le reste est littérature.
Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e
Fragmentos de Silêncio.
|