Anchieta Pinheiro Pinto
A poética da natividade em Os Peãs
de Gerardo Mello Mourão,
escritor da modernidade e da pós-modernidade
Literatura e História têm, cada vez mais, acentuado ligações
interdisciplinares e procurado realizar resgates que não se
restrinjam às formas tradicionais da escrita sobre a memória dos
homens e dos seus feitos. Ao contato com a realidade histórica,
encontra a Literatura o argumento para o imaginário de sua ficção,
perfazendo em contrapartida o resgate da memória cultural.
Em Os Peãs ? trilogia que engloba as obras O País dos Mourões ( 1963
), Peripécia de Gerardo ( 1972 ) e Rastro de Apolo ( 1977 ) ?, o
poeta cearense Gerardo Mello Mourão oscila entre a poesia e a
realidade, o mito ( grego) e o histórico ( cearense ou nordestino ),
a genealogia e a tradição lendária de sua região, sempre primando
por discernimento e filiação aos ideais mais estóicos que uma
poética de sentimento nativista lhe impõe. Descomprometido com o
esquema métrico tradicional, seu estilo de crônicas, divididas em
versos obedientes ao ritmo poético do autor, traz uma doutrina de
revisionismo histórico alicerçada na saga dos Mourões, dos Mellos e
dos demais Clãs que dominavam o interior da Província e seus
arredores com leis e tradições quase sempre insubmissas à ordem
oficial.
É dentro deste quadro de insubmissão, imprudência e nativismo
sobrepostos à História oficial, que propomos a análise de Os Peãs e,
por conseqüência, da trajetória desses grupos tribais dos primórdios
do povoamento da região, na perspectiva de contribuir para a
compreensão dos fenômenos de relacionamento entre Literatura e
processo social, estilo e História.
Para uma breve exegese sobre a obra, comecemos pelo título: peãs (paianes,
em grego) são hinos, conforme a antiguidade clássica, dirigidos a
Apolo ou ainda em honra deste, sintetizando um sentimento de bravura
ou de vitória perante a guerra. Um sentimento que é assimilado pela
poética de Gerardo, ao recontar ( ou reinventar ) a saga de seus
ancestrais numa narrativa épica que desnuda a história oficial e
descobre naqueles e em suas terras lendárias a semente de um povo de
mais de quatrocentos anos. Apesar de vários dos relatos iniciarem na
terceira pessoa, é marcante a intervenção da primeira pessoa, como
uma âncora que, impetuosa, atrela o eu poético da narrativa às
experiências de vida do autor, ornando sua épica com um estilo
documental e memorialista, tão comum à literatura da modernidade.
Escritor de ampla vivência, homem de vasta erudição, Gerardo Mello
Mourão nasceu em Ipueiras, ao pé da serra da Ibiapaba, no ano de
1917 e já em tenra idade tomava conhecimento das sangrentas
estripulias e peripécias lendárias de seu Clã familiar. Conduzido a
contragosto em direção ao sul do país em busca de estudos e de
prosperidade, aos onze anos Gerardo estará em Valença, no Rio de
Janeiro, de lá só saindo para uma rígida formação religiosa,
recebida no Seminário Redentorista de Congonhas do Campo no período
de 1928 a 1934. Noviço, Clérigo, Gerardo Mello Mourão abandonará a
vida religiosa, embora permanecendo devoto dos valores mais nobres
do catolicismo apostólico romano. Nos anos posteriores, sua vida se
tornará aos poucos atribulada e complexa. Professor em diversos
colégios no Rio, foi cativado, por livre e espontânea paixão, pelo
cio das letras e da política. É assim que, entre poesias e utopias,
o moço Gerardo, que declamava Otacílio Colares desde cedo, assume
vida pública como deputado federal por Alagoas. Como cidadão e
defensor de posicionamentos políticos e humanitários, foi preso
dezoito vezes pela tirania do regime ditatorial por duas vezes
instalado nesse país. Na política, conheceu o poder, a queda e o
exílio, tendo que viver durante alguns anos no Chile, onde lecionou
na Universidade Católica de Valparaíso. É de seus contatos com o
mundo hispânico que surge um inusitado grupo de seis rapazes – a
Santa Hermandad de la Orquídea – amantes da musa e da aventura de
descobrir o mundo. São eles: Efraim Tomás Bó, Godofredo Iommi, Raul
Young, argentinos, e Abdias Nascimento, Napoleão Lopes Filho e
Gerardo, brasileiros. Inspirada pelas divindades a guilda órfica
navegou todos os continentes, com os seis cavaleiros irmanados na
eterna aventura da descoberta do saber e do fazer poético. A partir
de 1942, Mello Mourão esteve preso por quase seis anos
ininterruptos. É na prisão que ele escreve o romance Valete de
Espadas e também Cabo das Tormentas, um livro contendo dez elegias
de perdição , sendo este publicado em 1950 e o romance somente no
ano de 1960, sendo traduzido para o alemão três anos depois. De 1963
também é O País dos Mourões , dando início à trilogia "oi paianes".
De 1964 é o seu exílio no Chile; e ainda na mesma década seus
direitos políticos seriam agredidos novamente, ao receber voz de
prisão em 1968, o que provocou protestos públicos de vários
intelectuais de universidades e instituições estrangeiras. Nunca
afeito a rapapés ou bajulações, uma das raras comendas que aceitou
até hoje foi a medalha da Ordem de Rubén Dario, na Nicarágua, num
tempo em que os seus livros, já traduzidos, ganhavam a simpatia do
mundo hispânico. É também da mesma década o seu prefácio a uma
edição grega das poesias de Pablo Neruda, bem como sua participação
no Congresso Internacional de Poesia reunido em Londres e organizado
pela Universidade de Oxford em 1966. Neste Congresso, ao ser
indagado por Robert Graves sobre as influências que o motivaram à
épica de Os Peãs , causa espanto aos presentes ao citar, após os
esperados grandes gênios da literatura universal – Dante, Homero,
Hoelderlin, Rilke, Rimbaud, Baudelaire e outros –, o nome de Anselmo
Vieira como o primeiro poeta a lhe despertar para a musa. Anselmo
Vieira era um cantador popular, caboclo das Ipueiras.
A década de setenta também seria marcada por congressos e sérios
eventos culturais na vida literária do escritor. Aqui mesmo na
América ele participa de várias antologias e ganha o Prêmio Mário de
Andrade de Poesia em 1972; e, no mesmo ano, dando continuidade à
épica, lança Peripécia de Gerardo. A aventura épica teria seqüência
em 1976, motivando seu retiro poético em Delfos para compor e
lançar, no ano seguinte, Rastro de Apolo. Fechando a década seu nome
será honrosamente lembrado numa indicação para o Prêmio Nobel de
Literatura , inscrição realizada pela Universidade de Nova Iorque,
com a conivência de diversas universidades brasileiras e
estrangeiras. Em 1980 o escritor fixa residência em Pequim, China,
assumindo a função de correspondente do jornal FOLHA DE SÃO PAULO.
Este será mais um período fértil para a vida cultural do escritor
que, como um romeiro da poesia e do conhecimento cultural, percorre
o Japão, a Tailândia, Cingapura, Camboja e diversos outros países
das proximidades. Seus conhecimentos sobre esses diversos mundos
culturais, bem como sua visão sempre ampla e plural, característica
comum a vários escritores da pós-modernidade, estão em seus poemas
como marca patente do navegador de todos os mares:
Naveguei o Adriático e o Tirreno
o Egeu e o Mar da Jônia e o Atlântico e o Pacífico
( ... ) ( Os Peãs, página 392 )
e todos os outros mares de todas as nações que habitam o planeta,
confirma o poeta no mesmo poema.
É a memória que marca o compasso da narrativa épica de Gerardo; no
caso de suas "navegações", é a memória dos lugares e das pessoas por
onde ele passa ou, em suas palavras, "a memória de meus pés por onde
/ a liberdade peregrina" ( idem, p. .393 ). De todas as memórias, a
que fala mais alto é a que guarda da infância a recordação da mais
colossal das guerras fratricidas já narradas nas lendas do Ceará,
onde, ao estrondo dos bacamartes, Mellos e Mourões se envolveram
numa rixa sem fim, sustentada pela bravura do coronel José de Barros
Mello ( o "cascavel" ), ao enfrentar a fúria vingadora de seu
cunhado e primo-irmão Alexandre Mourão, que levou sua guerra até o
Rio Grande do Norte e a Paraíba, com a elegância bizarra de um
capitão da renascença. Nesse ensejo, como poética da fundação dos
homens, dos seres e das coisas do Ceará, Os Peãs nos oferecem homens
fortes e destemidos, os pioneiros Mourões que
jurados à beleza
domavam o cavalo, a nau, a lança, a espada e a terra
( ... ) ( idem, p. 155 )
terra que, orvalhada de sangue dos guerreiros, se estende pelos
rincões da Serra dos Cocos, das lavras da Canabrava dos Mourões, da
Ibiapaba, Crateús, da terra de Mel Redondo, das baixas do Ipu, das
grotas do pé da Serra Grande, das ribeiras do Campo Grande e se
estende por todos os lugares que, na memória lendária do poeta, irão
compor a região dominada pelo seu Clã, configurando o país dos
Mellos e Mourões,
Era uma vez um país
onde o fruto alastra o chão
( ... ) ( idem, p. 93 )
chão de onde o poeta nunca arrancou a raiz do próprio ser.
É com amor a esse país e a essas raízes familiares, que são as
próprias raízes do Ceará, que o poeta declina a Teogonia e a
Cosmogonia de sua poética, onde o mito explica a origem do mundo e
de tudo o que nele existe, os objetos, "a terra e as águas e as
pessoas" (id., p. 16 ). Nesse sentido é que temos no Capitão José
Ribeiro Mello, "coqueiro frondoso de Mellos e Mourões" ( idem, p.
27)
um deus embriagado e cosmogônico
a criar seu mundo
no país dos Mourões
( ... ) ( idem, p. 93 )
E nessa Teogonia, como sustentáculo da grande árvore familiar, estão
dois pontos firmes, inabaláveis, fundeados nas profundezas da terra
a sustentar a raiz: José de Barros Mello, o "cascavel" e Alexandre
Mourão, o indomável; ambos tetravôs de Gerardo. É na bravura do seu
herói, encenada por Alexandre Mourão em suas imprudentes peripécias,
que podemos ver a ética quixotesca ( no sentido estóico ) do herói
de Os Peãs , a ética na qual o herói pode empreender a busca de
valores pessoais que subordinam a si a hostilidade do meio.
Entretanto, a figura mais afetuosa e mais querida, escolhida como
protótipo apolíneo para a reprodução da estirpe será a do seu avô, o
"coqueiro frondoso" já citado antes, com seus "cabelos de trigo" e
cenho espesso, a quem o poeta busca repetir
no ventre de alguma filha de um coronel do Báltico
os teus olhos azuis, tua brava estampa,
a poderosa mão, o cenho espesso sobre
a tribo e sobre
o talhe de teu ombro onde frondeja
a cabeça de Mellos e Mourões
( ... ) ( idem, p. 27 )
Nesse tom épico, continua Gerardo, ainda referindo-se a seu avô:
E múltiplo e coral te cantarei
achando-me e perdendo-me em teus gestos e
brotando inumerável de teu tronco por onde
a seiva de meus filhos borbulha
( ... ) ( id., ib. )
Declinados os nomes dessa genealogia, resta nomear as coisas e os
lugares, como fizeram os primeiros protagonistas da Cosmogonia nos
tempos aurorais, de Adão a Deucalião. E assim os fundadores daquele
mundo, no vale, na serra e no sertão dão início ao processo. O
distrito de São Gonçalo, que cresce em volta da capela doada por
Dona Úrsula Mourão, é chamado de "São Gonçalo dos Mourões" ( id.,
p.37 ), Ipueiras denomina-se "Ipueiras dos Mourões" ( idem, ibidem
), os engenhos de Alexandre Mourão são denominados de "Bacamarte" e
"Por Enquanto" ( idem,p. 108 ), enquanto seus bacamartes
propriamente ditos são apelidados de "Luar da Serra e Galo de
Campina" ( id., ib. ). Nessa toada, Mello Mourão vai servindo-se da
mitologia e da história, subjugando-as e colocando-as a serviço da
sua poética de sentimento nativista. Resgatando a linhagem de seus
ancestrais e a história destes, segue ele o modelo clássico da
épica, onde
O longínquo é trazido ao presente, para diante de nossos
olhos, logo perante nós, como um mundo outro
maravilhoso e maior. ( ... ) ( Staiger 1969, p. 79 )
Neste mesmo sentido, há pouca diferença em Homero, pois também
Homero fala de velhas lendas. Não descreve seu próprio tempo, mas
esforça-se manifestamente por uma pátina do arcaico. Assim é que na
Ilíada não há ainda nenhuma cavalaria e nenhum toque de clarim,
ambos já existentes em seu século. A distância é guardada ainda mais
visivelmente com a afirmação sempre repetida de que na época em que
se deu a guerra, os homens eram ainda mais fortes. ( ... ) ( id.,
ib. )
O tom épico em Mello Mourão se completa com a declinação de sua
genealogia, declinação que já aparece no primeiro poema do livro,
quando o narrador cita quase todos os grandes nomes da sua estirpe,
culminando na súplica e no chamamento para coroar a profissão de fé
do poeta que, como os deuses, precisa de um lugar e de uma companhia
em sua celebração:
é sobre a terra de meu pai que me levanto agora
e a tantos
que à esquerda e à direita lhe caíram,
eu os chamo e suplico
( ... ) ( Os Peãs, p. 16 )
Nesta súplica também são chamados os nomes mais conhecidos da
história da colonização da província do Ceará e do Nordeste, como é
o caso de Soares Moreno, de Pero Lopes de Souza e de vários outros
pois, como diz o vate, "de seus bagos venho" ( idem, p. 262 ). Tendo
derivado de seus bagos, naqueles desbravadores o
narrador-protagonista se repete, como um saltimbanco cujo dom é
atravessar as paredes do tempo e do espaço, a navegar em mar bravio
no bergantim dos pioneiros ou a desbravar as terras da capitania do
Maranhão , pois "a intemporalidade e a interespacialidade são coisas
da poesia", como afirma Mourão em depoimento ao Jornal Diário do
Nordeste ( Nogueira 1998, p. 5 ); e são coisas da poesia
principalmente na literatura moderna, confirmada na pós-modernidade.
Outra de suas diversas identificações com a modernidade é o
descompromisso com qualquer esquema métrico. Na verdade seus poemas
são em prosa, são crônicas da história da região, porém escritos
numa prosa dividida em versos que obedecem ao ritmo poético do
autor. É seu ritmo poético que dita o desencadeamento épico, tão
importante para a narrativa e para a estética desta poesia. Em sua
Poética Aristóteles discute a questão, afirmando que
Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a
obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história
com o metro do que sem ele; a diferença está que um narra
acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a
Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; aquela
enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enunciar
verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de
natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente (
... )
( Aristóteles 1981, p. 28 )
Encerrando mais filosofia e elevação do que qualquer estudo do
passado, a épica de Os Peãs ainda abre espaço para uma outra
variante, a do revisionismo histórico. Partindo apenas do histórico,
constataremos que, ao tempo em que Martiniano de Alencar presidiu a
província, a presença dos Mourões foi marcada de modo ostensivo e
violento na região Norte e mais especificamente na Ibiapaba quando,
nas disputas de terra e nas desavenças com os inimigos, alguns dos
Mourões se envolveram com a criminalidade. Em documento descritivo
dirigido à Regência e datado de 6 de Junho de 1836, Alencar é
taxativo ao colocar os Mourões como únicos responsáveis pela
carnificina e pela impunidade que campeava naquela região. Vejamos
duas partes principais do Catálogo ou documento acusatório:
– ANO DE 1830 – Alexandre da Silva Mourão, juntamente com João
Ribeiro, dirige-se ao sítio denominado Serrote e tenta assassinar
João da Costa Alecrim, não o fazendo por haver este procurado
refúgio em outro lugar;
( ... )
– ANO DE 1835 – Nos sítios Cangati, Esperança, Curralinho, bem como
em Vila-Nova Del-Rei, foram assassinados um moço dos Inhamuns
("Moço" significa pessoa de família ), um cabra de nome Vara Seca,
um indivíduo chamado Vicente Fernandes, um homem conhecido por
Meireles, um soldado de nome Lopo e um rapaz de nome Vicente Lopes
da Caminhadeira;
( ... ) ( Aragão 1985, páginas 42-43 )
Alguns anos mais tarde, em l9 de Fevereiro de 1850, na qualidade de
senador, Alencar profere discurso, mais uma vez culpando os Mourões
pela violência que imperava na Província do Ceará e
responsabilizando-os pela diáspora de homens de bem da região:
Outros homens principais da Província andaram foragidos e aterrados.
Lembro-me, dentre outros , do venerando ancião vigário Manuel
Pacheco Pimentel, deputado à Assembléia Constituinte e em 2a
legislatura, e do seu sobrinho Tenente-Coronel João da Costa
Alecrim, refugiado em Pernambuco, por causa das correrias e
barbaridades dos assassinos da Serra Grande onde ele era vigário.
( ... ) ( Aragão 1985, p. 26 )
Que alguns dos Mourões estavam envolvidos com os horrorosos
assassinatos é uma verdade irrefutável. No entanto, o que o relato
de Martiniano de Alencar oculta – talvez por ser breve, por não ter
profundidade de argumentos ou por outros interesses quem sabe até
políticos – é que o que havia na região da Serra Grande era uma
guerra fratricida que envolvia diversos outros aspectos. Os "homens
principais" da Província não eram tão homens de bem quanto eram
facínoras os Mourões. Um dos Mourões mais procurado pela polícia era
Alexandre Mourão e este empreendia uma luta ininterrupta para vingar
seu irmão Manuel Mourão, assassinado pelo tal de Vicente da
Caminhadeira. Está aí o elo da questão: Vicente da Caminhadeira será
apadrinhado e protegido por João da Costa Alecrim sob os auspícios
do tio, o vigário Manuel Pacheco Pimental. Estes, portanto, estavam
envolvidos nas cruéis desavenças da Zona Norte e não exatamente
perseguidos, como queria o relato de Alencar. Envolvidos, uns
apoiando e outros executando a justiça conforme as regras de uma
sociedade regida não pela democracia nem por sistemas políticos
modernos, mas por um sistema medieval de organização social, pela
lei dos Clãs, estavam também praticamente todos os líderes políticos
da região, pois todos participavam da mesma sociedade. Portanto,
quando Mellos, Mourões, Feitosas e elementos de outros ramos da
árvore maior dessa organização social dos tempos do pioneirismo
entram em conflito, colocando em risco a própria segurança e a da
população, o fazem protegidos pela omissão da justiça, pelos
apadrinhamentos políticos, pela ousadia do sangue aventureiro e em
decorrência da precária administração oficial, que se negava a
aceitar a existência de um segundo poder público, o poder das rudes
baronias rurais alicerçadas no feudo e na organização tribal. É
enxergando este último ítem que se coloca a poesia de Mello Mourão,
numa linha de revisionismo da história oficial que, em consonância
com o discurso do dominador, relata os "fatos particulares" ( como
diria Aristóteles acima ) sem um aprofundamento ou menção das razões
e justificativas do dominado. Uma breve leitura nas Memórias de
Alexandre Mourão, apresentadas no poema "Alexandre cavalga" ( Os
Peãs, pp. 101-12 ), ratifica os argumentos deste parágrafo. É
enxergando também a traição do governador João Carlos Augusto de
Oyenhausen que se posiciona a poesia de Gerardo.
Oyenhausen, não obtendo respaldo popular para prender Manuel Martins
Chaves, chefe político da família Mourão e dono da fazenda que daria
origem a Ipueiras, usa o artifício indecoroso de hospedar-se na casa
grande dos Mourões para, durante a madrugada, surpreendê-lo com voz
de prisão e "quinhentos soldados de linha" ( id. , pp. 120-29 ).
Nesse processo de revisionismo a intertextualidade tem presença
obrigatória. Ela está no primeiro poema d'O País dos Mourões, onde é
reproduzida a Declaração de Nascimento de Mourão ( id. p. 12 ); está
na doação das terras de Tamboril, feita por dona Ana Feitosa, sua
avó ( id. p. 63 ); está no documento de Confisco dos Bens do Cel.
Manuel Martins Chaves, pioneiro de Ipueiras ( id., p. 127 ); está na
conversa de dois caboclos paraibanos sobre viagens espaciais,
fragmento transcrito do Jornal do Brasil (id., p. 291 ). Ora
inserindo trechos de crônicas e de cartas de familiares na sua
literatura (como no caso das crônicas de Alexandre ), ora fazendo a
montagem a partir de documentos, ora rememorando casos contados na
sua infância, Gerardo Mello Mourão utiliza uma técnica a ser adotada
também por outros escritores da pós-modernidade, principalmente por
alguns romancistas das últimas três décadas. Um exemplo é O Mundo de
Flora ( 1990 ), de Angela Gutierréz, romance no qual a dinâmica
variação de planos ( tempo / espaço ) convive com o toque
metalinguístico dos ditos folclóricos, das cartas familiares, das
estórias e cantorias sertanejas. No entanto, aparente técnica já
havia sido utilizada na prosa de grandes mestres alguns anos antes
que, muito provavelmente intrigados com o desconcerto
histórico-pessoal do homem no meio moderno e em busca de uma
expressão que traduzisse intenções de vanguarda e de ruptura com o
tradicional, deslocam o eixo do narrador memorialista de modo a
fazer com que esse ceda lugar aos cortes, recortes e montagens, numa
combinatória parodística em que não somente a literatura mas a
própria existência é, dessa forma, contextualizada. Cada um com suas
particularidades linguísticas, desses grandes mestres podemos citar
Oswal de Andrade – com Serafim Ponte Grande ( 1933 ) e sua linguagem
de suturas e rupturas – e Guimarães Rosa – com uma escrita
inigualável, fundada na exploração mítica das relações entre as
culturas sertaneja e urbana, a coser montagens, neologismos e
recortes linguísticos em Grande Sertão: Veredas ( 1956 ).
Descontadas as diferenças estilísticas, por conta dos imensos
relatos contidos na trilogia, em Os Peãs encontramos tudo isso e
mais alguma coisa, pois o estilo de Mourão é plural, nele cabendo
também expressões em latim: "In illo tempore" ( id., p. 85 ); em
espanhol: "siempre arriban los poetas a los angeles" ( id., p. 311
); em grego: ????????a, com sentido de liberdade e em oposição a
cárcere ( id., p. 240 ); em inglês e em vários outros idiomas. Nessa
estranha poesia, quase dominada pela prosa, a experimentação poética
também se manifesta no uso de símbolos e de letras gregas ou outros
sinais gráficos para titular cada poema, um recurso utilizado também
por alguns poetas que, sentindo a influência do emergente
Concretismo, buscavam uma solução estética para o concreto, sem
abandonar por inteiro a sintaxe tradicional e, ao mesmo tempo,
contestá-la, reinventando-a. Mas a expressão mais forte é a do seu
povo. Não podemos esquecer sua declaração naquele congresso de 1966,
citado acima. É com sentimento nativista que ele canta sua gente e
seus ancestrais nos heptassílabos de longeva tradição que, abruptos,
surgem em meio a seus versos desmedidos. Nesta redondilha, os
Mourões são mais fortes, mais amantes, como seu avô que, numa noite
agitada por tiros, cantoria e muitas mulheres
provou as cinqüentas fêmeas
pôs a mão no coração
e sentiu que ele no peito
não se fartara inda não
( ... )
só mesmo teus olhos verdes
dariam a ordenação
capaz na noite e no dia
de saciar um Mourão
( ... ) ( id., p. 72-73 )
Apesar da predominância do estilo erudito e do vocabulário
requintado, Os Peãs traz, além das redondilhas, a marca da
identificação com a terminologia popular, ao resgatar da terra e do
povo as palavras que vão se gastando com o tempo, como "chibata" (p.
09 ), "alpercatas" ( p. 54 ), "creatura" ( p. 151 ), "buliam / "ao
chouto do cavalo" / "as balas no embornal"(p. 106 ) e diversas
outras expressões de uso corrente na sua região.
Ao colocar num mesmo contexto a linguagem elitista, culta, a
linguagem erudita, clássica, greco-helênica e a linguagem de seu
povo, a fala e os vícios linguísticos próprios de sua região,
Gerardo Mello Mourão edifica uma poesia singular em nossas letras,
uma épica ao mesmo tempo estranha, monumental e oceânica, a sorver
rios e mares de influências, desde o rio Jatobá nas Ipueiras até o
Adriático e o Tirreno, passando pelo Atlântico e o Pacífico para,
numa dinâmica de retorno às raízes , desaguar nas terras desbravadas
por seus ancestrais, nas trilhas e lendas perdidas pela memória e
resgatadas pelo poeta que, como um aedo a relatar os ciclos
aventureiros, retoma os grandes sopros épicos do passado para
inflamarem o conteúdo vívido de seus cantos apolíneos que,
inflamados, vibram como uma chama ardente a pulsar no seio da
América.
A palavra final é a do próprio poeta, pois não há outro melhor
indicado para revelar o propósito meritório de seu trabalho:
Toda a lírica e toda a épica de que fui capaz, se algum mérito
tiver, será o da fidelidade às raízes populares de meu país de
serranos e sertanejos, onde todas as mulheres são belas e todos os
homens são valentes
( ... ) ( Mourão 1997, p. 08 )
Mérito tem, senhor Mello Mourão, mas para dirimir qualquer dúvida
sobre a grandeza literária de Os Peãs, este texto se fecha com a
opinião de ninguém menos do que o poeta Ezra Pound sobre a trilogia
aqui estudada, opinião reproduzida em recente artigo do jornalista
Emmanuel Nogueira em prestigiado jornal cearense:
Em toda a minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da
América. Creio que não consegui. Ela foi escrita no poema
espantoso do poeta do País dos Mourões
( ... ) ( Nogueira 1998, p. 5 ).
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Leia a obra de Gerardo Mello Mourão
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