Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Ana Mary C. Cavalcante


 

O silêncio transgressor

 

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

27.06.2005


 

A escritora Jussara Salazar, criada entre o sertão pernambucano e a urbe curitibana, chega a Fortaleza para lançar Natália, conjunto de poesias. Ela conversa com os leitores amanhã, no Programa Literato, e quinta-feira, no projeto Inéditos e Dispersos. Por e-mail, lança iscas

 

Ao final de Natália, livro de poesias da escritora Jussara Salazar e que carrega o silêncio de uma tia-avó desaparecida com um amor militar no rastro de Lampião, uma pista. ''Natália interdita; destituída da história (familiar) por contravir as regras do jogo. Passa-se a punir o Nome (Natália se re-significa em sua dissolução) e o novo precepto será: não nomearás. Natália: membro amputado, late, cangaceira, nessa fuga'', escreve Vítor Sosa, poeta, artista plástico e crítico literário. ''Se a tradição e a transgressão têm sido as duas caras que nunca mesclam-se de uma mesma moeda, a poesia é a inconcebível mistura dessas incomunicáveis caras da semelhança. A partir da tradição da linguagem, o poeta - natural contraventor - transgride as normas do dizer e nomear o mundo: destitui, desmembra e desmantela a bela e dócil mesa da significação'', continua Sosa, mexendo nas gavetas da escrivaninha de Jussara Salazar.

A autora - também artista plástica e designer, nascida sob o sol de Pernambuco e radicada em Curitiba - entende a literatura a partir de uma ''linguagem intertextual e sígnica. Tudo é invenção, tudo é riqueza semântica e sintática'', diz sobre Natália, nesta entrevista por e-mail. Mais: ''A idéia do livro, da maneira como foi escrito, vem de algum tempo; venho buscando isso desde os primeiros poemas que escrevi - trazer à tona uma espécie de mitologia singular e humana''. Por aí flui esta conversa virtual, antecipando os encontros de Jussara Salazar com os leitores cearenses; a escritora participa do Programa Literato (mantido pelo Centro Cultural Banco do Nordeste), amanhã, e do projeto Inédito e Dispersos (idealizado pela Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza), quinta-feira próxima.


OP - Proponho começar este passeio por Natália, partindo de seu imaginário. O que lhe contaram sobre essa tia-avó que seguiu o rumo do coração e desapareceu na poeira de Lampião?

Jussara Salazar - Gostaria de lembrar que, no livro, a referência à Natália é apenas uma dedicatória na primeira página, uma nota do desaparecimento de alguém que nunca conheci, que foi banida da história de nossa família. Mas essa pequena nota tem muita força e coloca-se como uma direção a ser tomada. A idéia do livro, da maneira como foi escrito, vem de algum tempo; venho buscando isso desde os primeiros poemas que escrevi - trazer à tona uma espécie de mitologia singular e humana. Em minha família, as pessoas gostam muito de contar histórias. E a história da minha tia-avó foi repetida inúmeras vezes, até que percebi que era uma não-história, era a história contada para não se contar, pois a personagem principal estava interditada, proibida, inexistia em nossa vida. Não pensei em revelá-la tão somente, mas, a partir dessa não-história, criar uma relação entre a vida e a morte, tentar decifrar essas ''zonas de silêncio'' entre a ficção e os fatos, partindo, inclusive, da idéia de que toda ficção é pura realidade. Borges, no Jardim das veredas que se bifurcam, nos adverte sobre a possibilidade da criação dos ''vários futuros'', da bifurcação no tempo, representada através da parábola sobre o tempo que omite a própria palavra ''tempo''. Omitir uma palavra, segundo ele, é o modo mais enfático de indicá-la. Natália surgiu assim, como a própria vontade de escrita, soberana e intransferível.


OP - E o que você recriou, silenciosamente, nesse tempo da ausência? Por onde você imaginava sua tia-avó...

Jussara - Octavio Paz escreveu sobre as ''zonas de silêncio'', dos abismos e fendas que separam a vida e a obra do artista, separam aquele que inventa, cria, daquele que vive. Há alguma coisa que está na obra e que não está na vida e, para compreender um livro, é preciso atravessá-lo. Isso faz-se, primeiro, nessa zona obscura e inconsciente, que salta da vida comum para esse abismo e, numa espécie de ascese, transforma-se em criação, poesia, imagem. E não basta dizer que uma obra é produto da história; é preciso acrescentar que a história também é produto dela. Nunca imaginei que escreveria aquela dedicatória para ela. Tudo aconteceu de modo inconsciente, necessário quando pensei o livro. Imagino que ela nem esteja mais viva.


OP - Neste caminho, gostaria que você contasse um pouco daquela cobra coral em suas sandálias de criança, daquele avô cinéfilo que reservava nove poltronas no cinema para a família, daqueles mortos que levam uns aos outros... Alguma memória dos mundos em que você cresceu (o sertão nordestino e a urbe curitibana), matéria-prima para a poesia.

Jussara - Como disse, em minha família existe o hábito das histórias e, com elas, confundem-se realidade e imaginação. Meu avô era um homem de livros, gostava de ler e era um apaixonado por cinema. Naquela época, na pequena Arcoverde, onde começa o sertão de Pernambuco, tinha por hábito ir, todos os dias, ao Cine Bandeirantes, onde encontrava as nove cadeiras reservadas para ele, minha avó e os sete filhos. Isso foi decisivo em minha formação, essa paixão pelo cinema, pelos livros e pela arte. Lembro de uma temporada lá, onde, em um passeio, uma cobra coral enroscou-se em minha sandália, em toda sua beleza, delicadeza e perigo. São imagens que recordo, entre a paisagem agreste e minha vida em Recife, cidade de águas, de liquidez e salsugem. ''Um morto é quem mata o outro morto'', segundo o poeta cearense/pernambucano César Leal, um decassílabo, é uma sarabanda sobre a morte que nunca é a nossa mesma, mas sempre a do outro, e assim inicio o livro.


OP - Você não gosta que reduzam sua obra à simplicidade dos rótulos ''regionalista'' e ''feminina''. Também prefere se desviar das ''histórias familiares'', de um ''livro sobre o cotidiano''. E, quando você fala que os poemas de Natália ''não são lembranças, e sim literatura'', o que quer dizer? O que é literatura para você, da qual você se serve?

Jussara - Creio que qualquer escritor nunca deveria ser rotulado por gêneros dessa natureza reducionista. A linguagem ordena-se de maneira mais universal e, como dizia Mallarmé, ''carregada de sentido''. Quando afirmei que o livro não era apenas ''lembranças'', mas literatura, estava me colocando no ponto dessa linguagem intertextual e sígnica. Quer dizer, o livro parte de uma realidade mitológica pessoal e real, mas é uma construção literária; não são depoimentos auto-biográficos. Tudo é invenção, tudo é riqueza semântica e sintática. O leitor, o outro com quem dividimos o livro, vai penetrar nos códigos de linguagem que o livro propõe e vai se colocar já em outro lugar, com suas próprias experiências de vida. Um livro dentro de muitos livros. E esse grande hipertexto coletivo e aberto é um dos pressupostos do que seria literatura.


OP - E como você subtitula o livro Natália? De contos ou de poemas? As duas coisas? Ou nada disso?

Jussara - É um livro de poesias. Do ponto de vista formal, opera entre as margens da linguagem, mas os versos correm livres pelo texto, me parece muito claro.


OP - No seu modus operandi você se reconhece ''adepta de tons modernistas''. Quais tons?

Jussara - Concordo com Augusto de Campos, quando afirma que os pressupostos do modernismo ainda são vigentes e que ''pós-moderno'' é um conceito de contornos indefinidos, pouco sustentável, parecendo antes um rótulo que serve de pretexto a ecletismos de índole conservadora - na verdade, pré ou anti-modernistas. Somos modernos, sim, com toda memória e história a que temos direito.


OP - Conte-nos um pouco sobre o seu processo de criação, seu artesanato com a palavra. Você tem pressa de falar, diante da velocidade do mundo?

Jussara - Não sei que pressa de falar seria essa. Às vezes, um texto pequeno ou um livro levam muito tempo para serem construídos, para existirem, e mesmo para serem lidos. Meu tempo se processa lentamente e penso, escrevo e leio muitas vezes até achar que, como leitora de meu próprio texto, algo me satisfaz. Muitas vezes, travo verdadeiras batalhas com um pequeno texto. Ítalo Calvino diz que a rapidez na poesia causa deleite e agrada apenas quando apresenta uma turba de idéias simultâneas, pensamentos, imagens, sensações espirituais que fazem a alma ondular nessa abundância.


SERVIÇO

Natália - poesias da escritora pernambucana Jussara Salazar. Travessa dos Editores, 134 páginas. R$ 25,00 (preço sugerido). A autora participa, amanhã (28), do Programa Literato - às 19 horas, no Centro Cultural Banco do Nordeste (Rua Floriano Peixoto, 941, Centro); entrada franca. Informações: 3464.3177. E, quinta-feira (30), Salazar é a convidada do projeto Inéditos e Dispersos - às 19h30min, no Mercado dos Pinhões. Entrada franca. Informações: 9161.5205 (Eduardo).

 

 

Jussara Salazar

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30.01.2006