Fabio Lucas
OS DESLIMITES DE MAJELA COLARES
Perante o conjunto
de poemas reunidos em A Linha Extrema de Majela Colares, fina
tessitura de um vívido discurso lírico, o leitor haverá de ser
convidado a refletir sobre duas concepções do fazer poético. Há os
que rezam pela cartilha da espontaneidade da expressão e aqueles que
sustentam ser a obra de arte o produto final da construção da
mente. No primeiro caso, o texto poético é suposto como veículo de
uma paixão ou de sentimentos exorbitantes que buscam um processo de
cura por intermédio das palavras. Nessa hipótese, a expressão-meio
ora recolhe abundância ou extroversão do espírito, ora exprime
denúncia compensatória de mutilações interiores. A ação verbal se
diz impulsionada por estados de perturbação, pois o poeta entra em
delírio, toma-se emocionalmente superexcitado. Os que contestam esse
ponto de vista advertem que o que toma a obra de arte significativa
é algo muito diferente da auto-expressão. A arte como inspiração e
arrebatamento deve ser submetida à finalidade de transmitir emoções,
sendo, portanto, um capítulo das técnicas de comunicação.
No segundo caso,
tem-se a noção de que o homem se impõe à natureza, ao agregar ao
mundo já existente uma construção nova, genuína, autêntica e
original. Teríamos o homo additus naturae, ou seja, tudo aquilo que
o homem acrescenta à natureza. O poeta, então, seria o fundador de
uma linguagem. O foco, assim, se deslocaria do sujeito - o poeta
possuído pela inspiração - para o objeto - o poema concretizado.
Com efeito, A
Linha Extrema traz consigo o efeito de um esforço de criação
meticulosamente realizado. A tradição nordestina habituou o leitor
brasileiro a ter presente os cantadores que se apóiam no improviso,
os repentistas, de legendária estirpe. Ou os cordelistas, operadores
da tradição narrativa em versos. Mas Graciliano Ramos e João Cabral
de Melo Neto sejam lembrados para nos remeter a outra vertente
nordestina, a daqueles que fazem do texto o fruto de rigorosa
operação artesanal. Portanto, alinhados na corrente dos que postulam
ser a obra o resultado extremo da arquitetura verbal.
Majela Colares nos
oferece em A Linha Extrema um conjunto de trinta poemas estróficos,
a observar a terça rima de Dante. Ou, para adotarmos um modelo mais
nosso, todos se articulam como A última jornada de Machado de Assis
(Americanas), a que não falta o verso final, isolado, em rima com o
segundo verso do último terceto. Além disso, Majela Colares, com
essa obra tão densa, ingressa no mesmo corpo de poetas brasileiros
que procuraram reunir poemas sob a mesma orientação cósmica ou
temática, como Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, Cecília Meireles
em Romanceiro da Inconfidência e Cassiano Ricardo em Jeremias sem
chorar.
Em A Linha Extrema
tudo é medido, rimado, estruturado. Trata-se de uma coroa de poemas
à procura de uma unidade. Um périplo verbal cadenciado, cuja virtude
maior consiste em ritmar os intervalos, a fim de enriquecer a magia
das pausas.
Majela Colares
sai-se bem desta prova. E persegue aquele suspirado desejo de
Marianne Moore que, em entrevista, reclama não ser a poesia uma
questão de melodias, mas de elevada consciência (cf. Poesia como
criação, coordenação de Howard Nemerov, Rio, GRD, 1968, trad. de
Marcos Santarrita, p. 24).
Que elevada
consciência encontraremos em A Linha Extrema? É claro que o poema,
na sua completa extensão, apresenta ao leitor conveniente modulação
verbal, metrificado ritmo e o sugestivo apoio sonoro das rimas. Mas
vai além. Seguindo uma tradição das melhores composições poéticas,
desdobra-se em sutil indagação metafísica sobre a natureza do ser e
uma implícita investigação da razão do poema, na linha da
metalinguagem.
A declaração
inicial do poema já prepara o leitor para o sentido da busca. As
figuras se sucedem para povoar o discurso e não raras vezes acode à
metáfora, a rainha de todas. Mas vejamos o objetivo atirado a esmo:
para o tempo pintar e ser constante. Logo a seguir, o "eu poético"
confessa que sonhava ver o tempo em um painel/ mas foi sonho
somente, foi mutante, para, afinal, a circunstância do tempo ocorrer
como fecho da primeira unidade: pintei de primavera aquele outono.
Não muito longe,
adiante, se vislumbram dois termos de aguda projeção: a ratio e a
morte, situações- limite que o poema explora com luz indireta: - A
razão de não ver além do além - / por si só a visão se faz medida /
dos presságios da morte que detém / os limites da voz quando
calada.
A crise
existencial vem a seguir, quando se tocam em caminhos de fuga e de
medos / feito passos em sombras esculpidos. Após uma cadeia de
mitos, o poeta fala em algo mais que a voz destes, passo projetado
no rito que se confunde nos versos que fez Dante.
Entra-se, então,
na articulação discursiva, que o poeta denomina a abstrata pureza –
forma e tema - e também a noção do impossível rascunhado, para
firmar-se no verso último, isolado: moldura de um poema desregrado.
Como é da natureza
da coroa de poemas, o verso alimenta o significado do poema
seguinte, que sugere que - a palavra se faz imagem pura e informa
que transformou-se em visível escritura.
Quando atinamos
com o valor das pausas, omitimos outra situação-limite para o rumor
das palavras: o silêncio, tão bem explorado por Majela Colares. Eis
o término de determinada unidade: o silêncio moído é dor, espasmo/
corte brusco na artéria mais sangrenta.
O poema, conforme
vimos, além de refletir o peso da Antologia, na sua perplexidade em
razão da existência, da possibilidade e da duração, articula-se em
torno do poder construtor da palavra, ou simplesmente do drama em
que esta mergulha para buscar significado, beleza e ilusão. Daí o
princípio de um dos poemas encadeados:
Mera frase
perdida em um volume
rabiscada no
tempo transitório
são idéias
dispersas - um cardume
de palavra em
busca do ilusório.
O término do poema
traz consigo a dupla significação do texto se auto-processando na
dificuldade, nos empecilhos, e reconhecendo a meta da linha extrema
a que o poeta não pode se recusar, ainda que existente:
a mão leve e
vazia, mão sensata,
se recusa a
escrever qualquer poema
– a mão sabe a
razão da linha exata
mas não sabe a
razão da linha extrema
rascunhada nos
verso cometidos
esculpida nas
bordas do fonema
densa linha de
ocasos convergidos
Por fim, a
instância última e seus derradeiros versos: a imperceptível vitória
das contingências, ante a ambição de o poeta ultrapassar seus
limites, realizar cores à Van Gogh e a plena figuração em primavera
do poema outoniço. O projeto é tragado pela temporalidade
existencial:
é que o tempo
foi breve e reticente
quando as horas
fugiam amarelas...
Por essa leitura
de A Linha Extrema o leitor poderá investigar outros corredores da
expressão do poeta, que nos apresenta um trabalho amadurecido,
cravejado por vigilante jogo verbal: fino, denso, insólito e
admirável.
Fábio Lucas é critico
literário, ensaísta e conferencista mineiro, autor de vários livros
de crítica literária e de ensaios.
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