ou a Retrovisão Emocionada
Toda a poesia de Alberto da Costa e Silva é uma reflexão
sobre “...este rastro sem sentido / que vem ao homem e parte do menino”,
como ele mesmo o expressa lapidarmente em “Poema de Aniversário”.
Equidistante de ambos, numa espécie de terra-de-ninguém, ergue-se o Poeta, irrecorrivelmente exilado. O alumbramento, a efusiva desprevenção do Éden na origem, debalde se conseguiriam restabelecer no outro clima tão-só propício ao aviltamento e poluição do ser autêntico. Por sua vez, a complacência com o asqueroso jogo, com as manobras prevalecentes na Feira onde se abastarda o homem, constitui afronta intolerável àquele que em absoluto não prescinde de sua condição de portador, por excelência, da incontaminada alba inaugural. O poeta ver-se-ia, dessarte, condenado a dilacerar-se entre duas visões antagônicas que poder nenhum sobre a terra lograria fundir. A ser assim, estaria ele de todo impossibilitado de produzir o seu testemunho, não lhe cumprindo outra coisa senão omitir-se. Até mesmo a cunhagem do étimo ? poiein ? que tanto nobilita o seu prestigioso nome não haveria jamais transposto o limbo das virtualidades, pois seria totalmente absurda a irrogação do privilégio de plasmar, criar, a quem, por interdito de depor sobre as suas videnciações ao longo do arrebatador espetáculo, se visse privado da própria matéria-prima com que lhe incumbiria afeiçoar a sua criação. Um cantor de língua paralítica é uma contradição em termos, um grotesco contra-senso. Urge, pois, lançar-se uma ponte sobre o fosso, ou se dissipará o mais remoto sentido do fazer poético. Alberto da Costa e Silva sobrepuja o dilema mediante o apelo a seu ofício de “tecelão” do verbo: com palavras entrama um passadiço que possibilita o trânsito entre as duas margens, mas, é natural, não nos provê de salvo-conduto algum, restando-nos, apenas, efetuar a travessia como pura aventura, sujeitos a imprevisíveis riscos.
É que a poesia, como expressão, se confunde com um trasunto
vicariante da intransferível experiência de cada um de nós
e, conquanto goze da singularidade de fazer-nos evocar a vida, não
nos devolve jamais ao calor do seu seio nutriz. Enorme distância
medeia entre o ter vivido muitos anos numa cidade e o perlustrar
a sua planta urbana.
Ferimos aqui, quase sem querer, um aspecto magno da obra de Alberto da Costa e Silva, quando abordada do ângulo das suas motivações: o tema da Perda do Pai. A sombra afetiva do seu genitor ? o renomado poeta Antônio Da Costa e Silva ? projeta-se por quase todas as páginas líricas até hoje compostas pelo filho, o que nos traz à mente a impregnação hamletiana da memória paterna. Não se trata, nem de longe, de um entrecruzamento de caminhos inventivos, porquanto os dois escritores, como não poderia deixar de ser, refletem criativamente o mundo de modo bem diverso. Temos em linha de mira, com a afirmação supra, tão-só o influxo tutelar da reminiscência do Pai, fluida e extremosamente se expandindo no clima poético de Alberto, a configurar-se numa espécie de arquétipo existencial, atuante na base de sua cosmovisão. Insistimos em que esse é um aspecto digno da maior atenção no exame da problemática criadora do jovem mestre de O Tecelão, em momento algum um etertainer sofisticado. Os traços aflorados antes encontram plena e eloqüente confirmação no extraordinário “As Cousas Simples”, que abre o livro ora alvo de nosso interesse. A peça é quase toda construída em retrospecto, como emocionada retrovivência do mundo bruxoleante (mas tão cálido ainda!) da infância. O presente é apenas o fragmento de sílex onde o fuzil da reflexão reedita, célere, a centelha do passado.
Tomemos, por exemplo, a ´bicicleta` chagalliana que se desenha logo
no início de “As Cousas Simples”. Tudo faz crer que o frágil
veículo, talvez cavalgado pelo próprio filho do poeta, seja
visualizado no momento atual da gestação do poema. Tal é,
porém, o bastante, para suscitar no artista todo um cortejo de relembranças
pessoalíssimas, simétricas do episódio presenciado.
Transferimo-nos, de chofre, do agora para o ontem remoto, num deslocamento
de planos que nos faz, não raro, perder a respiração.
que o joelho feriu e estância do pranto, recebe agora os cascos leves da cabra e do burrico e o sonho breve do menino a chorar no velame dos cabelos.
trouxeste da cisterna para a areia? Conhecias a morte ou tinhas esperança que florescessem o verde, a rosa e a ametista de suas carnes frágeis? E, hoje, quando choras, que sonhas, que rebanhos semeias, e se ris, que riso de pastor em tua face treme e logo morre?
Aqueles dois pontos, depois de ´mosaico`, assinalam como que a vertente
por onde se despenca o poeta em busca da perdida quadra da inocência.
Passa-se da era industrial para a pastoril ? a vida idílica do interior.
Troca-se o brinquedo mecânico, de fabricação em série,
pela ´cabra` e o ´burrico` de ´cascos leves`, e ´peixinhos`,
´como lágrimas`, colhidos ´na lata com ferrugem`, no
fundo da ´cisterna`.
Sobrevém uma seqüência inesquecível de ressuscitados episódios, triviais eventos da vida de um infante, mas que, na perspectiva do cantor na maturidade, se aureolam de inefável deslumbramento. Em verdade, a meninice é, para a criança, um período neutro, pois aquilo que, a nós, adultos, se afigura como incontaminado êxtase e fervor é simples efeito da meia-tinta com que o afastamento memorativo esbate as coisas da nossa experiência. Se uma pessoa se conservasse sempre criança, jamais poderia delinear-se na sua mente a idéia de infância. Sem qualquer intuito de paradoxo, é lícito dizer que só fomos essencialmente meninos quando perdemos tal condição. A puerilidade é um estado de espírito.
O encanto da passagem aludida está em que o poeta expressa com tal
evanescência e distanciamento os eventos por ele recordados, que
estes se nimbam de um quê de mítico, de folclórico
quase. É o caso do raconto de um dos seus pavores noturnos, a ilusão
de ouvir o ´choro de um enterrado pagão `, ou o agônico
sonhar com o pequeno desventurado.
que tecia o pranto sob o chão e a relva! Chorava nas noites claras, ai, chorava um encantado pranto, que essas brisas levavam ao campo e ao canto das meninas. Chorava um pranto lunar, de grilos no orvalho,
Nunca se louvará em excesso a beleza daquele “...pranto lunar, de grilos no orvalho, / de frio de lima clara,...”. A última exprressão translata é de enorme poder sugestivo e intensa originalidade: ´frio de lima clara`, que achado esplêndido!
Súbito, lampeja no espírito do autor a intuição
de que entre o ´enterrado`, a tecer ´o pranto sob o chão
e a relva`, e ele, Alberto, no seu degredo inescapável de adulto,
há uma identidade subjacente, o que tonaliza de cortante humanidade
toda a seqüência em foco. Dirigindo-se a si próprio,
diz:
Ausculta o teu coração e sentirás o seu pranto, saudoso da ramaria, do sol e dos muares. E, agora, numa invocação ao ´enterrado`: Ah, menino, protege,
como um boi a mugir
O espaço em branco da página dilata-se numa pausa solene
e, ao mesmo tempo , inquietante. O verbo, na concisa forma pretérita,
abre, transbordante de confidências, a linha polimétrica que
inicia o novo andamento do poema.
e a cadeira de vime rangia, enquanto o velho passava a mão sobre o tempo em seus cabelos. É o retorno ao motivo dileto da revivescência, pela memória afetiva, lírica, do Pai, agora um ente, dir-se-ia, desprovido de temporalidade, dotado do sortilégio de repensar a vida em termos de sereníssima resignação, de infinita sabedoria.
Esse adagio , todo composto no plano da retrovisão emocionada, é
uma das páginas mais poéticas que já lemos em língua
portuguesa. Impossibilitado de transcrevê-lo na íntegra, não
resistimos à tentação de brindar o leitor com alguns
de seus momentos inolvidáveis:
como se parte na mão uma romã. *** Entre éguas, açudes e mormaços, tombaram o mundo e os deuses nos teus braços. *** E um vento lunar, tropel de pássaros, rasgou-te a face e te lançou, transido, na varanda do êxtase.
A tessitura contrapontística do presente e do passado volta a evidenciar-se,
não apenas como figuração mental, mas, também,
no nível lingüístico, com a simultaneidade, na
estrofe, de símbolos ostensivos das duas dimensões:
do corte no jardim ( a jaçanã aflita saltava atrás dos grilos no capim, na base da flor humílima ). Enquanto os pés giravam os pedais, violentos, a leve quilha do sonho empurrava a paisagem com seus sítios de sombra e as raízes da água. A superposição, ou melhor, a fusão é perfeita quando o poeta, ao demorar a vista na máquina pedalada diante dele, vê a perdida ´paisagem` ´com seus sítios de sombra e as raízes da água`, lentamente empurrada pela ´quilha do sonho`. Pouco a pouco as reminiscências acidentais vão rareando até ressair, dominante, o vulto do Pai, único interlocutor imaginário do poeta neste cruciante diálogo consigo mesmo.
São rememorados passeios que se diriam ocorrências em
sonhos, vêm à tona espantos do menino na sua gulosa descoberta
da vida. Na aura de reverente admiração em que envolve
o “velho”, Alberto não ousa, embora rente a ele, mais do que intuir
a sua estremecida presença. Afinidades profundas, todavia, os estreitam.
com tatuagens e faunas cobrindo as costas e os braços da estátua de pedra calma.
Não espanta que a perda repentina deste paraíso saturado
de afeto haja conduzido o poeta às bordas do desespero, constituindo,
decerto, até hoje o principal fator de seu desgosto pelos fantoches
adultos, a porfiarem nas trapaças do Mercado e a se esmerar nos
derrengues da Corte. Outra coisa não deverá ter ele em mente
quando alude a “... este jogo triste / em que a morte são
os ases”, bem como às “...fontes que devoram / os sonhos de
nossa carne”.
e agora, sentados, chorando a orfandade, esquecemos as pontes e a beleza dos lagos. Diante de nós ficaram apenas a areia e as traves ruínas do celeiro e as montanhas sem árvores. Somos herdeiros de uma casa decadente, cuja madeira apodrece, e as malhadas cabras vêm tosquiar o pouco do capim que ali cresce.
Feita a tentativa de preenchimento do desmedido vácuo restabeleceu-se
o equilíbrio sobre o chão caótico dos valores competitivos
do grupo. O triunfo foi total, porquanto a vontade indesviável empolgou
a alavanca da engrenagem e fê-la à destinação
poética, repôs a vida de Alberto no mesmo leito por onde fluíra
a do pai. A convivência, mais do que isso , a consubstancialidade
lírica foi, pouco a pouco, plasmando os dois seres numa pessoa única,
de tal modo que não se pode mais, a rigor, falar em um só
Alberto, ou em um só Antônio, antes um ANTONALBERTO é
a criatura nova que emerge dessa comunhão. Até mesmo os traços
de um se repetem por sob o talhe fisionômico do outro, reproduzindo,
no plano físico, a fusão perfeita operada no plano espiritual.
sem tocar na sua cabeça antiga e longa, em constante repouso, ermo e tristeza? Como aceitar tuas mãos sem pegar nos dedos magros que se cruzavam no peito ou desatavam as amarras que prendiam os pés das aves e a ressaca dos cabelos?
não tinham rugas nem pêlos. Teus olhos estão nos olhos
Ah, velho! ah, menino! nasce
Desconhecemos, na moderna poesia brasileira, uma elegias tão carregada de emoção, tão pateticamente bela quanto essa criação impecável. Não se trata, todavia, de um desabafo, de um desbordamento temperamental. A consumada técnica do artista mantém, de ponta a ponta, a torrente de fervor prisioneira de uma construção que, posto rigorosa, ostenta a flexibilidade e o eslance de um animal jovem. A tessitura das rimas internas, os finos acordes das toantes, a sutil orquestração verbal, o primoroso domínio do metro curto, bem como da linha polimétrica, todas essas qualidades virtuosísticas patenteiam-se na fatura modelar de “As Cousas Simples”. O livro inteiro, aliás, penetra-se de um apuro formal raro. O poeta enfrenta galhardamente o desafio da composição sem um único revés. Só há motivos para louvar-se a inclusão em O Tecelão dos magníficos trabalhos já enfeixados, em 1953, na coletânea O Parque e Outros Poemas, de tiragem limitada, pois, assim, é proporcionada ao leitor nova oportunidade de fruir a beleza de produções como “Elegia”, o magistral “O Aborto” e “O Pátio das Memórias”. Os amantes do soneto canônico ou do soneto livre encontrarão, igualmente, em O Tecelão, memoráveis realizações do quilate dos sonetos “Voltada sobre o pano a moça borda” e “Cerâmica e tear as mãos trabalham”, “Vera canta” e “Soneto de Natal”. [Ensaios Escolhidos,
Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1968]
|
Página inicial de Oswaldino Marques
Página inicial de Alberto da Costa e Silva Página inicial do Jornal de Poesia |