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- Minha pátria é a língua portuguesa:
Bernardo Soares
Gosto de dizer. Direi melhor:
gosto de palavrar. (s.d.)
L. do D.
Gosto de dizer. Direi melhor:
gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis,
sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade
real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem
sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que
em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se
dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand,
fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente
quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página,
até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia
sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio
passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados,
gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre
inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio
externo, deixando que as palavras me façam festas, criança
menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas,
numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas
se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas.
Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam
por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia,
malhado e confuso.
Não choro por nada
que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite
em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo
célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão
um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo,
confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade
real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará
imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua
majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis,
correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico
em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto
como uma grande emoção política. E, disse, chorei:
hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade
da infância de que não tenho saudades: é a saudade
da emoção daquele momento, a mágoa de não poder
já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento
nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um
alto sentimento patriótico.Minha pátria
é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem
ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.
Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que
sinto, não quem escreve mal português, não quem não
sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a
página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada,
como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro
directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia
também é gente. A palavra é completa vista e ouvida.
E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero
manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Livro do Desassossego por
Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição
dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio
e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1982. |