Francisco Miguel de Moura
Zé da Copa
Ele não perdia
um jogo da Copa. Sem entender «bulhufas» das regras, ficava aéreo no
meio dos comentários. Além disto, não decorava o nome dos jogadores
nem suas posições de campo. Por isto e por outras tolices, era
constante motivo de mangação dos companheiros de bar. Nunca tinha
jogado bola nem quando era menino. Mas gostava de gritar gol e
torcia durante todas as Copas do Mundo. Pelo Brasil. José Rodrigues
da Silva, marceneiro. Quando assinava o nome, o Rodrigues parecia
Ruiz, como se abreviase, por preguiça, por ignorância. Ficou
conhecido por Ruiz para alguns, aqueles a quem passava recibos. Mas,
para os companheiros do Bar do Luiz, era Zé da Copa.
De quatro em
quatro anos, assim que chegava a fase eliminatória, a oficina era
fechada, não atendia mais pedido de seu «ninga».
- Tá doido, siô?
Acha que eu vou perder o jogo? - respondia.
- Mas só começa
à tarde, seu Zé.
- Não, senão vou
me cansar.
Durante todo
aquele tempo, a mulher, coitada, que se virasse lavando roupa para
os ricos, a fim de arranjar a comida para os filhos. Zé da Copa ia
cedinho pro Bar do Luiz e só voltava à noite, bêbedo, mas caminhando
com seus próprios pés, com aparência de normalidade, raciocínio,
razão. Por isto a companheira não ia buscá-lo. Também, talvez, por
medo de que ele estranhasse. Mas todas as noites voltava.
A sorte é que o
Luiz ficava na mesma rua de sua casinha, um casebre coberto de
palhas e tapado de barro. Rua sem calçamento, os porcos a
chafurdarem a lama, enquanto os pintos cagavam e as galinhas iam
espalhando o lixo. De vez em quando o vento levantava a poeira,
folhas secas iam de roldão e uns jumentos vinham fazer a festa dos
meninos.
Sempre há um dia
em que acontecem coisas diferentes, fora da rotina. Era véspera do
início oficial da Copa do Mundo, o Brasil escalado para jogar com um
país lá da Europa, que ele nem sabia pronunciar.
A conversa
começou com o dono do bar, seu amigo Luiz. Anedotas de português, de
mulher, de bêbedo. Foi logo chegando seu compadre Oclides, outro e
mais outro compadre. A assistência estava boa. Cerca de dez
fregueses.
- Compadre, você
sabe aquela do português que guardou em casa dez garrafas de
cachaças para o jogo da copa e...
- Roubaram?
perguntou Oclides.
- Não, a mulher
ameaçou jogar tudo fora, derramar - respondeu Zé da Copa.
- E daí?
- Ele pegou a
primeira garrafa, bebeu um copo e jogou o resto na pia.
- E a segunda?
- Da segunda,
bebeu outro copo e jogou o resto na pia, por pirraça.
- Pegou a
terceira...
- E bebeu o
resto e jogou o copo na pia.
- Já sei, pegou
a quarta...
- E, já fora de
si, bebeu toda e caiu.
- Não, pegou a
quarta garrafa, bebeu na pia e jogou o resto no copo.
- Pegou a
quinta...
- Pegou o quinto
copo, jogou a rolha na pia e bebeu a garrafa.
- Quá, quá, quá,
quá, quá, quá! Só faltava beber a pia! - riram os dois muito alto.
- Esta história
não tem fim não, compadre Zé?
- Tem, quando
acabar a cachaça.
Luizão, que
tinha perdido o fio da história, gritou:
- Não vai
acabar, não, gente. Eu me abasteci durante quatro anos para que não
faltasse nada nesta Copa. Afinal, vocês são brasileiros ou não são?
Àquela altura, o
rádio já anunciava para instantes o começo do jogo. Era um treino.
- Brasil, il, il,
il! Viva o Brasil! Gol!...
O resultado foi
que todos beberam além da conta. Caíram e dormiram. Ninguém assistiu
a jogo nenhum. Quando amanheceu o dia - mas era o dia do outro dia -
o sol já alto, foi que começaram a acordar. O bar ficou limpo. Saque
dos sem-terra, que estavam acampados por perto. O Luizão só
reclamava pelas garrafas - todas secas.
- Infelizes,
vagabundos! Era só levar a farinha e o feijão, a rapadura e o sal
que estavam no esconderijo.
Tirou o tabuado
e viu o canto mais limpo. Morto de fome. O estômago doendo.
- Vocês não se
levantam, não, gente. Vão embora, seus malandros! Quem ganhou?
Os outros se
perguntavam e a ele também:
- «Quem ganhou?»
Luiz se fez de
besta, de desentendido. E foi cuidando de sua vida.
Levantou-se
primeiro Zé da Copa, com um copo amarrado na cintura e outro
pendurado no pescoço. Como ainda estava meio bêbedo, sem sentir bem
o corpo, saiu bambeando. Não se preocupou com a armadilha. Nem viu
nem podia ver os dois outros copos amarrados na posição de chifres,
em sua própria cabeça. Foi pra casa.
- Quem ganhou o
jogo, Zé da Copa? - Maria pergunta, pra disfarçar o espanto.
- Que Copa,
mulher?
- Ah, Minha
Nossa Senhora, me ajude! Pra que esses copos, homem? Você está
pensando que eu sou sem-vergonha que nem você?
Nem diante
daquele espétaculo, Maria conseguiu rir. Seu jeito era aquele. De
tanta raiva, só conseguia xingá-lo de tudo quanto é nome feio. Foi
buscar as dez garrafas de cachaça que ele havia guardado para a Copa
e, por despique, derramou todas no chão:
- Toma, Zé!
Dagora em diante, ou eu a cachaça. Escolha.
Zé da Copa
escolheu a cachaça. Ele nunca mais torceu em Copa nenhuma. Nem
trabalhou de marceneiro. Nem teve mulher. Mas, em compensação,
atendia agora por Zé do Copo. E ficou doido. Doido manso. Para
sempre.
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