Ana Mary Cavalcante
Mitologias e mestiçagem em Alencar
[in Jornal OPOVO, 07.04.2005]
Iracema vista de fora, d'além Ceará. Em entrevista por e-mail, a
professora paulistana Marisa Lajolo discorre sobre a obra-prima de
José de Alencar
A distância foi proposital. Para
provocar uma visão além do próprio umbigo, o Vida & Arte conversa,
sobre José de Alencar e sua lenda cearense, com a pesquisadora
paulistana Marisa Lajolo. Professora de Teoria Literária na Unicamp
e leitora fiel de romances nacionais desde a meninice, Lajolo
privilegia Iracema em aulas sobre o Romantismo Brasileiro. ''Um
pouco como homenagem aos 140 anos da obra, mas também porque a obra
permite discutir bem a questão da formação de um sistema literário
brasileiro'', justifica, nesta conversa virtual. ''Para quem
escrevia José de Alencar? Que rastros da leitura possível, no Brasil
daquele tempo, podemos desentranhar do livro? O projeto literário
que Alencar explicita na obra faz sentido para o Brasil de hoje?
Para mim o curso está sendo uma chance de discutir estas questões,
que considero importantes'', soma, em meio ao discurso.
Para Marisa Lajolo - que também
coordena o projeto Memória da Leitura e, em dezembro passado, lançou
Como e Por Que Ler o Romance Brasileiro (Objetiva) -, o livro máximo
de José de Alencar ''é uma obra muito musical, sonora e, portanto,
ideal para leitura em voz alta, tentando resgatar, num curso de
Letras, o prazer (e a competência) da leitura oral bem feita'';
Iracema, em que pese o subtítulo dado pelo autor, ''Lenda do
Ceará'', é uma obra ''originalíssima, tropical e brasileira''.
Atemporal ainda, visto que os 140 anos de sua publicação sugerem ''presentificá-la
de forma radical'', nas palavras de Marisa Lajolo. ''Através, por
exemplo, da construção de um belo hipertexto do romance. Com todas
as possibilidades de cruzamentos e referências entre diferentes
linguagens, que o meio eletrônico permite, um hipertexto traria
Iracema definitivamente para o século XXI!''.
O POVO - Distante do contexto em que foi
elaborado, Iracema ganha as ressalvas de ''um nacionalismo
idealizador, indianista e ufanista da Independência e do
Romantismo''. Mas o que significou, à sua época, a história poética
da colonização nacional, contada por José de Alencar a partir do
amor entre o branco e o índio? Gostaria que a senhora considerasse
também o fato de Iracema ter recebido críticas, por exemplo, de
Franklin Távora, José Castilho e Joaquim Nabuco (o romance, apesar
de ser a obra mais popular de José de Alencar, não foi ''unanimidade
nacional'').
Marisa Lajolo - Não creio que ser ou deixar de ser ''unanimidade
nacional'' define a importância de um romance. Talvez até seja o
contrário: a polêmica é o que de mais interessante uma obra pode
causar. E um dos críticos que você cita - o Castilho - é personagem
de um caso curioso de política literária mais do que de crítica
literária: português e irmão do famoso escritor português que
participou da Questão Coimbrã (em síntese, uma polêmica literária,
em 1865, envolvendo nomes como António Feliciano de Castilho e
Antero de Quental e que abriu portas para o Realismo português),
talvez lesse os escritores brasileiros com olhos - digamos - ''lusitanizantes''.
Acho que não podia gostar mesmo do que lia...
OP - O ''indianismo romântico'' (não só de
José de Alencar; lembremo-nos também de Gonçalves Dias) mantinha a
fidelidade com um País há pouco liberto. Era necessária a invenção
de ''um passado heróico, mítico, lendário'', a construção de
''arquétipos de nacionalidade'' (aspas de estudiosos). A quem servia
José de Alencar, escritor e político, naquele momento: ao povo, ou à
pátria?
Marisa - A questão está colocada de forma um pouco retumbante:
pátria versus povo é artilharia demais para mim. E também não
saberia usar o verbo ''servir'' para discutir escritores e
literatura. Não acho que a literatura ''sirva'' a um ou a outro
segmento social, exceto em casos mais raros e explícitos de
literatura militante - como a de Castro Alves, que pretendia servir
(e efetivamente serviu!) à causa abolicionista. Mas penso que um
escritor escreve sempre para alguém, para um grupo de pessoas. E não
creio que, ao tempo de Alencar, houvesse muitos leitores disponíveis
entre o que hoje consideramos as classes populares.
OP - Antes de Iracema, José de Alencar tinha
escrito os romances Cinco Minutos (1856), O Guarani e A Viuvinha
(1857), Lucíola (1862) e Diva (1864). Depois, viriam tantos outros
(O Gaúcho, O Tronco do Ipê, Senhora, O Sertanejo...). Há uma
linha-mestra entre eles, influências recíprocas/intra-literárias
-atentando-se para o fato de que foi em Iracema que Alencar mesmo
explicitou o objetivo de uma literatura nacional? Iracema é a sua
maior obra, aliás? Um divisor de águas em sua literatura?
Marisa - Iracema é a melhor obra de José de Alencar. Creio que ela
expressa muito bem o caráter mestiço de nossa cultura em seus vários
níveis: começa pelo o enredo, com a união de Iracema e Martim;
prossegue na tentativa de criação de uma língua literária brasileira
com elementos portugueses e elementos indígenas; e arremata-se no
forte substrato de oralidade com que Alencar torna cearense,
brasileira e latino americana as matrizes do gênero romance que
importamos da Europa e que foi preciso transculturar.
OP - Ao preparar esta entrevista, deparei-me
com a informação de que Iracema teria inspiração direta do livro
Atala e Renée (escrito pelo francês Chateaubriand, em 1801). Na obra
estrangeira, tem-se, justamente, a construção dessa imagem do ''bom
selvagem''. A senhora percebe ligações entre Alencar e
Chateaubriand, por exemplo? Ou entre Alencar e outros autores com
quem se acostumou a fazer o diálogo (Alexandre Dumas, Alfredo de
Vigny, Victor Hugo, Walter Scott, o próprio Machado de Assis...)?
Marisa - Um autor sempre escreve um pouco daquilo que lê... E
Alencar, com certeza, leu seus contemporâneos d'além mar. Mas sua
Iracema é originalíssima, tropical e brasileira.
OP - À época da publicação de Iracema, 1865,
qual era o contexto literário mundial e como José de Alencar atuava
nesse cenário maior? Ele e Iracema tinha/tiveram projeção e
influência noutros países?
Marisa - O contexto literário mundial, na segunda metade do século
XIX, parece que já deixava para trás o clima romântico e as
paisagens bucólicas, migrando para o que, depois, passou a ser
conhecido como Realismo. Madame Bovary, de Flaubert, é de 1857. Mas
o gosto pelo exótico, pelas paisagens distantes e misteriosas - como
era a América para a Europa leitora daquela época - não desapareceu.
Muito cedo, o livro de Alencar teve traduções para diferentes
línguas e, portanto, parece ter circulado para além das fronteiras
verde-amarelas (Lajolo se refere a traduções para o inglês e o
espanhol, uma delas realizada pela esposa de Richard Burton -
diplomata inglês que morou em Santos/SP, no século XIX).
OP - O escritor José de Alencar tinha um
projeto de ''brasilidade'' para o teatro e a literatura. (Ao que
parece, obteve êxito na sua empreitada; legou-nos os romances
indianistas, históricos, regionalistas e urbanos apontados como
sínteses possíveis dos vários ''Brasis''). Em Iracema, ele deixou
claro: ''Verás realizadas nele minhas idéias a respeito da
literatura nacional''. A prosa poética vinda da língua indígena é
uma dessas idéias. O que mais pode ser visto, nesse sentido, em
Iracema?
Marisa - A moldura do romance - representada pelas cartas que,
respectivamente, o abrem e fecham -, a definição da obra como
''lenda'' e as constantes alusões a ter o livro sido inspirado por
''histórias ouvidas'' é a grande marca de brasilidade do livro.
Marcas de oralidade numa cultura de uma tradição leitora tão
rarefeita como a nossa têm uma importância muito grande.
OP - É possível separar linguagem e conteúdo
(em uma obra como Iracema)? Porque - se são vistos, hoje, aspectos
''artificiais de nossas origens e o perfil europeizante e
cavalheiresco de nosso índio'' (aspas de críticos modernistas) - a
linguagem brasileira deste poema em prosa não é atingida pelos
estilhaços (ainda hoje é ressaltada como original e moderna)...
Marisa - Não sei se entendi a pergunta. Ela parece apontar para uma
perspectiva crítica negativa face ao conteúdo do livro e positiva
face à linguagem dele. Se é isso mesmo, acho difícil defender a
posição, já que para mim conteúdo e linguagem não se descolam um do
outro.
OP - No prólogo da primeira edição de Iracema,
José de Alencar oferece: ''O livro é cearense. Foi imaginado aí, na
limpidez desse céu de cristalino azul (...). Escrevi-o para ser lido
lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce
embalo da rede, entre os murmures do vento que crepita na areia, ou
farfalha nas palmas dos coqueiros''. O que torna a ''lenda do
Ceará'' universal?
Marisa - Depende do que se entende por universal. Posso fazer uma
leitura política de Iracema na qual se leia a morte dela como
expiação pela traição de seu povo. Ou como imagem da destruição de
uma cultura nativa pela invasão estrangeira. Nesta última
interpretação, Iracema faria parte de uma linhagem de mulheres
indígenas que morrem no bojo de uma relação amorosa assimétrica:
penso aqui em Moema e em Lindóia como antepassadas de Iracema. Ou
seja, os traços de ''feminino'' e de ''invadido'' podem
universalizá-la.
OP - Uma obra se torna clássica também por se
tornar atemporal. Além de estar inserida na época determinada em que
foi produzida (e refleti-la), ela vai adquirir, em tempos mais
distantes, outros significados, novas leituras. Como a senhora
transporta Iracema, hoje, para a sala de aula da Unicamp (São
Paulo)?
Marisa - No curso de Romantismo brasileiro que me coube neste
semestre, decidi privilegiar Iracema. Um pouco como homenagem aos
140 anos da obra, mas também porque a obra permite discutir bem a
questão da formação de um sistema literário brasileiro. Para quem
escrevia José de Alencar? Que rastros da leitura possível, no Brasil
daquele tempo, podemos desentranhar do livro? O projeto literário
que Alencar explicita na obra faz sentido para o Brasil de hoje?
Para mim o curso está sendo uma chance de discutir estas questões,
que considero importantes. Mas tem também o lance de preparar meus
alunos, futuros professores, para trabalharem Iracema com seus
futuros alunos de ensino fundamental e médio, para os quais a
discussão acadêmica talvez não tenha importância nenhuma. Além de
ser uma obra canônica, é uma obra muito musical, sonora e, portanto,
ideal para leitura em voz alta, tentando resgatar, num curso de
Letras, o prazer (e a competência) da leitura oral bem feita.
OP - E o que pode nos dizer sobre a recepção
desse clássico, atualmente, pelos alunos? O que tem sido explorado,
por exemplo, em trabalhos de pesquisa sobre Iracema, hoje?
Marisa - Não conheço muito extensamente a atual produção sobre a
obra dele. Alguns trabalhos que discutem, por exemplo, o
protagonismo de Iracema são interessantes. Feminismo avant la lettre?
Acho que não, mas não deixa de ser interessante a observação de que
todas as iniciativas amorosas, no livro, são tomadas por Iracema.
Por outro lado, a discussão dos efeitos de sentido dos rodapés de
Alencar também sugerem que ele próprio tinha consciência dos riscos
da recepção do livro e tomava todas as providências a seu alcance
para que esta recepção fosse a que ele desejava. Neste sentido,
tanto as cartas ao Dr. Jaguaribe quanto os rodapés são caminhos
promissores para os tão necessários estudos da recepção pretendida
por Alencar para esta sua obra.
OP - Há quem defenda os 140 anos da publicação
de Iracema como data importante também ''por reafirmar a dimensão de
um mito num País que confere pouco valor aos seus heróis''. Mito e
herói não são patamares que mais afastam do que aproximam? Como
torná-los (os mitos e os heróis do passado nacional) presentes?
Marisa - No caso de Iracema, acho que a questão de afastamento não
se coloca. Iracema não ameaça nada nem ninguém. O leitor
solidariza-se, sofre com ela e chora sua morte. Iracema é
simultaneamente forte e frágil. Até certo ponto, é dona de sua
vontade. Mas essa autonomia tem limites e termina por conduzi-la à
morte. Mas parece que muitos leitores se identificam positivamente
com ela. É assim, pelo menos, que se pode interpretar o grande
números de meninas que recebem seu nome, talvez por via de
lembranças de leitura de seus pais - o mais das vezes, aliás, de
suas mães... Essa popularidade do nome, e as constantes
re-escrituras da história em diferentes linguagens, tornam Iracema
uma figura muito familiar, muito presente na cultura brasileira.
Imagino que uma forma original e instigante de celebrarmos seus 140
anos seria presentificá-la de forma radical. Através, por exemplo,
da construção de um belo hipertexto do romance. Com todas as
possibilidades de cruzamentos e referências entre diferentes
linguagens, que o meio eletrônico permite, um hipertexto traria
Iracema definitivamente para o século XXI!
Sugestões de Leitura
Iracema - edição fac-similar, lançada em 2004 como
projeto do escritor Virgílio Maia. Juntam-se ao texto original de
1865, uma apresentação do editor Cláudio Giordano, um ensaio crítico
do professor e pesquisador Sânzio de Azevedo, a crítica feita,
então, por Machado de Assis, um soneto de Virgílio Maia e
ilustrações de Côca Torquato. Co-edição da Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo e Oficina do Livro, 207 páginas. No site
www.imprensaoficial.com.br, o livro está em promoção por R$
36,00.
Romance de Iracema - cordel escrito por Alfredo Pessoa
de Lima, poeta e advogado paraibano, reeditado por conta dos 140
anos do romance de José de Alencar. Com fac-símile da capa da
primeira edição e ilustrado com xilogravuras. Tupynanquim, R$ 4,00.
Outras informações: 3217.2891 ou pelo e-mail
kleviana@ig.com.br.
Iracema - versão livre do romance de José de Alencar,
elaborada por Ricardo Guilherme e Karlo Kardozo, com ilustrações de
Descartes Gadelha. O livro guarda o espírito do ''contador de
histórias que nas aldeias ou nos terreiros reunia a sua volta
ouvintes atentos à experiência de imaginar personas, situações e
cenários, compartilhando, assim, da fabulação de alguém que
dramatiza e comenta ações'', escrevem os autores. Demócrito Rocha,
Coleção Novas Velhas Histórias, 60 páginas. R$ 21,00 (preço
sugerido).
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