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			Aluysio Mendonça Sampaio 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
			
			Cidade invadida 
  
			  
			
			A cidade foi invadida. Gatos metálicos 
			tomaram-na de assalto, correndo incessantes por áspero chão 
			cinzento. Para qualquer lado que se dirigisse, ali estavam eles, 
			frieza de aço, miagem contínua. Era pior que rugir de leão, igual a 
			sussurro de vento tempestuoso batendo em teto de zinco, dia e noite. 
			
			Pareciam-lhe a princípio inofensivos e 
			quase garbosos no deslizar fluente – agradável até o miar mal 
			murmurado. Só a princípio. Depois apercebeu-se que tinham corpo e 
			garras metálicas, de fácil cravar em carnes flácidas. Daí nasceu-lhe 
			o medo, no começo ínfimo, em pânico após transformado. Não tanto por 
			si, mas pelo pássaro: único no universo, luminosas plumas 
			multicores, cantar extasiante, leveza de vôo, porte de bailado 
			mágico. 
			
			Costumava grudar-se-lhe ao colo, em 
			doçura de afagos: fragilidade sentida. Precisava protegê-lo, 
			indevassável abrigo contra as garras dos gatos invasores. Com que 
			tristeza passou a impedir-lhe a saída, fechando a janela antes 
			aberta ao sopro da aragem e à azulência do céu. Deu o pássaro para 
			ficar triste, mas não deixava de bicar a vidraça, intransponível 
			transparência entre ele e o espaço. 
			
			Imaginou, então: o interior da sala 
			não poderia ser redoma e acaso os gatos se enfurecessem quebrariam 
			os vidros, invadindo o âmago do refúgio. Além disso, não poderiam 
			permanecer toda a vida, ela e o pássaro, entre paredes, do mundo 
			isolados por grades de medo. 
			
			Decidiu construir uma gaiola. Ela 
			própria a fez, paciente aranha a fiar teia protetora, de férrea 
			resistência. Depois colocou o pássaro em seu interior, docilidade 
			inesperada mesmo no amacio de amores e carícia. 
			
			Todos os dias, gaiola aconchegada ao 
			peito, saía. Via, assustada, passarem céleres os gatos furiosos. 
			Atravessava a rua a correr, fugindo dos metálicos felinos. 
			
			Chegava ao topo e, lá de cima, olhava 
			a cidade embaixo, os gatos serpenteando as ruas. Não soltava, porém, 
			o pássaro da gaiola, que poderia ele escapar-lhe e, talvez, cair em 
			garras imantadas. Na gaiola protegido, o pássaro contemplava o céu 
			azul, o verde das árvores e cantava, liberta alegria extravasada. 
			Nunca se ouvira cantar tão belo assim! 
			
			Esquecia o mundo, os outros e até o 
			medo se lhe apagava. 
			
			Foi quando aconteceu. Vendo o gato 
			diante de si, logo pressentiu a ameaça. Apertou a gaiola contra o 
			peito, firme atitude de defesa. Já não miando e quase a rugir, o 
			gato aprestava o bote, mas o imobilizava luminosidade rubra, a 
			incandescer-lhe os olhos faiscantes. 
			
			O assalto, porém, foi brusco. Garras 
			afiadas cravaram-lhe a carne, derrubando-a ao chão e de pronto 
			romperam a gaiola: gelatinou-se a grade.  
			
			O pássaro nem piou.  
			
			Na queda, ainda viu ensangüentada 
			mancha ao lado, no chão de asfalto – cinzento como o céu distante, 
			os prédios, os gatos e o fundo de sua própria alma. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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