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Anchieta Pinheiro Pinto


 


A poética da natividade em Os Peãs
de Gerardo Mello Mourão,
escritor da modernidade e da pós-modernidade
 

 

Literatura e História têm, cada vez mais, acentuado ligações interdisciplinares e procurado realizar resgates que não se restrinjam às formas tradicionais da escrita sobre a memória dos homens e dos seus feitos. Ao contato com a realidade histórica, encontra a Literatura o argumento para o imaginário de sua ficção, perfazendo em contrapartida o resgate da memória cultural.

Em Os Peãs ? trilogia que engloba as obras O País dos Mourões ( 1963 ), Peripécia de Gerardo ( 1972 ) e Rastro de Apolo ( 1977 ) ?, o poeta cearense Gerardo Mello Mourão oscila entre a poesia e a realidade, o mito ( grego) e o histórico ( cearense ou nordestino ), a genealogia e a tradição lendária de sua região, sempre primando por discernimento e filiação aos ideais mais estóicos que uma poética de sentimento nativista lhe impõe. Descomprometido com o esquema métrico tradicional, seu estilo de crônicas, divididas em versos obedientes ao ritmo poético do autor, traz uma doutrina de revisionismo histórico alicerçada na saga dos Mourões, dos Mellos e dos demais Clãs que dominavam o interior da Província e seus arredores com leis e tradições quase sempre insubmissas à ordem oficial.

É dentro deste quadro de insubmissão, imprudência e nativismo sobrepostos à História oficial, que propomos a análise de Os Peãs e, por conseqüência, da trajetória desses grupos tribais dos primórdios do povoamento da região, na perspectiva de contribuir para a compreensão dos fenômenos de relacionamento entre Literatura e processo social, estilo e História.

Para uma breve exegese sobre a obra, comecemos pelo título: peãs (paianes, em grego) são hinos, conforme a antiguidade clássica, dirigidos a Apolo ou ainda em honra deste, sintetizando um sentimento de bravura ou de vitória perante a guerra. Um sentimento que é assimilado pela poética de Gerardo, ao recontar ( ou reinventar ) a saga de seus ancestrais numa narrativa épica que desnuda a história oficial e descobre naqueles e em suas terras lendárias a semente de um povo de mais de quatrocentos anos. Apesar de vários dos relatos iniciarem na terceira pessoa, é marcante a intervenção da primeira pessoa, como uma âncora que, impetuosa, atrela o eu poético da narrativa às experiências de vida do autor, ornando sua épica com um estilo documental e memorialista, tão comum à literatura da modernidade. Escritor de ampla vivência, homem de vasta erudição, Gerardo Mello Mourão nasceu em Ipueiras, ao pé da serra da Ibiapaba, no ano de 1917 e já em tenra idade tomava conhecimento das sangrentas estripulias e peripécias lendárias de seu Clã familiar. Conduzido a contragosto em direção ao sul do país em busca de estudos e de prosperidade, aos onze anos Gerardo estará em Valença, no Rio de Janeiro, de lá só saindo para uma rígida formação religiosa, recebida no Seminário Redentorista de Congonhas do Campo no período de 1928 a 1934. Noviço, Clérigo, Gerardo Mello Mourão abandonará a vida religiosa, embora permanecendo devoto dos valores mais nobres do catolicismo apostólico romano. Nos anos posteriores, sua vida se tornará aos poucos atribulada e complexa. Professor em diversos colégios no Rio, foi cativado, por livre e espontânea paixão, pelo cio das letras e da política. É assim que, entre poesias e utopias, o moço Gerardo, que declamava Otacílio Colares desde cedo, assume vida pública como deputado federal por Alagoas. Como cidadão e defensor de posicionamentos políticos e humanitários, foi preso dezoito vezes pela tirania do regime ditatorial por duas vezes instalado nesse país. Na política, conheceu o poder, a queda e o exílio, tendo que viver durante alguns anos no Chile, onde lecionou na Universidade Católica de Valparaíso. É de seus contatos com o mundo hispânico que surge um inusitado grupo de seis rapazes – a Santa Hermandad de la Orquídea – amantes da musa e da aventura de descobrir o mundo. São eles: Efraim Tomás Bó, Godofredo Iommi, Raul Young, argentinos, e Abdias Nascimento, Napoleão Lopes Filho e Gerardo, brasileiros. Inspirada pelas divindades a guilda órfica navegou todos os continentes, com os seis cavaleiros irmanados na eterna aventura da descoberta do saber e do fazer poético. A partir de 1942, Mello Mourão esteve preso por quase seis anos ininterruptos. É na prisão que ele escreve o romance Valete de Espadas e também Cabo das Tormentas, um livro contendo dez elegias de perdição , sendo este publicado em 1950 e o romance somente no ano de 1960, sendo traduzido para o alemão três anos depois. De 1963 também é O País dos Mourões , dando início à trilogia "oi paianes". De 1964 é o seu exílio no Chile; e ainda na mesma década seus direitos políticos seriam agredidos novamente, ao receber voz de prisão em 1968, o que provocou protestos públicos de vários intelectuais de universidades e instituições estrangeiras. Nunca afeito a rapapés ou bajulações, uma das raras comendas que aceitou até hoje foi a medalha da Ordem de Rubén Dario, na Nicarágua, num tempo em que os seus livros, já traduzidos, ganhavam a simpatia do mundo hispânico. É também da mesma década o seu prefácio a uma edição grega das poesias de Pablo Neruda, bem como sua participação no Congresso Internacional de Poesia reunido em Londres e organizado pela Universidade de Oxford em 1966. Neste Congresso, ao ser indagado por Robert Graves sobre as influências que o motivaram à épica de Os Peãs , causa espanto aos presentes ao citar, após os esperados grandes gênios da literatura universal – Dante, Homero, Hoelderlin, Rilke, Rimbaud, Baudelaire e outros –, o nome de Anselmo Vieira como o primeiro poeta a lhe despertar para a musa. Anselmo Vieira era um cantador popular, caboclo das Ipueiras.

A década de setenta também seria marcada por congressos e sérios eventos culturais na vida literária do escritor. Aqui mesmo na América ele participa de várias antologias e ganha o Prêmio Mário de Andrade de Poesia em 1972; e, no mesmo ano, dando continuidade à épica, lança Peripécia de Gerardo. A aventura épica teria seqüência em 1976, motivando seu retiro poético em Delfos para compor e lançar, no ano seguinte, Rastro de Apolo. Fechando a década seu nome será honrosamente lembrado numa indicação para o Prêmio Nobel de Literatura , inscrição realizada pela Universidade de Nova Iorque, com a conivência de diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Em 1980 o escritor fixa residência em Pequim, China, assumindo a função de correspondente do jornal FOLHA DE SÃO PAULO. Este será mais um período fértil para a vida cultural do escritor que, como um romeiro da poesia e do conhecimento cultural, percorre o Japão, a Tailândia, Cingapura, Camboja e diversos outros países das proximidades. Seus conhecimentos sobre esses diversos mundos culturais, bem como sua visão sempre ampla e plural, característica comum a vários escritores da pós-modernidade, estão em seus poemas como marca patente do navegador de todos os mares:

Naveguei o Adriático e o Tirreno
o Egeu e o Mar da Jônia e o Atlântico e o Pacífico
( ... ) ( Os Peãs, página 392 )
 

e todos os outros mares de todas as nações que habitam o planeta, confirma o poeta no mesmo poema.

É a memória que marca o compasso da narrativa épica de Gerardo; no caso de suas "navegações", é a memória dos lugares e das pessoas por onde ele passa ou, em suas palavras, "a memória de meus pés por onde / a liberdade peregrina" ( idem, p. .393 ). De todas as memórias, a que fala mais alto é a que guarda da infância a recordação da mais colossal das guerras fratricidas já narradas nas lendas do Ceará, onde, ao estrondo dos bacamartes, Mellos e Mourões se envolveram numa rixa sem fim, sustentada pela bravura do coronel José de Barros Mello ( o "cascavel" ), ao enfrentar a fúria vingadora de seu cunhado e primo-irmão Alexandre Mourão, que levou sua guerra até o Rio Grande do Norte e a Paraíba, com a elegância bizarra de um capitão da renascença. Nesse ensejo, como poética da fundação dos homens, dos seres e das coisas do Ceará, Os Peãs nos oferecem homens fortes e destemidos, os pioneiros Mourões que

jurados à beleza
domavam o cavalo, a nau, a lança, a espada e a terra
( ... ) ( idem, p. 155 )
 

terra que, orvalhada de sangue dos guerreiros, se estende pelos rincões da Serra dos Cocos, das lavras da Canabrava dos Mourões, da Ibiapaba, Crateús, da terra de Mel Redondo, das baixas do Ipu, das grotas do pé da Serra Grande, das ribeiras do Campo Grande e se estende por todos os lugares que, na memória lendária do poeta, irão compor a região dominada pelo seu Clã, configurando o país dos Mellos e Mourões,

Era uma vez um país
onde o fruto alastra o chão
( ... ) ( idem, p. 93 )
 

chão de onde o poeta nunca arrancou a raiz do próprio ser.

É com amor a esse país e a essas raízes familiares, que são as próprias raízes do Ceará, que o poeta declina a Teogonia e a Cosmogonia de sua poética, onde o mito explica a origem do mundo e de tudo o que nele existe, os objetos, "a terra e as águas e as pessoas" (id., p. 16 ). Nesse sentido é que temos no Capitão José Ribeiro Mello, "coqueiro frondoso de Mellos e Mourões" ( idem, p. 27)

um deus embriagado e cosmogônico
a criar seu mundo
no país dos Mourões
( ... ) ( idem, p. 93 )
 

E nessa Teogonia, como sustentáculo da grande árvore familiar, estão dois pontos firmes, inabaláveis, fundeados nas profundezas da terra a sustentar a raiz: José de Barros Mello, o "cascavel" e Alexandre Mourão, o indomável; ambos tetravôs de Gerardo. É na bravura do seu herói, encenada por Alexandre Mourão em suas imprudentes peripécias, que podemos ver a ética quixotesca ( no sentido estóico ) do herói de Os Peãs , a ética na qual o herói pode empreender a busca de valores pessoais que subordinam a si a hostilidade do meio. Entretanto, a figura mais afetuosa e mais querida, escolhida como protótipo apolíneo para a reprodução da estirpe será a do seu avô, o "coqueiro frondoso" já citado antes, com seus "cabelos de trigo" e cenho espesso, a quem o poeta busca repetir

no ventre de alguma filha de um coronel do Báltico
os teus olhos azuis, tua brava estampa,
a poderosa mão, o cenho espesso sobre
a tribo e sobre
o talhe de teu ombro onde frondeja
a cabeça de Mellos e Mourões
( ... ) ( idem, p. 27 )
 

Nesse tom épico, continua Gerardo, ainda referindo-se a seu avô:

E múltiplo e coral te cantarei
achando-me e perdendo-me em teus gestos e
brotando inumerável de teu tronco por onde
a seiva de meus filhos borbulha
( ... ) ( id., ib. )
 

Declinados os nomes dessa genealogia, resta nomear as coisas e os lugares, como fizeram os primeiros protagonistas da Cosmogonia nos tempos aurorais, de Adão a Deucalião. E assim os fundadores daquele mundo, no vale, na serra e no sertão dão início ao processo. O distrito de São Gonçalo, que cresce em volta da capela doada por Dona Úrsula Mourão, é chamado de "São Gonçalo dos Mourões" ( id., p.37 ), Ipueiras denomina-se "Ipueiras dos Mourões" ( idem, ibidem ), os engenhos de Alexandre Mourão são denominados de "Bacamarte" e "Por Enquanto" ( idem,p. 108 ), enquanto seus bacamartes propriamente ditos são apelidados de "Luar da Serra e Galo de Campina" ( id., ib. ). Nessa toada, Mello Mourão vai servindo-se da mitologia e da história, subjugando-as e colocando-as a serviço da sua poética de sentimento nativista. Resgatando a linhagem de seus ancestrais e a história destes, segue ele o modelo clássico da épica, onde

O longínquo é trazido ao presente, para diante de nossos
olhos, logo perante nós, como um mundo outro
maravilhoso e maior. ( ... ) ( Staiger 1969, p. 79 )
 

Neste mesmo sentido, há pouca diferença em Homero, pois também Homero fala de velhas lendas. Não descreve seu próprio tempo, mas esforça-se manifestamente por uma pátina do arcaico. Assim é que na Ilíada não há ainda nenhuma cavalaria e nenhum toque de clarim, ambos já existentes em seu século. A distância é guardada ainda mais visivelmente com a afirmação sempre repetida de que na época em que se deu a guerra, os homens eram ainda mais fortes. ( ... ) ( id., ib. )

O tom épico em Mello Mourão se completa com a declinação de sua genealogia, declinação que já aparece no primeiro poema do livro, quando o narrador cita quase todos os grandes nomes da sua estirpe, culminando na súplica e no chamamento para coroar a profissão de fé do poeta que, como os deuses, precisa de um lugar e de uma companhia em sua celebração:

é sobre a terra de meu pai que me levanto agora
e a tantos
que à esquerda e à direita lhe caíram,
eu os chamo e suplico
( ... ) ( Os Peãs, p. 16 )
 

Nesta súplica também são chamados os nomes mais conhecidos da história da colonização da província do Ceará e do Nordeste, como é o caso de Soares Moreno, de Pero Lopes de Souza e de vários outros pois, como diz o vate, "de seus bagos venho" ( idem, p. 262 ). Tendo derivado de seus bagos, naqueles desbravadores o narrador-protagonista se repete, como um saltimbanco cujo dom é atravessar as paredes do tempo e do espaço, a navegar em mar bravio no bergantim dos pioneiros ou a desbravar as terras da capitania do Maranhão , pois "a intemporalidade e a interespacialidade são coisas da poesia", como afirma Mourão em depoimento ao Jornal Diário do Nordeste ( Nogueira 1998, p. 5 ); e são coisas da poesia principalmente na literatura moderna, confirmada na pós-modernidade. Outra de suas diversas identificações com a modernidade é o descompromisso com qualquer esquema métrico. Na verdade seus poemas são em prosa, são crônicas da história da região, porém escritos numa prosa dividida em versos que obedecem ao ritmo poético do autor. É seu ritmo poético que dita o desencadeamento épico, tão importante para a narrativa e para a estética desta poesia. Em sua Poética Aristóteles discute a questão, afirmando que

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença está que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente ( ... )
( Aristóteles 1981, p. 28 )

 

Encerrando mais filosofia e elevação do que qualquer estudo do passado, a épica de Os Peãs ainda abre espaço para uma outra variante, a do revisionismo histórico. Partindo apenas do histórico, constataremos que, ao tempo em que Martiniano de Alencar presidiu a província, a presença dos Mourões foi marcada de modo ostensivo e violento na região Norte e mais especificamente na Ibiapaba quando, nas disputas de terra e nas desavenças com os inimigos, alguns dos Mourões se envolveram com a criminalidade. Em documento descritivo dirigido à Regência e datado de 6 de Junho de 1836, Alencar é taxativo ao colocar os Mourões como únicos responsáveis pela carnificina e pela impunidade que campeava naquela região. Vejamos duas partes principais do Catálogo ou documento acusatório:

– ANO DE 1830 – Alexandre da Silva Mourão, juntamente com João Ribeiro, dirige-se ao sítio denominado Serrote e tenta assassinar João da Costa Alecrim, não o fazendo por haver este procurado refúgio em outro lugar;
( ... )
– ANO DE 1835 – Nos sítios Cangati, Esperança, Curralinho, bem como em Vila-Nova Del-Rei, foram assassinados um moço dos Inhamuns ("Moço" significa pessoa de família ), um cabra de nome Vara Seca, um indivíduo chamado Vicente Fernandes, um homem conhecido por Meireles, um soldado de nome Lopo e um rapaz de nome Vicente Lopes da Caminhadeira;
( ... ) ( Aragão 1985, páginas 42-43 )
 

Alguns anos mais tarde, em l9 de Fevereiro de 1850, na qualidade de senador, Alencar profere discurso, mais uma vez culpando os Mourões pela violência que imperava na Província do Ceará e responsabilizando-os pela diáspora de homens de bem da região:

Outros homens principais da Província andaram foragidos e aterrados. Lembro-me, dentre outros , do venerando ancião vigário Manuel Pacheco Pimentel, deputado à Assembléia Constituinte e em 2a legislatura, e do seu sobrinho Tenente-Coronel João da Costa Alecrim, refugiado em Pernambuco, por causa das correrias e barbaridades dos assassinos da Serra Grande onde ele era vigário.
( ... ) ( Aragão 1985, p. 26 )
 

Que alguns dos Mourões estavam envolvidos com os horrorosos assassinatos é uma verdade irrefutável. No entanto, o que o relato de Martiniano de Alencar oculta – talvez por ser breve, por não ter profundidade de argumentos ou por outros interesses quem sabe até políticos – é que o que havia na região da Serra Grande era uma guerra fratricida que envolvia diversos outros aspectos. Os "homens principais" da Província não eram tão homens de bem quanto eram facínoras os Mourões. Um dos Mourões mais procurado pela polícia era Alexandre Mourão e este empreendia uma luta ininterrupta para vingar seu irmão Manuel Mourão, assassinado pelo tal de Vicente da Caminhadeira. Está aí o elo da questão: Vicente da Caminhadeira será apadrinhado e protegido por João da Costa Alecrim sob os auspícios do tio, o vigário Manuel Pacheco Pimental. Estes, portanto, estavam envolvidos nas cruéis desavenças da Zona Norte e não exatamente perseguidos, como queria o relato de Alencar. Envolvidos, uns apoiando e outros executando a justiça conforme as regras de uma sociedade regida não pela democracia nem por sistemas políticos modernos, mas por um sistema medieval de organização social, pela lei dos Clãs, estavam também praticamente todos os líderes políticos da região, pois todos participavam da mesma sociedade. Portanto, quando Mellos, Mourões, Feitosas e elementos de outros ramos da árvore maior dessa organização social dos tempos do pioneirismo entram em conflito, colocando em risco a própria segurança e a da população, o fazem protegidos pela omissão da justiça, pelos apadrinhamentos políticos, pela ousadia do sangue aventureiro e em decorrência da precária administração oficial, que se negava a aceitar a existência de um segundo poder público, o poder das rudes baronias rurais alicerçadas no feudo e na organização tribal. É enxergando este último ítem que se coloca a poesia de Mello Mourão, numa linha de revisionismo da história oficial que, em consonância com o discurso do dominador, relata os "fatos particulares" ( como diria Aristóteles acima ) sem um aprofundamento ou menção das razões e justificativas do dominado. Uma breve leitura nas Memórias de Alexandre Mourão, apresentadas no poema "Alexandre cavalga" ( Os Peãs, pp. 101-12 ), ratifica os argumentos deste parágrafo. É enxergando também a traição do governador João Carlos Augusto de Oyenhausen que se posiciona a poesia de Gerardo.

Oyenhausen, não obtendo respaldo popular para prender Manuel Martins Chaves, chefe político da família Mourão e dono da fazenda que daria origem a Ipueiras, usa o artifício indecoroso de hospedar-se na casa grande dos Mourões para, durante a madrugada, surpreendê-lo com voz de prisão e "quinhentos soldados de linha" ( id. , pp. 120-29 ).
 

Nesse processo de revisionismo a intertextualidade tem presença obrigatória. Ela está no primeiro poema d'O País dos Mourões, onde é reproduzida a Declaração de Nascimento de Mourão ( id. p. 12 ); está na doação das terras de Tamboril, feita por dona Ana Feitosa, sua avó ( id. p. 63 ); está no documento de Confisco dos Bens do Cel. Manuel Martins Chaves, pioneiro de Ipueiras ( id., p. 127 ); está na conversa de dois caboclos paraibanos sobre viagens espaciais, fragmento transcrito do Jornal do Brasil (id., p. 291 ). Ora inserindo trechos de crônicas e de cartas de familiares na sua literatura (como no caso das crônicas de Alexandre ), ora fazendo a montagem a partir de documentos, ora rememorando casos contados na sua infância, Gerardo Mello Mourão utiliza uma técnica a ser adotada também por outros escritores da pós-modernidade, principalmente por alguns romancistas das últimas três décadas. Um exemplo é O Mundo de Flora ( 1990 ), de Angela Gutierréz, romance no qual a dinâmica variação de planos ( tempo / espaço ) convive com o toque metalinguístico dos ditos folclóricos, das cartas familiares, das estórias e cantorias sertanejas. No entanto, aparente técnica já havia sido utilizada na prosa de grandes mestres alguns anos antes que, muito provavelmente intrigados com o desconcerto histórico-pessoal do homem no meio moderno e em busca de uma expressão que traduzisse intenções de vanguarda e de ruptura com o tradicional, deslocam o eixo do narrador memorialista de modo a fazer com que esse ceda lugar aos cortes, recortes e montagens, numa combinatória parodística em que não somente a literatura mas a própria existência é, dessa forma, contextualizada. Cada um com suas particularidades linguísticas, desses grandes mestres podemos citar Oswal de Andrade – com Serafim Ponte Grande ( 1933 ) e sua linguagem de suturas e rupturas – e Guimarães Rosa – com uma escrita inigualável, fundada na exploração mítica das relações entre as culturas sertaneja e urbana, a coser montagens, neologismos e recortes linguísticos em Grande Sertão: Veredas ( 1956 ). Descontadas as diferenças estilísticas, por conta dos imensos relatos contidos na trilogia, em Os Peãs encontramos tudo isso e mais alguma coisa, pois o estilo de Mourão é plural, nele cabendo também expressões em latim: "In illo tempore" ( id., p. 85 ); em espanhol: "siempre arriban los poetas a los angeles" ( id., p. 311 ); em grego: ????????a, com sentido de liberdade e em oposição a cárcere ( id., p. 240 ); em inglês e em vários outros idiomas. Nessa estranha poesia, quase dominada pela prosa, a experimentação poética também se manifesta no uso de símbolos e de letras gregas ou outros sinais gráficos para titular cada poema, um recurso utilizado também por alguns poetas que, sentindo a influência do emergente Concretismo, buscavam uma solução estética para o concreto, sem abandonar por inteiro a sintaxe tradicional e, ao mesmo tempo, contestá-la, reinventando-a. Mas a expressão mais forte é a do seu povo. Não podemos esquecer sua declaração naquele congresso de 1966, citado acima. É com sentimento nativista que ele canta sua gente e seus ancestrais nos heptassílabos de longeva tradição que, abruptos, surgem em meio a seus versos desmedidos. Nesta redondilha, os Mourões são mais fortes, mais amantes, como seu avô que, numa noite agitada por tiros, cantoria e muitas mulheres

provou as cinqüentas fêmeas
pôs a mão no coração
e sentiu que ele no peito
não se fartara inda não
( ... )
só mesmo teus olhos verdes
dariam a ordenação
capaz na noite e no dia
de saciar um Mourão
( ... ) ( id., p. 72-73 )
 

Apesar da predominância do estilo erudito e do vocabulário requintado, Os Peãs traz, além das redondilhas, a marca da identificação com a terminologia popular, ao resgatar da terra e do povo as palavras que vão se gastando com o tempo, como "chibata" (p. 09 ), "alpercatas" ( p. 54 ), "creatura" ( p. 151 ), "buliam / "ao chouto do cavalo" / "as balas no embornal"(p. 106 ) e diversas outras expressões de uso corrente na sua região.

Ao colocar num mesmo contexto a linguagem elitista, culta, a linguagem erudita, clássica, greco-helênica e a linguagem de seu povo, a fala e os vícios linguísticos próprios de sua região, Gerardo Mello Mourão edifica uma poesia singular em nossas letras, uma épica ao mesmo tempo estranha, monumental e oceânica, a sorver rios e mares de influências, desde o rio Jatobá nas Ipueiras até o Adriático e o Tirreno, passando pelo Atlântico e o Pacífico para, numa dinâmica de retorno às raízes , desaguar nas terras desbravadas por seus ancestrais, nas trilhas e lendas perdidas pela memória e resgatadas pelo poeta que, como um aedo a relatar os ciclos aventureiros, retoma os grandes sopros épicos do passado para inflamarem o conteúdo vívido de seus cantos apolíneos que, inflamados, vibram como uma chama ardente a pulsar no seio da América.

A palavra final é a do próprio poeta, pois não há outro melhor indicado para revelar o propósito meritório de seu trabalho:

Toda a lírica e toda a épica de que fui capaz, se algum mérito tiver, será o da fidelidade às raízes populares de meu país de serranos e sertanejos, onde todas as mulheres são belas e todos os homens são valentes
( ... ) ( Mourão 1997, p. 08 )
 

Mérito tem, senhor Mello Mourão, mas para dirimir qualquer dúvida sobre a grandeza literária de Os Peãs, este texto se fecha com a opinião de ninguém menos do que o poeta Ezra Pound sobre a trilogia aqui estudada, opinião reproduzida em recente artigo do jornalista Emmanuel Nogueira em prestigiado jornal cearense:

Em toda a minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da
América. Creio que não consegui. Ela foi escrita no poema
espantoso do poeta do País dos Mourões
( ... ) ( Nogueira 1998, p. 5 ).


 



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

ARAGÂO, Raimundo Batista. História do Ceará. v.I. 3a. ed. Fortaleza:
_______. História do Ceará. v. II. 2a. ed. Fortaleza: ? s.n. ? , 1991.
_______. História do Ceará. v. III. Fortaleza: ? s. n. ? , 1985.
ARISTÓTELES, Horácio, Longino. A Poética Clássica. São Paulo: Editora Cultrix, 1981.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
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1971.
LÉFEBVRE, Maurice-Jean. Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa.
Coimbra: Almedina, 1976.
MARTON, Scarlett. Nietzsche, uma filosofia a marteladas. 3a. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 2a. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
MOURÃO, Gerardo Mello. Discurso ao receber o grau de Doutor Honoris Causa na Universidade Federal do Ceará. Disponível na Internet no Jornal de Poesia
_______. Os Peãs: o país dos mourões;peripécia de Gerardo; rastro de Apolo. Rio de Janeiro: Editora Record / Rioarte, 1986.
NOGUEIRA, Emmanuel. "Poesia, mar e sonhos de Gerardo Mello Mourão". In: Jornal Diário do Nordeste. Fortaleza, Ceará. Caderno 3. Página 5. Dia 24 de Março de1998.
PELOSO, Silvano. Medievo nel Sertão: tradizione medievale europea e archetipi della litteratura populare del Nordeste del Brasile. Napoli: Liguori, 1984.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. v. I e II. São Paulo: Logos, 1955.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1969.
SILVA, Victor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. 3a. ed. Coimbra: Almedina, 1979.

 



Gerardo Mello Mourão
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