Dalila Teles Veras
O que nos chegou da Ilha da Madeira
naquele dia de 1957 não foi um malvasia, um sercial, um verdelho ou
um boal. Era uma menina de olhos grandes, espantados com a nova
paisagem. Mas quem vem de lá, trazendo a alma impregnada das
virtudes, dos perfumes e das cores dessas preciosas castas, sabe que
os vinhos são produzidos com muita labuta – iniciada nas encostas
ensolaradas da ilha, onde cantos acompanham a cadência dos braços
nas vindimas, e concluída nas adegas, onde paciência e tradição
apuram os melhores teores.
É para dizer que aquela menina
chamada Dalila tinha marcas atávicas que não seriam apagadas, e que
se transformaram em predestinação nessa sua nova pátria. Assumiu de
outra forma as tarefas da colheita, fazendo da língua sua vinha e da
poesia o seu produto.
Quando em 1972 aportou em Santo André
já era Dalila Teles Veras, sabia que nessa região se vem a trabalho
e não demorou para perceber glebas inexploradas ou abandonadas do
campo cultural. Além de elevar a sua voz poética com Lições do Tempo
e depois com Inventário Precoce e A Palavraparte, se dedicou à
persistente descoberta, arregimentação e divulgação de autores e
artistas do Grande ABC, convencida de que uma região de tamanha
importância, sob todos os aspectos materiais, tinha de sair de sua
condição periférica, aprofundar a busca de sua identidade, sua
história e suas contradições e, desse mergulho, tirar não uma
cultura autônoma, mas reflexiva de sua realidade. Lembrando
Jean-Louis Barrault: "Somos todos cidadãos do mundo e um homem de
sua aldeia".
E dessa enorme aldeia, formada por Santo André, São Bernardo do
Campo, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires, Diadema e Rio
Grande da Serra, vozes e artes despertadas começaram a se apresentar
no Livrespaço e depois no grupo Em Movimento, e, por obra de Dalila,
não se esvaíram em tertúlias de bar. Ela cuidou de marcar os
caminhos percorridos, de registrá-los em revistas.
Sua poesia se aprimorou, se expandiu e atravessou fronteiras com
traduções em diversos países, mas não lhe faltou fôlego para a
crônica, um comprometido debruçar, uma observação interessada,
muitas vezes apaixonada sobre a cidade, seu cotidiano, seus fatos
culturais. Reunidos em A Vida Crônica e As Artes do Ofício, esses
textos servirão de referência segura para quem venha a perscrutar a
vida da região, pois, além da sensibilidade, não lhe falta
independência para a crítica ou elogio.
Dalila não é daquelas pessoas à
espera das benesses públicas. Ela vai na frente, comanda a ação,
provoca e realiza. Portanto, tem respeitabilidade para clamar contra
a inércia, que, quando se instala, atravanca iniciativas e tolhe a
criação de grupos ou pessoas.
A Alpharrabio Livraria Espaço-Cultura e a Alpharrabio Edições, que
ela criou e dirige, vêm irradiando modelos em diversas áreas. Para
interessados em literatura e arte aí se situa a melhor livraria da
cidade, pensada em função superior à de um balcão dos últimos
lançamentos. É também local para consulta e, se o tema é o Grande
ABC, com certeza o pesquisador (ou o simples leitor) disporá de um
número surpreendente de obras de referência. O Espaço Cultural tem
servido à música, às artes plásticas, ao teatro, à poesia, ao debate
e para a simples e indispensável conversa/convivência. Com a atual
reforma, a casa da rua Eduardo Monteiro, 151, sem perder o calor e o
jeito antigo, ganha amplitude para acolher com melhores condições os
diversos tipos de manifestações.
A Alpharrabio Edições vai crescendo,
dedicada primordialmente aos autores do ABC. Vem fazendo revelações
do campo da poesia, da crônica e do ensaio, com repercussões muito
além do limites da região. Ainda é cedo para aquilatar a
importância, por exemplo, da Coleção Imaginário, que desafiou vários
autores para um balanço do final do milênio.
Temos finalmente a revista Abecês,
editada pela Alpharrabio, que chega ao seu sétimo número, mapeando o
movimento, analisando obras, rememorando o que não deve ser
esquecido, tentando despertar e fixar hábitos culturais, como o
básico gosto pela leitura.
É claro que Dalila teve companheiros
nessa jornada. Nem sempre os mesmos, que trocas se fazem por azares
e vicissitudes da vida. Ela, com certeza, desejará dividir os
méritos com outros. Com os amigos e parceiros fiéis. Em primeiro
lugar, com o velho Teles. Mas todos desse Grande ABC foram premiados
por ter aqui desembarcado essa destemida mulher. Não é com
freqüência que se tem à mesa um vinho de tal qualidade. Da Madeira.
José Armando Pereira
da Silva / 2002
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