O soneto A árvore da serra, um
poema ecológico ou a paisagem de um assassinato? A
melancolia do Poeta. Francisca, a jovenzinha, Santa
Francisca
Não
sei o nome correto, se Augustismo ou Augusto-dos-Anjismo,
mas sei que se funda no Brasil uma nova religião. Pior, uma nova
seita, cheia de fanáticos: o culto ao Poeta (se eu não botar esse
pê maiúsculo, vou apanhar, por isto, taí: Poeta Augusto dos Anjos).
Ninguém
na literatura da língua portuguesa é mais amado ou mais odiado
que Augusto dos Anjos. Neste ano de 1997, eu vi com estes olhos que
a terra não comerá tão cedo, o reitor Antônio Martins Filho,
numa festa da intelectualidade cearense
que o homenageava pelo extraordinário trabalho de editor (quase 200
títulos, a maioria, escritores da região); pois bem, vi o
reitor recitar “de cor e salteado” vários sonetos de
Augusto dos Anjos, entre eles, o maior deles da língua portuguesa
– dizem os fanáticos –
Vandalismo. O reitor tem “apenas” 94 anos e que Deus o conserve leve
e fagueiro por muito mais!
Alguém
teria de mandar gravar um clip com Hélio Pólvora, outro sacerdote
dessa estranha religião, recitando, também de cor e salteado, os
sonetos do Pai. Ou, com o extraordinário poeta, também baiano como
Hélio Pólvora, o Luís Antonio Cajazeira Ramos, a emoção
plenificada quando recita o tal Vandalismo, e ainda me tem o
desplante de dizer, o Cajazeira, repetindo as “catedrais”, que
aquilo é mais bonito que o Navio!
Dizem
que nenhum poeta brasileiro cresce mais do que Augusto dos Anjos,
– pobre Bilac, este sim, o que menos cresce! Merecidamente, ambos.
Os
fanáticos, com justas razões contrapõem: pior é uma outra seita,
quando um certo Feitosa — o locutor que vos fala — anda
espalhando por aí que o maior poema do mundo, não é da língua
portuguesa apenas; é de todas as línguas, inclusive das que ainda
estão por falar, seria o certo Navio. Algum
navio inédito, de Dante, de Shakespeare? Não, o Navio, de um
certo menino baiano, o Antônio Frederico, dito Castro Alves.
Bom, fanáticos de parte a parte, vamos ao que interessa: seria o
soneto A Árvore da Serra, de Augusto dos Anjos, apenas um poema
ecológico, quando no início do século nem se falava em
ecologia?
A Árvore da Serra
— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma! ...
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra! |
Sempre achei
meio exagerada a imagem desse moço abraçado ao tronco da árvore, para nunca
mais se levantar da terra. Nunca gostei desse senhor Augusto. Por dever de
ofício, não poderia deixá-lo de fora do Jornal de Poesia. Ali coloco a todos,
desafetos inclusos, se é que os tenho — mas devo tê-los — quem não os
tem?, e eles estão todos lá!
Caí
na besteira de ligar para o escritor Hélio Pólvora — isto era Bahia, de
muita saudade, o mês era de junho de 1996, o Jornal de Poesia dava seus
primeiros passos:
— Hélio, você tem algum livro desse chato, o Augusto dos
Anjos?
Percebi
que o moço se ofendeu! Em minutos chegou lá-em-casa, Augusto debaixo do
braço, foi-mo entregando (EU), e o tom era de religiosidade e devoção
absolutas, e leu, de livro fechado, os 4 Sonetos do Pai. E leu Vandalismo. E leu
todas as lágrimas que a sagrada emoção pode permitir a um homem. Emocionei-me
com a emoção dele.
Ele
disse, já se acalmando à cervejinha corretamente gelada:
—
Feitosa, sei o divino Augusto de cor!
Achei
aquilo tudo muito estranho, mas no dia seguinte coube-me pagar a mesma pena. Eu
mesmo digitei o tal Navio para o Jornal de Poesia. Era um livro velho, também
pertencente ao Hélio Pólvora, com os aqueles acentos malucos de “estrêla”,
substantivo, e “estrela”, sem acento, do verbo estrelar. Tive que sair
corrigindo tudo, lendo, relendo. Depois de digitado, dirigi-me a uma das janelas
de beira oceano – o mar revolto, era uma tarde chuvosa, o mar terrivelmente
belo e forte, e caí na tentação de recitar aos berros, pra mim, pros peixes e
a solidão o tal Navio. Menos pranto tiveram o mar e Hélio.
Finalmente,
todos os Navios completos, a obra poética de Castro Alves está
completa no Jornal de Poesia, na Internet, para o mundo! A de Augusto também
está. A de Fernando Pessoa e de Camões também.
Sabem
quem é mais lido? Augusto. (Essas geringonças eletrônicas têm contadores que
acusam quantos leitores comparecem diariamente e o que lêem.) Como curiosidade,
eis os mais lidos, na Internet, num universo médio de 7.000 leitores semanais
do Jornal de Poesia, de todos os recantos do mundo: Augusto, Pessoa, Camões e
Alves, nesta ordem. Estes os quatro grandes da língua portuguesa neste planeta,
— Gaia, um corpo vivo, dizem, esta bola-semente, vulgo Terra.
Acabemos
com tanta conversa mole e voltemos ao tema principal. O soneto ecológico de
Augusto dos Anjos, A Árvore da Serra, ecologia ou tragédia familiar?
Estava
eu num lançamento em Fortaleza, o Anuário do Ceará, do meu amigo Dorian
Sampaio, quando em meio aos comes-e-bebes, Evandro Ayres Moura,
paraibano/cearense, de grande formação humanística, a partir do velho
Seminário Diocesano de João Pessoa, ele, Evandro, também pertencente a
estranha seita dos Augustistas, me diz que a mãe de Augusto mandara matar a
filha do vaqueiro por quem o jovem Augusto de apaixonara e que toda a amargura
da obra de Augusto se devia a esse fato, retratado no soneto A Árvore da Serra
— e sapecou o soneto no meio da pequena e estarrecida platéia que o
cercava.
Assombrei-me.
Fazia sentido. O junquilho, aquele matinho insignificante, como se fosse um
capim rústico (a filha do vaqueiro, a probezinha); e os cedros, as moças
paraibanas, do coronelato dos engenhos senhoriais, Nordeste zelinsdoregueano.
Passei
um e-mail para o meu amigo Hélio Pólvora, atualmente integrando o Conselho
Curador da Universidade Livre do Mar e da Mata, em Ilhéus, Bahia. Ele fez uma
crônica que foi publicada no jornal A Tarde.
Um certo Horácio, contou-me o Sânzio Azevedo, havia dito a ele que a mãe do poeta, uma jararaca, que Deus a
tenha e perdoe, é que teria mandado matar a jovenzinha, Francisca, filha do
vaqueiro. Que o pai de Augusto era um babaca, dominado pela mulher, que ele, o
pai, se omitira, mas ficara do lado do filho; daí a presença sempre muito
grata do pai na obra do poeta; daí o desamor pela mãe, ausente em toda a
obra.
Infelizmente,
não há registro histórico. Diz o Envandro que o fato era do conhecimento de
todos, quando ele, Evandro, jovenzinho, estudava no Seminário em João Pessoa.
Botando esse “jovenzinho” em cima das costas de Evandro Ayres de Moura
(chegou a ser prefeito de Fortaleza e político de bom nome), já um velhote
ainda bem conservado, mesmo assim, seminarista na década de... 30, 40, por
aí.
O
próprio Horácio Almeida se deu por contente com “ouvi-dizer” e nunca se
entregou, parece, a uma pesquisa histórica. Hélio Pólvora que privou da
amizade do irmão de Augusto diz, na crônica de A Tarde que o dito irmão de
Augusto parecia guardar segredos.
Concluo
por achar, mais uma achista, que o poeta teve mesmo o problema amoroso da perda.
Concluo que os pesquisadores não levaram o assunto a sério. Imagino que
fosse mesmo muito difícil, naqueles tempos — hoje, 1997, início de novo
milênio, ainda deve ser impossível! — desafiar um coronel poderoso. Não se
pode esquecer que os pais de Augusto pertenciam à Zona da Mata — cana e açucar —
paraibanos de boa cepa, “de família” como se dizia e ainda se diz.
Proprietários de engenho, sempre foi assim mesmo, uma riqueza cheia de empáfia, tradição e poder.
Quem
se haveria de meter com a coronela-mãe do poeta para “provar” que ela
mandara dar uma “groja” na jovenzinha e que daquela “groja”, o aborto, a morte? E, suprema ironia, da morte, o maior poeta
brasileiro! Desculpem, logo abaixo do Menino!
Quase
cem anos, a “groja”, o aborto e morte de Francisca, tarefa
difícil de pesquisar. A própria família deve ter feito tudo pelo segredo.
Santa
Francisca, salve!
Perdoe-me dizê-lo: foi melhor
assim.
PS: Ia-me esquecendo: de tanto ler esse “marvado”, começo a
gostar dele; de tanto aborrecer de escutar o Vandalismo..., “quebrei
a imagem dos meus próprios ídolos”, já preenchi minha
ficha de inscrição na seita.
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