SOLANO TRINDADE:
Cantor da alma
coletiva
Wilson Rocha
A memória da literatura brasileira do
século atual, falando de autores que são
reverenciados e também dos que são
pouco lembrados ou esquecidos, cujos
livros e escritos foram esmaecidos pela
memória coletiva – aqueles escritores,
cujo nome e obra raramente são
resgatados, mas que, em sua época,
tiveram destaque ou, de outra forma, não
foram devidamente valorizados, mas
deixaram marcante atuação –, faz-nos
lembrar a figura inteira de Solano
Trindade, um dos nossos admiráveis e
autênticos poetas negros, tão raros no
Brasil. Isso reafirma a observação de que
em nosso país o tempo condena à
irrelevância personalidades literárias até
mesmo da maior importância, como é o
caso de grandes poetas, como Ribeiro
Couto, Raul de Leoni e Vicente de
Carvalho.
Não é demais afirmar-se que Solano
Trindade foi na verdade um dos nossos bons
poetas negros, embora conhecido apenas em
reduzidos círculos, no Rio, São Paulo e
Recife, onde mereceu o apreço e a estima
de escritores como Sérgio Milliet, José
Geraldo Vieira, Graciliano Ramos e outros.
Roger Bastide, que não conheceu Solano
Trindade, realizou um estimulante e profundo
estudo da poesia afro-brasileira e concluiu
que no Brasil a poesia negra foi escrita por
poetas brancos (Jorge de Lima e Raul
Bopp). Conhecida de um público
especializado de leitores, antologias e
músicos populares, a poesia de Solano
Trindade mantém o vigor da negritude que
combina com musicalidade. Seus versos
refletem intensamente a alma ingênua e o
ser lúdico, o intimismo, o humor e a
sentimentalidade afro-brasileira, tão forte e
tão constante em nossa cultura.
Solano Trindade nasceu em Recife,
Pernambuco, a 24 de julho de 1908, filho de
Manuel Abílio Trindade, sapateiro e cômico
de profissão, segundo Oliveira e Silva, in
Coletânea de Poetas Pernambucanos. Foi
operário, comerciário e colaborou na
imprensa. Transferiu-se primeiro para o Rio
de Janeiro, nos anos 40, e depois para São
Paulo, onde passou a maior parte de sua vida
no convívio de artistas e intelectuais. Sempre
escreveu poesia e cultivou grande interesse
pelo folclore, a dança e o teatro. Dedicou-se
também ao cinema e fundou o Teatro
Popular Brasileiro, que deu ênfase ao gênero
musical com ricas e coloridas coreografias.
Como diretor do Teatro Popular Brasileiro
percorreu alguns países da Europa e obteve
sucesso principalmente na Polônia, Hungria
e Rússia. Publicou Poemas de Uma Vida
Simples, Rio de Janeiro, 1944, e Cantares do
Meu Povo, São Paulo, 1963. Solano
Trindade morreu no Rio de Janeiro, a 19 de
fevereiro de 1974. Uma vida de realização e
uma personalidade dotada de forte intuição
poética, que, como poucos, compreendeu e
amou o seu país sempre em busca da
expressão sugestiva e colorida de sua poesia
vigorosa.
A fala poética de Solano Trindade, que não
se afasta do realismo ingênuo e da
simplicidade de sentimentos, da pobreza e
solidão da vida cotidiana do povo, é sempre
dominada pela intuição e fascinada pelo
delírio da alma coletiva que canta com
apuros e beleza o amor e suas penas. Cantor
humilde do humor, feliz e sorridente, tão
perto – mais do que se pensa – do melhor e
mais antigo do nosso passado poético, como
a tradição popular das cantigas de D. Diniz
(1261-1325), rei e poeta, semeador de
florestas e fundador da universidade em
Portugal.
Solano Trindade percorreu uma trajetória
singular no meio cultural brasileiro como o
modo reflexivo de suas abordagens. Sua
poesia enreda-se, quase sempre de maneira
tácita, a um liame essencial: o anseio de
liberdade tão próprio de sua etnia e tão
latente em sua ancestralidade nesse universo
de conformismo do nosso panorama social
onde o poeta assume sem indiferença a sua
circunstância em relação ao mundo. A
escolha temática e os signos simbólicos na
raiz de sua poesia estão voltados para a dura
vida das minorias negras marginalizadas e
para a evocação das tradições populares dos
negros do Brasil.
Solano Trindade, o poeta e o homem,
incorporam a espontaneidade criadora da
poesia e a dignidade do indivíduo humano.
Wilson Rocha é poeta, ensaísta e crítico
de arte; autor de vários lívros de poesia,
tem no prelo Artes Plásticas em Questão -
1943-1993.
[in A Tarde, 27.02.1999]
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