O mago Saramago
Luísa Pinto Leite*
No dia 8 de outubro, o escritor português José Saramago foi
agraciado com
o máximo laurel que existe na sua área de atuação:
o Prêmio Nobel de
Literatura, referente ao ano de 1998. Para mim, pessoalmente, foi um
deslumbramento. Desde que penetrei no seu universo encantado, há
quase
duas décadas, fiquei cativa. Procurei ler tudo aquilo que escreveu
de mais
representativo, e dediquei-lhe, de forma bem exaustiva, três anos
de minha
vida, ao fazê-lo objeto de minha dissertação de mestrado.
Com o saudoso professor Ruy Simões, desfrutei horas maravilhosas
de
encantada cumplicidade, “militantes” (sua denominação) que
éramos ambos
do talento saramaguiano. Sobre o autor e suas obras, Ruy escreveu vários
artigos no jornal A TARDE, e um trabalho de maior extensão, publicado
em
formato de livro. Se o Ruy fosse vivo, a minha alegria com este prêmio
seria
bem maior, pois teria nele e seria dele reflexo especular multiplicador
de
intensidade!
Tenho em mãos o texto integral da versão portuguesa do comunicado
da
Academia sueca (publicado na edição extra de 14 de outubro
do Jornal de
Letras Artes e Idéias, de Lisboa), anunciando e justificando a atribuição
do
Nobel a José Saramago, e dele citarei umas poucas passagens, com
que
concordo mais especialmente, ao tempo em que tecerei as minhas próprias
loas...
O texto começa por enfatizar: “O português José Saramago
faz 76 anos de
idade em novembro. É um prosador oriundo da classe trabalhadora
que só
atingiu a celebridade quando cumpriu os 60 anos.”
Após essa introdução, são singularizados, com
sinopse e elogio, os livros:
Manual de Pintura e Caligrafia (1977), Memorial do Convento (1982), O
Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Jangada de Pedra (1986), História
do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991),
Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997).
A respeito do Memorial do Convento, por exemplo, diz: “É um texto
multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma perspectiva
histórica, social e individual. A inteligência e a riqueza
de imaginação aqui
expressas caracterizam, de uma maneira geral, a obra saramaguiana. A ópera
Blimunda, do compositor italiano Gorghi, baseia-se neste romance”.
Parece-me que esta avaliação é, realmente, adequada
para qualquer das
obras metahistóricas do autor. Parece-me, outrossim, que é
nelas, também
denominadas de metaficções historiográficas, tecidas
na interface da história e
da ficção, que Saramago se faz maior. Ali ele mostra, com
o maior talento,
mundos deliberadamente fictícios e, ao mesmo tempo, inegavelmente
históricos, dentro do discurso lingüístico. Na obra
História do cerco de
Lisboa, por exemplo, é possível perceber uma suspeita radical
em relação ao
ato de registrar a História. Quando o revisor acrescenta um “não”
à frase da
narrativa canônica, contestam-se os seus pressupostos implícitos:
neutralidade, impessoalidade, objetividade, transparência. É
a forma do
escritor questionar a infalibilidade do discurso histórico. Mas
questionar não é
negar: ele aceita o registro histórico, pois é tudo o que
nos restou do passado,
e inserindo um registro paralelo, relativiza o seu valor como verdade absoluta.
E, ao assim fazer, questiona o estatuto de verdade absoluta de tantas outras
“grandes narrativas”...
A repetição de relatos da história é ao mesmo
tempo uma volta às origens,
uma homenagem e um questionamento. O eixo diacrônico (textos anteriores)
e o sincrônico (contexto atual) fundem-se pela ação
do escritor, que usa e
amplia as escritas primordiais... Não são, entretanto, apenas
isto os seus
romances “metahistóricos”. Não! Como palimpsestos depositários
de culturas
plurais que convergem na memória (e não no esquecimento modernista),
suas
metaficções historiográficas incluem o mito, o erudito,
o popular, a história
canônica, a tradição oral, a história de amor
com final feliz, o “suspense”, as
inter/intratextualidades, a alegoria, tudo utilizado sem hierarquia e envolvido
em uma ironia terna e bem-humorada.
Além de tudo isso, as suas fábulas metahistóricas
são também romances
divertidos, não obstante cada página colocar em questão
uma verdade
institucionalizada, mas sempre à luz de um tênue e pudico
sentimento
amoroso. Ele não abandona a fé na vida e a crença
de que melhores dias se
aproximam; e são estas, aparentemente, as linhas mestras dos finais
felizes
dos livros de Saramago. Em suas mãos a língua portuguesa
atinge um novo
momento de plenitude, desempenhando função nuclear e com
a capacidade
encantatória desde sempre atribuída a determinadas enunciações
verbais.
Nunca polêmico, sempre lúdico, Saramago brinca na edificação
de um novo
mundo possível, transforma o tempo e o espaço, faz do passado
uma das
metáforas do presente, intervém entre os seus personagens
com as suas
próprias dúvidas, a sua hesitação, os seus
sorrisos...
Para terminar, volto ao texto acadêmico. Ele menciona ainda a “riqueza
efabulatória, excentricidade e agudeza de espírito” do escritor
Saramago e
encerra a justificativa da atribuição com esse parágrafo
exemplar: “A arte
romanesca multifacetada e obstinadamente criada por Saramago, confere-lhe
um alto estatuto. Em toda a sua independência, Saramago invoca a
tradição
que, de algum modo, no contexto actual, pode ser classificada de radical.
A
sua obra literária apresenta-se como uma série de projectos
onde um, mais ou
menos, desaprova o outro, mas onde todos representam novas tentativas de
se aproximarem da realidade fugidia”.
* Nascida em Portugal e radicada na Bahia, Maria Luísa Pinto Leite
Gonçalves tem mestrado em Letras e atualmente ensina Literatura
Portuguesa no Instituto de Letras da Ufba.
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