Ana Mary Cavalcante
A índia que inventou o país
[in Jornal OPOVO,
07.04.2005]
Este mês, a primeira edição do
romance Iracema - obra mais popular do escritor cearense José de
Alencar - completa 140 anos de publicação
Iracema - a índia tabajara idealizada por José de Alencar
(1829-1977), que se envolve com o colonizador português Martim
Soares Moreno, parindo daí a raça brasileira - é considerada o ícone
do Estado. Ao longo do tempo, diversas Iracemas foram sedimentadas
no imaginário cearense. Fortaleza já expõe quatro estátuas da serva
de Tupã, a contar desde 1965. Fora as virgens de carne, osso e
desesperança, que vagueiam pelas ruas; e a ''Iracema pin-up'
(expressão do jornalista Flávio Paiva) do Big Brother Brasil 2005. A
mais nova estátua foi encomendada para iniciar o calendário de
celebrações pelos 140 anos de publicação da primeira edição do
romance Iracema; está no Palácio do Governo: 92 mil pedaços de
cristal refletem a imagem das pessoas e do lugar, segundo concepção
do artista plástico Francisco Zananzanan.
O livro de Alencar, uma canção do exílio em prosa indígena poética,
tão grande quanto a personagem, tornou-se referência do gênero
romance no País. É herdeiro do Romantismo, no que a escola tem de
mais retórica, sonora e subjetiva. Mas - e, talvez, principalmente -
legou à literatura cearense/brasileira um patrimônio importante(s)
da nossa(s) cultura(s). ''Os clássicos são clássicos porque foram
absorvidos por sua época e, em épocas seguintes, foram
redirecionados. Hoje, voltamos a ler e a se encantar com a beleza da
linguagem, com a delicadeza com que José de Alencar homenageia sua
terra'', atenta Cleudene Aragão, professora da Universidade Estadual
do Ceará e coordenadora de política do livro e de acervos da
Secretaria da Cultura e Desporto do Estado (Secult).
Às voltas com o ano de homenagens (iniciado em fevereiro, a partir
da estátua de Zananzanan, e com ápice em outubro), Cleudene responde
pela Secult sobre a programação oficial, partilhada com outras casas
- Universidade Federal do Ceará, Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura e secretarias do Governo, por exemplo. O que vem por aí:
Simpósio Casa de José de Alencar (de 4 a 6 de outubro) e a Festa do
Livro e da Leitura de Aracati (na seqüência), a conversa acadêmica
de praxe mais pitadas de arte. ''José de Alencar já disse que (o
romance) era uma lenda do Ceará. Uma forma poética de chegar perto
do que somos. Iracema representa os habitantes primitivos do Ceará e
de toda uma cultura cultura que herdamos. Temos que aproveitar esse
calendário para lembrar essa herança indígena. Por exemplo: na
varanda do prédio mais luxuoso da Beira-Mar, tem uma rede
balançando'', reafirma Cleudene Aragão.
No pacote da Secult/UFC, há também o projeto de uma edição,
''caprichada'' - como diz o autor, Virgílio Maia -, de Iracema.
Virgílio, que já cuidou da publicação fac-símile da primeira edição
(em 2004), explica que o novo livro tem como ponto de partida a
edição de 1910 (oitava, na lista), feita por Mário de Alencar (filho
de José de Alencar). Entre as novidades, as ilustrações pretendem
ser um ensaio fotográfico em torno da sedutora estátua criada por
Zenon Barreto - em 1996, Praia de Iracema. Outra: no prólogo escrito
pelo professor e pesquisador Sânzio de Azevedo (UFC), tem-se o olhar
minucioso sobre as diferenças entre os textos assinados por José de
Alencar. ''Alencar modificou várias coisas. Quando Machado de Assis
escreveu sobre Iracema (em crítica para a edição de 1865), não leu
esse texto que conhecemos'', adianta Sânzio, valorando as inserções
posteriores. Em seu trabalho de artesão, Alencar refaz frases,
substitui palavras, precisa lugares.
''Iracema é, sobretudo, um livro de imagens; José de Alencar
organiza uma memória imagética'', defende o diretor do Museu do
Ceará, historiador Régis Lopes. Sob essa tese, está sendo preparada
a exposição Edições de Iracema, reunindo cerca de 50 publicações do
romance - abertura agendada para o próximo dia 18, com a palestra
''Iracema em Cordel'' (ministrada pelo professor e pesquisador
Gilmar de Carvalho) e o relançamento do livro-cordel Iracema a
Virgem dos Lábios de Mel (de João Martins, original da primeira
metade do século XX). A maior parte do acervo da exposição é do
setor de obras raras da Biblioteca Pública Governador Menezes
Pimentel. Foco nas imagens, ilustrações dos anos 20 a 90.
''Escolhemos o objeto livro para mostrar como Iracema é um livro
múltiplo. A forma pela qual se ilustra o romance nos mostra uma
Iracema mais romântica, mais moderna, com traços econômicos, uma
Iracema que parece que vem de Hollywood...', aponta Lopes.
Em anexo, continua o historiador, ''o pensamento sobre a História do
Ceará. Precisamos reestudar Iracema - que não é, somente, o índio
idealizado; é muito mais. Alencar queria criar um mito fundador para
a nação, um passado para o Brasil através de um índio heróico.
Precisamos de uma imaginação nacional, essa é a grande questão. E
ele fez essa imaginação a partir de uma imaginação cearense''. Para
Régis Lopes, José de Alencar quis estabelecer, pela maternidade
indígena, uma relação de pertencimento entre brasileiros e Brasil.
''Iracema, hoje, é uma leitura que faz a gente pensar sobre a
memória. Qual é a memória que vamos ter em relação ao nosso
passado?', conclui, com a pergunta que não quer calar.
|