| 
			
			Társio Pinheiro 
   
            O universo psicodélico de A Linha 
			Extrema
 
              
            
 
 
            É de se supor, numa primeira leitura 
			de A Linha Extrema, de Majela Colares (Calibán, 1999), que seus 
			versos celebrem a famigerada perplexidade do homem ante o alvoroço 
			do tempo e das coisas à sua volta. Dado o forte teor dramático e a 
			extrema intensidade com que o poeta traz à tona os mais recônditos 
			sentimentos de temor e de angústia do homem diante do mundo e de si 
			mesmo, quer-nos parecer que Majela Colares lança mão do preceito da 
			catarse, conceituado por Aristóteles, para engendrar a complexa 
			tessitura desse poema, cíclico como a vida e essencialmente 
			dantesco, quer pela escolha da terza rima, quer pela imagística, a 
			qual dir-se-ia provinda de um sonho aflitivo ou de um “louco sono”, 
			como prenuncia o próprio autor já na primeira estância: 
 Quando as horas fugiam amarelas
 nas retinas de um tempo de papel
 busquei tardes em cores feito aquelas
 
 que Van Gogh prendeu em seu pincel,
 para o tempo pintar e ser constante
 sonhava ver o tempo em um painel
 
 mas foi sonho somente, foi mutante
 o momento que vi em louco sono. [o grifo é nosso]
 Entre cores e traços – raro instante –
 pintei de primavera aquele outono
 
 
            Mesmo o leitor incauto de pronto 
			percebe que estará empreendendo uma viagem se não psicodélica, pelo 
			menos povoada do essencial para tanto. Permeia todo o poema uma 
			profusão de imagens, de alucinações e de visões cintilantes, 
			policromáticas e ao mesmo tempo fragmentárias, passando-nos a 
			ligeira impressão de que nos encontramos numa sala de espelhos ou 
			num imenso caleidoscópio. O texto de A Linha Extrema possui uma 
			opulência tal de metáforas de excepcional apelo visual, de 
			reverberações crômicas e sonoras, que a nossa memória onírica como 
			que recua atônita, entorpecida, quiçá ofuscada. 
            E não é só um sonho, ou um “louco 
			sono”. A Linha Extrema é o resultado de muitas idas e voltas a esse 
			território encantado e admiravelmente fantástico, onde rebentam os 
			prodígios que só os poetas têm o direito de colher e trazer para o 
			mundo dos mortais. Esse mesmo território admirável estrema com o 
			mundo real. É como se tivéssemos lado a lado duas dimensões de um 
			mesmo tempo-espaço, de uma mesma realidade, sendo que uma é aquela 
			que salta aos olhos dos passantes, enquanto que a outra pertence ao 
			incorpóreo, se bem que intimamente ligada à primeira dimensão. 
			Majela Colares transpõe a “linha estrema” seguindo o fio condutor da 
			“linha extrema”. E com ele saímos da realidade táctil e penetramos 
			numa realidade sutil, admitindo que essa segunda realidade possa ser 
			uma manifestação transcendental da realidade mesma em que nos 
			situamos. Tal sortilégio podemos encontrar neste trecho: 
 Feito passos em sombras esculpidos
 simulados no mármore ou na areia (...)
 
 
            E ainda neste outro: 
 as chuvas têm feitiços de luares
 que caminhos inundam, quase eternos
 sedimentam poeiras seculares
 
 nestes sóis mastigados por invernos
 
 
            É interessante ainda observar que o 
			poeta não só invade esse universo paralelo, onde tudo gravita em 
			torno das sutilezas, como também assume o trabalho de escriba dessa 
			supra-realidade que subjaz a toda a fluidez do cotidiano. Podemos 
			verificar alguns momentos dessa clarividência nos trechos a seguir:
			
 Reescrito nas fendas de um suspiro
 o universo filtrado nas narinas
 momento conspirado em breve giro
 
 (...)
 por um sonho solar que não se ofusca
 no horizonte sem cor, manhã amena
 entre vultos remotos se bifurca
 
 um sorriso de olhar e tez morena
 
 
            Ou ainda nestes versos, em que o poeta 
			parece entrever a constante presença de um ser invisível (e 
			indizível) por trás de tudo, igualmente oculto nas coisas da noite:
			
 Murmúrio que sorri atrás da porta
 desmantelo de noites e sigilos
 povoado na brisa que transporta
 
 os zumbidos de estrelas e de grilos
 que mergulham as noites em segredos
 desvendados no sopro dos cochilos
 
 sob a mira dos risos e dos dedos
 contornando destinos presumidos
 em caminhos de fugas e de medos [o grifo é nosso]
 feito passos em sombras esculpidos
 
 
            E nas coisas que se habitam o mundo 
			tênue da luz: 
 tatuada no sol – porto que é cílio –
 onde a rota dos raios fez declínio
 e ancorou sua luz, mirante idílio
 rente aos olhos secretos do fascínio.
 
 
            Dispensável dizer que o poema encerra 
			a condição humana, a fragilidade do homem, sua impotência diante da 
			existência, suas “circulares fadigas peregrinas/ onde o tempo, 
			princípio, pára e busca/sempre a noite de lábios e mãos finas.” 
			Desnecessário também lembrar que uma “linha” atravessa todo o poema: 
			essa linha ontogênica (“as origens fatais de toda 
			origem/convergentes nos poros, nos conflitos”) e ao mesmo tempo 
			metafísica (“rente aos olhos secretos do fascínio”; “Unidade 
			impulsiva e multiforme (...)/ que num ponto de luz repousa e dorme/ 
			no futuro, ancorado, de algum cais.”) e, por que não?, mística (“as 
			mãos postas continham o infinito”; “e se nega a exalar o som que 
			exala/os murmúrios da alma, noite-esfinge”; “Pensa a voz, quer 
			vibrar e o homem cala/a mudez vai ferir a voz divina”). 
            Temos em A Linha Extrema um painel 
			onde assomam representações desse mundo, ora assumindo a forma de 
			visão, ora de maneira ilusória e lúdica. Acontece que, ao invés de 
			se sucederem, essas representações se amalgamam, dando origem a uma 
			tela movediça, em que cores, seres e coisas obedecem à ordem do caos 
			ou à desordem própria dos sonhos – ou dos símbolos –, própria da 
			poesia imagética de Majela Colares . Com efeito, a poesia de A Linha 
			Extrema orbita em torno da fanopéia, ou do Imagismo, de que nos fala 
			Pound. O que significa dizer que Majela Colares estaria a projetar 
			imagens em sua retina mental. É como se o poeta estivesse pintando 
			com palavras. Estaríamos, destarte, diante de um poema ou diante de 
			um quadro colareano, concebido “na mistura de traços, cores, 
			tintas”. Afinal de contas, o próprio Majela Colares se mostra 
			alumbrado, se não possuído pelas tintas e por seus matizes: 
 louco sonho, futuro, inconseqüente
 vi meus olhos tingidos – aquarelas:
 é que o tempo foi breve e reticente
 quando as horas fugiam amarelas.
 
 
            A Linha Extrema está entre esses 
			livros que, de quando em vez, vêm a lume para o alumbramento do 
			leitor, pelo que têm de bizarro e inusitado. E se insere no rol 
			daqueles poemas que deixam o silêncio da gaveta para preencher um 
			silêncio infinitamente maior: o silêncio dos homens que vêem sua 
			própria face refletida e revelada no fundo das palavras, em meio às 
			sombras e luzes dessa cidadela revestida de espelhos, que chamamos 
			poesia, e que se pode encontrar nas páginas deste livro, que “nos 
			revela otra cara” – diria Borges. 
 
 Társio Pinheiro – poeta
 
 
 
			Visite a página de Majela Colares
 |