Marigê Quirino Marchini
Duas poéticas: Noite Azul,
Ásperos Versos
A poesia de Aluysio Mendonça Sampaio,
recolhida nesta coletânea poesia, às vezes, de bela apresentação
gráfica, capa do autor (excelente desenhista), nos apresenta algumas
surpresas. Uma é a emoção de reencontrarmos Noite Azul, epopéia
folclórica, se podemos inventar esse termo, em que figuras como
Macunaíma, Malazartes, Saci, Negrinho do Pastoreio, Curumim, este
último, identificado pelo autor como o povo, se encontram num
cenário tropical, conversando sobre a Árvore de Ouro (Árvore da
Vida, árvore da literatura?). Esse belo livro, publicado em 1971,
tem lugar cativo em nossa memória.
Noite Azul ou "de como Pedro
Malazartes aprisionou a noite para ficar com a Árvore dos Frutos de
Ouro", é uma alegoria inspirada no folclore brasileiro, como diz o
autor; Malazartes, de além-mar, vai dialogar com Curumim sobre as
riquezas desta terra a que aportou. Malazartes quer a Árvore de
Ouro, que Curumim desconhece. E assim, de conversa em conversa, de
aventura em aventura, ora em versos ritmados, ora em prosa livre e
lírica, vai o autor construindo sua Noite Azul, que cairá sobre os
homens como uma dádiva. "Azul seja a vida / como esta noite azul /
dos meus sonhos.//E todos os homens serão azuis/ na mesma noite azul
de todos." Trata-se portanto de uma alegoria sobre a esperança, que
o autor só crê concretizar-se através do amor.
Desse livro Aluysio Sampaio trouxe
para poesia, às vezes, também o lirismo de poemas de "sempre-amar",
onde o cotidiano, a ternura, um relacionamento amistoso com a vida,
apesar das desesperanças, se faz presente.
Já Obscura Noite e Ásperos Versos são
antídoto de Noite Azul, preparando o leitor para as "oitivas do
medo". Surpreendemo-nos por encontrar um poeta diferente daquele que
já conhecíamos; uma dupla personalidade poética? Aqui, em Obscura
Noite e Ásperos Versos temos outra visão do autor, outra maneira de
sentir, e qual o escritor que não tem duas ou mais diferentes
personalidades dentro de si? Como nos confirma o autor, em uma nota
(quase prefácio) à primeira edição de Noite Azul: “a unidade é uma
abstração antagônica à multiplicidade da vida concreta. Múltipla (de
temas e de ritmos) seja minha métrica! ” O poeta tem a
autoconsciência da riqueza variada de sua poética, podendo pois
dividi-la em dois estilos, duas temáticas, como nos demonstra em
poesia, às vezes.
Se Fernando Pessoa soube identificar
isso tão bem, a ponto de fazer um livro para cada heterônimo, às
vezes num mesmo autor outras "personas" convivem lado a lado no
mesmo livro. Assim, ao contrário de Noite Azul, que é uma visão
otimista da condição humana, em Obscura Noite e Ásperos Versos a
"hora gris do cotidiano" é retratada em páginas tensas, angustiadas,
de amplo espectro poético, tais como: "lugar comum, "o martelo",
"solidão", " pontos de vista", "o carro", "construção", "silêncio",
"onipotência", "anverso" e "esperança". Nesses poemas, curtos e
concisos, palavras como limalhas, ferro, férreo, rebite, estilete,
aço, rocha, conduzem a uma visão mineral, angulosa, agressiva,
hostil do mundo, visão que se petrifica em silêncio e dor:
”silêncio: apenas o estalido seco/ estilhaço ferindo/ oitivas de
medo.// ou // E embora os versos sejam estilhaços/ de explodidas
granadas/ não rompem telas urdidas/ em tessitura férrea/ dos ouvidos
moucos".
Então o poeta, falando da
agressividade do mundo de hoje, da carga bélica que nos cerca, mede
a vida: "construção, dia após dia/ pedra sobre pedra/ prossegue a
vida/ dia e pedra/ até os confins".
Eis a "Manhã" que rompe: "a manhã se
desgastou nos versos/ e a noite se desfez nos sonhos"//. "Melhor a
palavra em estilete/ riscando ferro aço rocha/ em verso áspero". Eis
o "Martelo" poesia e prosa: " a bater o martelo, em ferro duro, o
absorto homem esquecia a vida lá fora. Rolimãs de suor rolavam dos
poros em rosto de ferrugem, a boca a percutir bem, bem! (eco de
martelo a bater em ferro ou lamento irrompendo da alma em
limalhas)".
Mas o poeta não se desespera. E
encerra seu livro voltando de uma certa forma à Noite Azul a sua
outra maneira de ver, à sua esperança.
"Há sobretudo amor/ no verbo/ mais
lindo que é/ libertar/ tão lindo tão lindo/ como o verbo amar (...)
poema sem amor/ é noite sem luar/ árvore seca sem seiva/ chão duro
gretado".
E nessa linguagem, seca, áspera e
poeticamente bela do poeta de Ásperos Versos, lemos entrevendo sua
luz: "o poema sem amor/ é ovo goro/ fruta peca / praia sem mar/ ser
que não pode vida gerar".
Lembramos que Aluysio Mendonça Sampaio
é contista premiado, trazendo para a poesia toda sua técnica e
sensibilidade de tecedor de histórias. Aqui, em poesia, às vezes,
histórias da poesia.
Poesia, às vezes, Aluysio Sampaio,
Carthago Editorial, São Paulo, 1999, 126 p. |