Dalila Teles Veras
Poetas que o mar separa
A história das relações literárias
luso-brasileiras desde sempre nos dá conta do desejo e do esforço
mútuo dos poetas em serem lidos entre si. Apesar disso e mesmo com
altas doses de comunicação imediata, graças à alta tecnologia
disponível ao acesso de qualquer mortal, a incomunicabilidade parece
ainda mais assustadora.
O Brasil desconhece os vates daquele
outro país que lhe emprestou a língua, onde a terra se acaba e o mar
começa e nos separa.
O ensino da moderna literatura
portuguesa no Brasil não vai além de Fernando Pessoa e Mário de
Sá-Carneiro. Depois deles, mais ninguém. Também não é menos
verdadeiro que o ensino da moderna literatura brasileira no seu
próprio país, não ultrapassa a meia dúzia de vacas sagradas de
sempre. Em Portugal, parece, o conhecimento da literatura brasileira
contemporânea também não ultrapassa esses mesmos poucos nomes.
Quando o assunto é poesia, então é o mergulho nas trevas, tanto lá
como cá. Os livros dos poetas não circulam num país nem no outro.
Que sabem os brasileiros da linguagem
múltipla dos poetas pós-Revolução dos Cravos, como a Maria Teresa
Horta e sua poética do desejo; Fernando Aguiar e o seu experimento
da visualidade; Alexandre Vargas e sua poesia da cibernética; Vasco
Graça Moura e Nuno Júdice e o (re)pensar a própria linguagem; Pedro
Tamen, Joaquim Pessoa, Helder Macedo, Alexandre Pinheiro Torres,
António Torrado, Teresa Rita Lopes, José Jorge Letria, Natália
Correia, Ruy Belo, José Viale Moutinho, Eufrázio Filipe que souberam
unir tradição e experimento, olhar social e emoção, amansados pelo
rigor do pensar em sua poesia do sentir e do olhar. Nem sequer
desconfiam da existência dos poetas madeirenses, e de sua dicção
singular, encharcada de insularidade e competência, como José
António Gonçalves, Irene Lucília, Maria Aurora, José de Sainz-Trueva,
José Agostinho Baptista, Carlos Nogueira Fino e Luis Viveiros.
E, apesar de consagrados, o Brasil
pouco conhece os poetas Herberto Helder, Antonio Ramos Rosa, Jorge
De Sena, E.M. de Melo e Castro, Sophia M. Breyner Andresen, David
Mourão-Ferreira, Alexandre O´Neill, Mário Cesariny, entre tantos,
que ocupam um lugar definitivo na história da moderna poesia
portuguesa, mas nem por isso, são conhecidos pelos brasileiros. Aqui
e ali, encontram-se alguns estudos acadêmicos, nada mais.
Cito apenas esses poetas, dos quais tenho livros em minha
biblioteca, "garimpados" nos alfarrabistas de vários estados
brasileiros, bem como de livrarias lisboetas, nas vezes em que por
ali passei. Tenho tido, também, deles notícias através do Jornal de
Letras, de Lisboa. Mais nada.
Em contrapartida, será que alguém, em
terras lusas, saberá dar notícias tropicais de Adélia Prado, poeta
dos cheiros, das artes e das minúcias do cotidiano; de Hilda Hilst e
sua poesia metafísica, carregada de erudição; de Cláudio Willer, e
sua poética surrealista; de Manoel de Barros, o poeta que poetisa o
pantanal e o mundo e seus seres mais ínfimos, homens excluídos e
tudo o que a sociedade despreza; Francisco Alvim, Neide Archanjo,
Rui Espinheira Filho, Álvaro Alves de Faria, Waly Salomão, Armando
Freitas Filho, Iacyr Anderson Freitas, Fábio Fiorese Furtado, Rubens
Rodrigues Torres Filho, múltiplas vozes, próprias da busca deste
início de século; para falar apenas de alguns poetas vivos e dos
mais significativos e atuantes no Brasil.
E acaso desconfiará Portugal da
existência daqueles que em Portugal nasceram e no Brasil se fizeram,
estrangeiros sempre, nem de lá nem de cá? Daqueles que, contrariando
o destino de quase todo emigrante - a vala comum do trabalho braçal
- sobressaíram-se nas letras e nas artes em busca de respostas
estéticas para o seu ser/estar no mundo? Saberá Portugal de Maria de
Lourdes Hortas, dona de poderosa voz, com seu trabalho incansável em
prol da divulgação dos poetas luso-brasileiros; de José Rodrigues de
Paiva, professor universitário e poeta reconhecido, ambos radicados
no Recife; João Barcellos, Constança Lucas, Fernando Paixão, José
Luís Monteiro e Dalila Teles Veras, que vivem em São Paulo e, cada
um à sua maneira, faz da poesia sua expressão e o seu ofício; Cunha
de Leiradella, romancista e dramaturgo dos mais competentes e
talentosos, nascido lá nos alcantis da Serra do Gerês, há muitos
anos no Brasil, atualmente residindo em Belo Horizonte; Silvério
Ribeiro da Costa, de Santa Catarina, e seu lirismo carregado de
questionamento social; João Manuel Simões, radicado em Curitiba, e
sua poesia de referencial erudito que já conta com uma bibliografia
crítica invejável; Carlos D´Alge e Beatriz Alcântara e sua poesia e
militância acadêmica no Ceará; e de tantos outros que,
silenciosamente, constroem uma diáspora da expressão lusa com
sotaque brasileiro?
Há, é claro, os casos de esforços
individuais e isolados no sentido de difundir essas literaturas,
dignos de serem mencionados. A começar por Cecília Meireles, que em
1944, já se mostrava preocupada e publica Poetas Novos de Portugal
(Edição Dois Mundos, Rio de Janeiro), poderíamos citar em tempos
atuais, o esforço e a competência da jornalista portuguesa radicada
no Brasil, Maria Cremilda de Araújo Medina que, a partir de uma
série de reportagens no jornal O Estado de São Paulo, em 1982,
publicou em 1983 o livro Viagem à Literatura Portuguesa
Contemporânea (Editora Nórdica, RJ), dando início a uma trilogia
composta pelos livros Escritor Brasileiro Hoje - A posse da Terra,
de 1984, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa e, em 1987, a
antologia Sonha Mamana África, edições Epopéia, SP, que dá a
conhecer o perfil de 41 escritores africanos de língua portuguesa.
Citaríamos também o esforço pessoal de João Alves das Neves, autor
de várias antologias, como Contistas Portugueses Modernos, Difel,
SP, com três edições, 1968, 1971 e 1982, e Poetas Portugueses
Modernos, O Movimento Futurista em Portugal (duas edições), além de
muitas outras obras que abordam aspectos diversos das letras lusas,
brasileiras e africanas de língua portuguesa. Caberia ainda citar
outro exemplo de esforço individual, o de Maria de Lourdes Hortas,
autora de Poetas Portugueses Contemporâneos, uma antologia de poemas
e entrevistas com 30 poetas, realizadas em 1965. Esse trabalho ficou
engavetado, por falta de interesse de editores, durante 20 anos, até
ser publicado em 1985 pela Edições Pirata, uma pequena editora do
Recife.
Pobre destino o da poesia: a gaveta ou
o desdém.
Mais recentemente, em 1994, apareceu
no Brasil o livro Palavra de Poeta - Portugal (Ed. Civilização
Brasileira), da jornalista brasileira Denira Rozário, que já
publicara em 1990, Palavra de Poeta - Brasil. Desconheço se foi
publicada a parte referente à literatura africana, conforme era sua
intenção, completando a trilogia.
É muito? Claro que não. São apenas
gotinhas que, distribuídas precariamente, mal chegam às mãos de
alguns interessados, jamais ao grande público. Que fazer?
Perguntaríamos.
Exigir que os órgãos oficiais
representantes das comunidades luso-brasileiras cumpram o seu papel
de fomentar, divulgar, registrar a memória artístico-cultural é
tarefa que tem se mostrado por demais inacessível e que nós, simples
poetas, talvez não tenhamos a coragem nem o conhecimento dos
meandros burocráticos para enfrentar.
Exigir que os correios restaurem o
convênio mantido por vários anos, no qual as tarifas postais
pudessem ser reduzidas promovendo uma troca mais ampla de
informações, livros, jornais e revistas que interessem ao
intercâmbio cultural entre os dois países, também já é matéria por
demais repisada para que se exija retomá-la.
Resta-me acreditar nos esforços
individuais e na vontade política de alguns em promover a circulação
de informações, coisa que os poetas aprenderam de há muito a
faze-lo, nos bastidores dos congressos, nos corredores dos
seminários, subvertendo os discursos vazios da oficialidade e unindo
continentes através de envelopes repletos de poemas.
Se o mar nos separa, que pelo menos a
língua, nossa pátria comum, possa nos unir, e que possamos, como
térmitas, cavar vasos comunicantes e subterrâneos que, para além dos
acordos oficiais, possam realmente propiciar um mútuo conhecimento
da poesia que faz uso da mesma língua com sabores diferentes, Amém.
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