Elieser César
Elieser Cesar entrevista e poeta
Ruy Espinheira e comenta sua obra poética
Poesia da mágoa desertada
in Jornal A Tarde
14.11.98
Em uma outonal
manhã de sábado, cercado de livros e ao som de algumas peças de
Bach, música sugestiva para o ambiente, converso com Ruy Espinheira
Filho, num shopping cultural do bairro de Ondina, em Salvador.
Falamos, sobretudo, da poesia dele, de seu novo livro, dos planos
para o futuro e temos a cálida sensação de que essa conversa, entre
amigos, sobre poesia, tem aquela mesma faculdade milagrosa do Anjo
de maio, de resgatar o essencial da vida; de fazer a mágoa desertar.
Na entrevista
que se segue, o poeta defende a escrita simples, de fácil
compreensão, mesmo para os temas mais complexos – “quem não tem o
que dizer é que complica” –reconhece o traço melancólico de sua
poesia; muito voltada ao passado (“o que respiro é ontem”, diz um de
seus versos). “A vida é feita de perdas. Tudo o que você tem, você
perde”, constata Ruy, para emendar, com suave resignação: “O que a
vida nos promete é a morte”. Ainda na entrevista, o autor de Memória
da Chuva,
espezinha a poesia concreta e a poesia práxis (“se você não tem
talento vá ser concretista, praxista, construtivista; se você tem
talento, vá ser poeta”); informa que a Record manifestou interesse
em editar outros três livros dele: o romance O Príncipe das Nuvens,
inspirado na vida do poeta baiano Carlos Anísio Melhor, o livro de
poesia Elegia de Agosto e sua tese de doutoramento (a ser defendida,
no Instituto de Letras da Ufba) sobre o conceito de criação e arte
em Mário de Andrade. A seguir, a entrevista.
Elieser Cesar – O que representa seu novo livro Poesias Reunidas e Inéditos?
Ruy Espinheira Filho – A reunião de minha poesia, só que, agora,
mais completa e devidamente revisada. A gente sempre faz uma revisãozinha, mesmo que ela passe imperceptível ao leitor. Sempre há
uma coisinha, aqui e ali, que a gente muda. Esse livro chega
praticamente em todas as livrarias do Brasil que se arriscam a
vender poesia, graças à distribuição excepcional da Record.
EC – Você fala em revisão. Se um leitor pegar seus livros de poesia,
todos reeditados, poderá notar essas mudanças?
REF – Têm algumas mudanças. São algumas palavras que eu substitui;
outras que eliminei. São pequenas coisas, mas se for feito um
trabalho comparativo, evidentemente que se perceberá esse tipo de
trabalho. Tanto que o ensaio do Iaçi Anderson Freitas sobre a minha
poesia anota, em um dos capítulos, essa mudança. Só que, agora,
antes de editar (ele está para ser editado), Iaçi vai
ter que fazer algumas alterações, devido às mudanças que eu fiz. São
poucas, mas visíveis num trabalho comparativo. Agora, o leitor comum
dificilmente vai atinar para essas alterações. Esse tipo de trabalho
é normal nas reedições de livros de poesia. Uma vez eu me dei ao
trabalho de comparar a primeira edição de A Rosa do Povo, de Carlos
Drummond de Andrade, com a edição que eu tinha, dos anos 70 ou
início dos 80, e fiquei surpreendido com as
mudanças feitas. Cheguei a escrever um artigo sobre o assunto,
publicado na Tribuna da Imprensa, no Rio de Janeiro, nos anos 70.
Drummond ouviu falar nele e me mandou pedir uma cópia. Eu mandei e
ele mandou agradecer, dizendo que era isso mesmo, que tinha feito as
alterações etc. Isso é normal. Há poetas que mudam muito. Drummond
mudou o essencial, uma palavra aqui, outra ali, que dá outro tipo de
ajuste. São palavras mais pertinentes. Às vezes enxugava os versos
de uma maneira admirável.
EC – Você acha que já atingiu aquilo que, às vezes levianamente,
chamamos de maturidade de um artista?
REF – Isso de maturidade é uma coisa muito complicada, porque eu não
me acredito um autor maduro, acho que nunca serei, espero nunca ser
um autor maduro, para seguir aquela advertência de Mário de Andrade
de que quando a gente fica maduro começa a apodrecer. Eu continuo,
diante dos meus textos, com a mesma perplexidade, o mesmo trabalho
dos primeiros livros. Alexei Bueno (poeta do Rio de Janeiro), na
orelha do meu livro, diz que não se pode falar num amadurecimento de
minha poesia; uma coisa mais ou menos assim; pode se falar em
mudanças, mas não amadurecimento, porque ele acha que minha poesia
já nasceu madura. Meu primeiro livro de poemas, Heléboro, eu
publiquei com 31 anos de idade. Não publiquei antes porque
possivelmente teria publicado um livro bem inferior. Mas, falando do
presente, essa oportunidade da Record é importantíssima, para
atingir um público maior. Nós ainda não temos uma visão muito clara
do que isso vai representar para o futuro, mas, em termos de visão
qualitativa, o livro vem recebendo as melhores referências. Pelo
menos percebi que há, lá no Rio de
Janeiro, uma certa satisfação pelo fato de terem editado esse livro
meu.
EC – Como você vê, quase 25 anos depois, seu Heléboro?
REF – Com muita satisfação. Eu o alterei inúmeras vezes. As pessoas
nem percebem que eu o alterei, mas tirei algumas coisas pedantes,
que tinha no início, uma certa tendência para uma linguagem mais
esnobe, mais, digamos assim, erudita. Fui desbastando essa
tendência, simplificando a linguagem. Há
diferenças incríveis entre o primeiro número do livro e desta
edição, inclusive de edições anteriores. Realmente substitui uma
série de coisas, mas foi um livro que já nasceu me satisfazendo. E
abriu caminho para o resto.
EC – Quem lê sua poesia, quem acompanha os desdobramentos dela, nota
realmente uma poesia mais desbastada, sem preocupação com efeitos de
retórica. Percebe uma poesia que se pretende compreensível,
transparente, contida, sem abrir mão da emoção. Essa simplicidade é
mesmo a tendência de sua poesia?
REF – Acho que a tendência do autor é procurar ser, cada vez, mais
simples. Quando se vê um autor se complicando, ele está num caminho
equivocado. Porque escrever com simplicidade é a coisa mais difícil
que existe. Os grandes autores escrevem com simplicidade. Eles podem
ser complexos por causa da temática, não porque causem problemas
estilísticos para o leitor. Machado de Assis, por exemplo, é um
escritor muito simples, porém,
profundo; com aquele sarcasmo e aquelas ironias eruditas. Agora, a
escrita dele é simples. Os grandes poetas são simples...
EC – E quem não é simples e só atrapalha?
REF – Há poetinhas aí menores, sem importância nenhuma, de quem você
pega texto e lê uma coisa hermética, que ninguém penetra. Então eu
acho o seguinte: como eles não têm o que dizer, eles complicam;
escrevem de maneira que você não sabe se estão sendo profundos. Eles
não estão sendo profundos coisa nenhuma; não querem é que você veja
que estão sendo rasos. Qualquer pessoa que não tenha disfunção
mental lê Carlos Drummond de Andrade, lê Jorge de Lima, Manuel
Bandeira, Vinícius de Moraes, Camões, Fernando Pessoa; lê os grandes
poetas estrangeiros, de Baudelaire para cá, principalmente. Esses
caras nunca complicaram a vida de ninguém.
EC – Você acha que a poesia é transmissível a todos?
REF – Acho que todo mundo é capaz de ler. A questão é a seguinte:
muitas pessoas jamais leram poesia. Então, é claro: se uma pessoa
nunca leu poesia na vida e pega, de repente, um texto, vai ter
dificuldades e, geralmente, quando se tem dificuldades, a tendência
é se afastar.
EC – Já se disse que somos memória. Sua poesia é muito mnemônica.
Qual a importância da memória em sua obra?
REF – Qualquer autor escreve, 90% com a memória, mesmo que não
apareça no texto. O autor é a memória dele; o homem é sua memória.
Sem a memória nós não existimos. Minha poesia fala da vida, da minha
experiência existencial. Agora, ela tem muita coisa que não é
mnemônica, como o lado social, por exemplo.
EC – Essa marca mnemônica não torna melancólica a sua poesia,
sobretudo quando remete à infância, à morte e a um tempo para sempre
irresgatável?
REF – Eu não sou um sujeito existencialmente melancólico, mas quando
eu reflito fico melancólico, porque a vida é melancólica. Quando
você fala em perdas, é porque teve conquistas. Você só perde aquilo
que um dia possuiu e conquistou. Esta é a história da vida e não há
outra. A vida é feita de perdas. Você, quando é criança, não perdeu
nada, só tem coisas a conquistar. Mas, com o passar da idade, começa
a perder. Vai perdendo os amigos, vai
perdendo pai, vai perdendo mãe, vai perdendo perspectivas, vai
perdendo tempo, a perspectiva do tempo diante de você. E você só tem
um caminho, que é este, pois não há um caminho de volta. O homem
perdeu o paraíso porque tomou consciência do seu estar no mundo. O
que a vida me promete, na verdade? Me promete a morte.
EC – Ruy, você trabalha bem o verso livre, mas se dedica também ao
soneto, lançou recentemente uma pequena coletânea Livro de Sonetos
(Edições Cordel – 1998). Fale sobre sua experiência com o soneto.
REF – Quando você escreve, começa a sofrer exigências da própria
obra. O soneto é uma das formas mais sofisticadas da poesia. Eu não
diria nem que seja uma forma; no sentido de objetivo parnasiano, ele
é um meio de expressão extremamente sutil e de domínio muito
difícil. Eu acredito que todos os poetas acabam fazendo sonetos. O
único que não foi nesse sentido é João Cabral de Mello Neto.
EC – Você tem um ensaio sobre Mário de Andrade, que é sua
dissertação de doutorado. Em que fase se encontra?
REF – Está terminando, faltando apenas os ajustes finais. Ele deve
ser julgado no próximo ano e, em princípio, está interessando também
à editora. No ensaio, eu acompanho Mário de Andrade na reflexão que
ele faz sobre criação e arte, desde 1917, mas rigorosamente de 1921
até 1945, quando ele morre. Eu faço um acompanhamento do que Mário
de Andrade pensou, praticamente a vida inteira, sobre esses dois
aspectos fundamentais: o processo de criação e o conceito de arte.
Esse trabalho revela o que Mário
de Andrade ensinou a essa gente toda, a Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Vinícius de Moraes; todo mundo. Só de cartas de Mário,
eu trabalhei com 22 volumes. Seus ensaios, suas críticas, seus
artigos, suas crônicas, tudo em que ele se referiu sobre criação e
arte eu trabalho em meu estudo.
EC – Qual era a visão de Mário de Andrade sobre criação e arte?
REF – Ao contrário de que certos críticos diziam que ele tinha dito,
Mário começava dizendo que a criação tem que ter tanto de
inteligência quanto de coração. Isso era para rebater os
parnasianos, já em 1921 partia do pensamento que só emoção e
inteligência juntas podem produzir uma obra de arte. Se a
inteligência sozinha produzisse uma obra de arte, qualquer sujeito
inteligente e bem preparado faria um poema ou escreveria um romance,
o que não é possível. A emoção sozinha dá para você gritar, dizer
que está apaixonado e tal, mas isso não é arte. Então, o que é arte?
A emoção e a inteligência juntas produzem um terceiro objeto que,
por si só, provoca emoção e não necessariamente a emoção do autor.
Durante toda sua vida,
Mário de Andrade pensou nisso, com algumas variações, mas
basicamente isso. Ele sempre achou uma coisa que me parece óbvia,
mas para tanta gente não é e eu fico perplexo: a arte, se não vier
lá do fundo, se não vier do subconsciente, não é arte coisa nenhuma.
Se você me encomendar um soneto sobre essa coluna de cimento, eu
faço, chego aqui e faço. Mas e daí? É apenas uma aplicação de
técnica. Não é arte.
EC – O que representou a perda de Mário de Andrade para a geração do
Modernismo?
REF – Há um fenômeno na literatura brasileira deste século: Em 1945
morre Mário de Andrade, depois aparece justamente a Geração de 45,
altamente reacionária, neoparnasiana. Depois vem concretismo, poesia
práxis, tudo reacionário. A palavra de ordem dessa geração foi:
“Vamos esquecer Mário de Andrade”. Em um dos seus ensaios Cacaso
diz, muito lúcido, que ler o que Mário de Andrade pensava de arte é
revelar a pobreza dessas vanguardas. Então, as vanguardas sabiam
disso. Um irmão Campos desse
não resiste à leitura de Mário de Andrade. Você lê Mário de Andrade
vai pensar assim: e essa besta está fazendo o que aí? Eu fiz um
livro que acho que vai ser muito útil para estudantes de Letras,
professores, qualquer pessoa que goste de literatura. Eu escrevo um
livro. Não estou escrevendo uma tese de doutorado, pedante, porque
não me interessa fazer isso. Isso eu acho que é
para quem não sabe escrever. Esse livro vai ter uma resposta.
Inclusive, eu vou tomar umas porradas lá, na Folha de São Paulo,
porque eu dou umas porradas em gente que, na Folha de São Paulo, é
sagrada. Por exemplo, eu abordo o concretismo, abordo poesia práxis,
abordo a crítica célebre do Roberto Schwartz, chamada O Psicologismo
na Poesia de Mário de Andrade, que é inteiramente falsa. O ensaio
inteiro é falso, do princípio ao fim. Eu exponho tudo isso. Esse
ensaio, hoje, é considerado um clássico. Para chegar às conclusões
que eu chego, tive que ler Mário de Andrade e coisas sobre Mário
durante mais de 30 anos. A leitura de Mário de Andrade me dá uma
alma nova diante dessas coisas modernosas.
EC – Para encerrar, fale sobre suas influências literárias.
REF – São as influências gerais, aquelas que todo mundo tem. Toda a
poesia ocidental, vamos dizer assim. Claro e evidentemente, a poesia
latina, a poesia portuguesa, a poesia espanhola. No Brasil, mais
centrada nas influências que vêm a partir de Manuel Bandeira, Mário
de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto,
Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, esses poetas e alguns
estrangeiros, como Baudelaire, que influencia todo mundo; Eliot, a
poesia inglesa e os poetas portugueses, Camões, Fernando Pessoa,
José Régio, Mário Sá Carneiro; essa gente toda. Todo autor tem que
ler. Então, eu recebo a influência desse povo todo. Tudo o que você
lê, de certa forma, vai influenciar seu trabalho.
Elieser Cesar é jornalista e escritor.
Comentários de Elieser Cesar:
14.11.98
Versos inscritos no peito
Em um de seus
sonetos, Ruy Espinheira Filho fala de um anjo que resgata a alegria
de viver de alguém que se sentia como “cinzas sobre o Nada”. Essa é
uma boa imagem para a poesia, varrer as cinzas do peito recôndito.
Não é uma tarefa fácil. É dolorosa, mostrar o homem nu, diante do
espelho da alma, nem sempre transparente. Real, sempre. É desse
modo, nessa descida em si mesmo e no outro, que Ruy constrói sua
poesia. Escrevendo no peito dos homens, como disse, certa vez, Mário
da Silva Brito, “com concentrada e sutil expressão”, como atestou o
insuspeito Carlos Drummond de Andrade; falando do homem, do tempo do
homem, de suas conquistas e de suas perdas, porque – como diria o
próprio Ruy – conquistar é perder.
Poeta, escritor,
jornalista e professor universitário, Ruy Espinheiro Filho vai
coroando uma carreira exitosa na poesia, sem apelos retóricos,
atavios parnasianos ou arroubos estilísticos, mas de modo simples e
grave, transparente e profundo como convém aos verdadeiros poetas –
aqueles que escrevem, como sempre quis outro Mário (o da desvairada
Paulicéia), com inteligência e paixão; paixão porque têm o que dizer
e, como um impulso vital, necessitam dizê-lo; inteligência para
saber a melhor maneira de dizer.
Ao longo de três
décadas de poesia, Ruy Espinheira Filho conseguiu uma simplicidade
de expressão que só poetas que merecem esse nome lograram alcançar.
Como quem está seguro do que faz e se acaso se desvia de sua rota o
faz apenas para ajustar melhor os passos ao mesmo caminho, Ruy sabe:
o difícil é comunicar-se de maneira simples (a palavra comedida, mas
evitando a aridez sovina da contenção verbal; o estilo desbastado; a
voz, porém, planando além do apertado encaixe das palavras). Claro
como um dia luminoso, nítido como um concerto polifônico. Assim é o
estilo do poeta Ruy Espinheira Filho.
O recente
lançamento de Poesia Reunida e Inéditos, pela editora Record, sela
definitivamente o lugar de Ruy Espinheira Filho no panorama da
poesia brasileira contemporânea. Ruy é, hoje, um poeta nacional e
dos mais representativos, como demonstra uma recente pesquisa feita
pela revista Poesia Sempre. A revista consultou 119 pessoas ligadas
às letras e à crítica
literária, entre escritores, poetas, jornalistas e críticos de
livros, para elaborar uma lista dos 20 poetas mais influentes do
Brasil, atualmente. A lista é desigual, injusta por englobar poetas
menores, alguns que, mesmo persistindo na busca do verso preciso,
dificilmente conseguirão pôr algo mais do que idéias no papel,
pensamentos com um pálido e desbotado verniz poético.
Porém contempla,
merecidamente, Ruy Espinheira Filho, ao lado de nomes como Ferreira
Gullar, Manoel de Barros, Adélia Prado e os – concretamente pesados
– irmãos Campos. Marcada para sair no próximo ano, a publicação da
antologia com os 20 da consulta parece agora incerta, já que a da
própria revista foi suspensa, segundo corre nos meios culturais do
Rio de Janeiro.
Leia a obra de Ruy
Espinheira Filho
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