Cristiane Costa
Muitas Vozes
(in Jornal do Brasil, Idéias, Sábado, 29 de
maio de 1999)
Longa licença poética chega ao fim. Mais de 12 anos sem publicar um
livro de poemas, Ferreira Gullar se aproxima dos 70 anos de paz com
a vida, numafelicidade refletida em "Muitas Vozes"
Muitas vozes ao gênero que o consagrou
como um dos mais importantes autores brasileiros. Presente do poeta
para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos,
Muitas vozes revela uma mudança de tom na obra de Gullar. "Mesmo que
A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente
diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente
em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um
livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito
presente, não como medo mas como reflexão", comenta.
Muitas vozes pode ser lido como a obra
de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma
voz singular na poesia brasileira. Nascido no Maranhão em 10 de
setembro de 1930 como José Ribamar Ferreira, já sob o pseudônimo de
Ferreira Gullar, o poeta lançou seu primeiro livro, Roçzeiral, aos
19 anos. Tinha apenas 24 quando publicou A luta corporal, uma obra
radical que abriu caminho para a poesia concreta no país. "No
começo, havia a busca por uma linguagem que transcendesse o discurso
lógico, que fosse além da própria poesia como era feita até então, e
que terminou por implodir a linguagem. Como conseqüência dessa
implosão, veio a poesia concreta", reflete hoje o poeta.
Cinco anos mais tarde, Ferreira Gullar
romperia com o movimento para criar outro, o neoconcretismo,
esboçado no ensaio Teoria do não-objeto e que culminou com o famoso
poema enterrado no chão.
Uma nova virada aconteceria no início
dos anos 60. Fiel ao clima da época, Ferreira Gullar voltou-se para
a cultura popular, impregnando-se da linguagem do cordel. Da época,
datam João Boa-Morte e Quem matou Aparecida, além das peças Se
correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Vianna
Filho e Dr. Getúlio, com Dias Gomes. Presidente do CPC da Une quando
aconteceu o golpe militar, Ferreira Gullar se exilou na Argentina em
1971.
"Abandonei o neoconcretismo porque
considerei que essa experiência estava esgotada. Isso coincidiu com
uma virada da política brasileira, com a posse de João Goulart.
Empolguei-me pela possibilidade de transformação social e minha
poesia acompanhou isso", recorda Gullar. Segundo o poeta, essa
reconciliação com a linguagem coloquial foi fundamental para definir
novos rumos para sua obra. "Minha poesia de hoje é desdobramento
disso. Costumo dizer que a poesia nasce da prosa. O que existe é a
linguagem de todos. Uso e abuso dela, até da palavra chula. Nunca
busquei o poema puro. Não me preocupo com experimentalismos ou
estéticas verbais. Quero um poema que nasça da vida", afirma.
Foi no exílio que Ferreira Gullar
escreveu seu livro de maior repercussão, Poema sujo, De volta ao
Brasil, publicou uma série de ensaios sobre artes plásticas, sua
segunda paixão, como Argumentação contra a morte da arte, além de
uma Antologia poética. Barulhos, editado em 87, foi seu último livro
de poemas. No ano seguinte, escreveu suas memórias em Rabo de
foguete.
"Quando terminei Barulhos, tive a
sensação nítida de que tinha me esgotado e não voltaria mais a
escrever. Imaginei que a fonte tinha secado. Perdi a motivação e me
senti vazio. Passava os meses sem ter vontade de escrever", conta
Gullar. "Cheguei a passar um ano sem produzir um poema."
Mas, um belo dia, a fonte voltou a
jorrar. Num quarto de hotel de Nova Iorque o poeta retomou a
palavra. "Meu Pai" é dessa leva. A produção seria interrompida
várias vezes até que, em 1994, Gullar conheceu sua atual mulher, a
jovem poeta Cláudia Ahimsa, na feira do livro de Frankfurt dedicada
ao Brasil. "Isso para mim foi um renascer. Passei a escrever com
muito mais freqüência. Foi um encontro inspirador", revela, sem medo
de parecer um poeta romântico e comum.
Em Muitas vozes ouve-se o eco de toda
essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna
luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a
política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro
apresenta um Gullar continuamente renovado.
"Eu mesmo não acredito que estou
chegando aos 70 anos. Nunca pensei que chegaria lá. Para mim, ano
2000 era algo impensável", afirma. No entanto, a idade lhe reservou
boas surpresas, junto com a descoberta do amor tardio. "Nunca pensei
que 70 anos fossem isso. Estou totalmente saudável, em plena vida",
alegra-se o poeta, que parou de fumar há 10 anos e cortou a carne
vermelha, as frituras e gorduras do seu cardápio, para dar uma
ajudinha à sorte. "Não gosto de contar vantagem não. A gente sabe
que é mortal, mas nem sempre se lembra ... felizmente."
Cristiane Costa é subeditora de Idéias
Inventário
Vivo a pré-história de mim
Por pouco pouco
eu era eu
José de Ribamar Ferreira Gullar
Não deu
O Gullar que bastasse
não nasceu
That Is The Question
Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?
Aceito
ou detono o poema?
Sob a Espada
mas que sentido tem tecer palavras e palavras
- amoras
auras
lauras
carambolas -
com esta mão mortal
enquanto o tempo luze sua espada
sobre mim?
Para que armar mentiras
se a água é água se a água é nuvem (entre meus pés) se a folha é por
si só lâmina verde e corta e se meus dentes estão plantados em mim?
nesta gengiva sim
que sou eu mesmo
e unha e ânus
e anca e osso
e pele e pêlo
e esperma e
escroto
com que invento
um verso torto
Nasce o Poeta (parte 7)
Na Quitanda
A moça baunilha
uma flama negra
na quitanda morna
confunde o sorriso
com o sorrir das frutas
seu cabelo de aço
era denso e bicho
seu olhar menina
vinha da floresta
sua pele nova
um carvão veludo
sua noite púbis
uma festa azul
misturada ao mel
no calor da tarde
durou dois segundos?
uma eternidade?
ela aquele cheiro
de casa de negros
de roupa engomando
rua do Coqueiro?
ela sua saia
de chita vermelha?
hoje pe uma pantera
guardada em perfume
Nasce o Poeta (parte 10)
A coisa e a Fala
a boca não fala
o ser (que está fora
de toda linguagem):
só o ser diz o ser
a folha diz folha
sem nada dizer
o poema não diz
o que a coisa é
mas diz outra coisa
que a coisa quer ser
pois nada se basta
contente de si
o poema empresta
às coisas
sua voz - dialeto -
e o mundo
no poema
se sonha
completo
Meu Pai
Meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
Poesia
MUITAS VOZES
Ferreira Gullar
José Olympio, 152 páginas
R$ 17
|