Francisco Miguel de Moura
Apresentação de
"Bandeirantes", de
Assis Brasil, na Academia de Letras
Primeiro pensei
em falar apenas sobre o livro “Bandeirantes – Os Comandos da
Morte”, Editora Imago, Rio, 1999, Volume I da série “500 Anos da
Descoberta do Brasil”. São 224 pgs. da epopéia do bandeirismo. De
Borba Gato a Garcia Pais, Raposo Tavares, Fernão Dias e muitos
outros personagens da História, sem contar os inventados.
- Não! - disse
comigo mesmo, pois não se deve dizer muito sobre o livro no dia do
lançamento, é indiscrição. Sugerir sua leitura, sim, é melhor
homenagem ao escritor.
Depois pensei em
falar sobre o Autor, Francisco de Assis Almeida Brasil, ou somente
ASSIS BRASIL. Mas lembrei-me logo: São 106 livros publicados,
contando com “Bandeirantes”, marca até então somente
superada, ao que sei, por Coelho Neto. A singularidade de sua
construção romanesca foi outra alternativa que me ocorreu. Mas não
calha bem para o momento. Uma análise merece paciência e tempo mais
do que me é dado.
Situemos, pois,
a contribuição de ASSIS BRASIL como escritor. Depois que Jorge Amado
parou de produzir, quem seriam os melhores romancistas deste país?
Citam-se Rubem Fonseca, Ana Miranda e Assis Brasil. Para meu gosto,
o primeiro é um grande contista mas deixa muito a desejar como
romancista. Ana Miranda escreveu três romances bons, mas anda longe
de possuir a versatilidade de Assis Brasil, que é, sem dúvida, o
maior escritor vivo e em exercício, levando-se em conta quantidade e
qualidade, sem esconder que Assis Brasil é também o maior crítico
literário que possui o Brasil.
Resta dizer o
óbvio. Que saiu muito jovem de Parnaíba, onde nasceu, que enfrentou
o mundo no peito e na raça, e venceu, continuando os estudos em
Fortaleza, onde começa a trabalhar. E que depois vai para o Rio,
onde continua a luta maior, faz-se escritor, participa dos melhores
grupos de sua geração, é vanguarda, e torna-se grande. Grande sem
vaidade, sem orgulho tolo. Como homem realizado no ofício de
escritor, vem-lhe o desejo natural de participar da Academia de
Letras de seu Estado e vai eleito, assume, participa, aqui lança
seus livros, aqui convive. Embora não tenha exatamente um espírito
acadêmico.
Em se falando de
Academia, permitam-me uma indiscrição. Na última carta que me fez,
Assis Brasil informa: “Ontem fui à posse da Stella Leonardos na
Academia Carioca de Letras. Ela é esforçada, quer sair da marginália,
mas comete o erro de tentar se afirmar pela periferia... A coisa é
complicada. Passou 15 anos levando bolinhos e chás para os
acadêmicos da ABL: Aurélio, Montelo, et caterva, e aplaudiam-na. Era
uma festa. Quando se sentiu segura para candidatar-se a uma vaga –
merecia – não entrou. Agora, o inexpressivo Murilo Melo Filho,
bava-ovo do Bloch... Bem, a Stella teve um voto... Nem a prima
Rachel votou nela.”
Depois da morte
de Carlos Castelo Branco, nosso Estado ficou sem a representação que
possuía na Academia Brasileira de Letras. Assis Brasil bem merece
participar da ABL. O falecimento de Dias Gomes abriu uma vaga. Creio
que ele teria mais que o voto que teve minha amiga, a escritora
Stella Leonardos. Assis Brasil merece muito mais, já venho dizendo e
escrevendo há muito tempo. E por que não o Prêmio Nobel de
Literatura para o Brasil e para Assis Brasil? Por que nasceu no
Piauí, não merece? Merece, sim. Outros escritores brasileiros também
merecem. Mas no momento seria oportuno e justo que alguma entidade
cultural o lançasse.
Para nós, é uma
alegria tê-lo como amigo, a Academia Piauiense de Letras se orgulha
de tê-lo em seu quadro. O Piauí deve orgulhar-se disto. Os
brasileiros devem orgulhar-se da sua inteligência, capacidade e
operosidade, do trabalho que faz para que a literatura cresça e
prospere. Porque um povo sem literatura é um povo incompleto. Um
povo com uma literatura fraca é um povo fraco. Uma língua sem
literatura é uma língua fadada a morrer.
Numa época de
dificuldades econômico-financeiras como a que atravessamos, é um
milagre tanto estímulo para escrever, para publicar, e existir quem
dispense tanta atenção como Assis Brasil dispensa à literatura e aos
demais colegas, embora reconheça que muitos “coleguinhas” têm ciúme
do seu sucesso e porque publica muito. Ora, ora, vão-se às capembas!
Não posso
mencionar todos os livros que escreveu. Quanto a “Bandeirantes”,
aviso que a introdução de ensaios didáticos, necessários, é bem
elaborada. Tendo paciência, aprende-se. É neste ponto que lembramos
de “Os Sertões”, com seus capítulos iniciais de geografia, geologia
e ciências sociais, antes de entrar propriamente na epopéia de
Canudos. E o livro Euclides da Cunha é padrão em nossa literatura.
Também não custa referir-me a uma obra internacional, “A
Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, que possui longa
introdução teórico-filosófica. É a tendência universal, pós-moderna,
do romance. Os romances históricos de Assis Brasil são assim, muito
especialmente “Bandeirantes”.
Com base em
historiadores de peso, uns mais criativos e outros mais anotativos,
a Assis Brasil não lhe faltam boa matéria e imaginação. O imaginário
para o romance histórico americano começa quando se sabe que não se
sabe nada da origem dos povos primitivos da América, especialmente
os do Brasil. Mas Assis Brasil investiga minuciosamente e coloca
muitas perguntas de pé: se somos descendentes de asiáticos, dos
atlantis, dos víquingues, dos fenícios, dos árabes ou autóctones. No
final do capítulo introdutório, o Autor chega a uma conclusão. É
quando escreve que “Ninguém, na realidade, sabe de onde viemos ou
de onde se originaram os tupinambás (...) ...mas é simpático e
curioso sabermos – talvez pelos desvãos mitológicos da História –
que tupis e guaranis, em algum momento teriam exercido o papel de
guarda-costeira dos vikings, do rio da Prata ao Amazonas e delta do
Parnaíba. Na cidadezinha de Pedra do Sal, no Piauí, existiria um
túnel viking, construído para a defesa da colônia e acesso a regiões
mais seguras. Cremos que um dia será encontrado. No entanto, é
estimulante para o romancista, cuja matéria prima é a imaginação,
compartilhar da opinião de alguns pesquisadores que têm ligado a
Àsia às Américas e seguido as pegadas dos enigmáticos migrantes,
primeiro até a região central dos Estados Unidos, e depois até Monte
Alegre, no Pará. Poderiam ter sido duas ‘pinças’ que, afinal, se
encontraram. Mas, para os arqueólogos detalhistas, há diferença
cultural entre os dois grupos a partir mesmo da ponta das flechas...
Admitindo ainda os estudiosos do passado americano e brasileiro que
poderiam existir outros povos nesse cadinho de especulação
científica e histórica, resta saber quem eram os ‘intermediários’
entre os amazonenses e os norte-americanos.”
Por curiosidade,
vão mais estas passagens, diante do que a gente se espanta com a
crueldade daqueles homens, colonizadores e bandeirantes: a) - Que
Domingos Jorge Velho “recebeu francos elogios do arcebispo da Bahia
por ter trazido, numa de suas entradas, 260 pares de orelhas de
índios”; b) - que “os homens santos (jesuítas), em 1549, assistiram
à cruel demonstração de força do comandante português (Governador
Geral, Tomé de Sousa), ao estraçalhar, na boca dos canhões, o corpo
de alguns índios velhos... e rebeldes”; c) – que “os membros da
Companhia de Jesus, como José de Anchieta, diziam coisas tais como
estas: Para este gênero de gentes (os índios) não há melhor pregação
do que espada e vara de ferro” .
“Bandeirantes”, de Assis Brasil, é um livro caleidoscópico no
sentido próprio e no figurado, pois que apresenta seus personagens
no presente, em ação. Claro que se trata de uma paráfrase, mas justo
onde desponta a criatividade que falta à História, presa a
documentos muitas vezes fictícios, forjados, apócrifos –
especialmente a nossa. É justamente isto que se admira em Assis
Brasil: não repetir-se na estruturação, enquanto escreve tanto,
usando da técnica estilística da repetição. Forma, fórmula e fôrma.
Assis é adepto da forma, abjura as fórmulas porque é criador, e da
fôrma, nem falar, visto que quem a usa é o artesão. Primeiramente,
como referi, vêm os ensaios. O romance começa mesmo lá pela pag. 71,
com personagens da História que se transformam em personagens de
romance, de drama, de tragédia. São eles João Ramalho, Borba Gato,
Garcia Pais, Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Maria Betim, Maria
Leite, Bartyra, Tanyyá, Tibiriçá, Brás Cubas e outros, em episódios
diversos, sendo principais a fundação de São Paulo de Piratininga e
Ipiroig. Mas aí já é a estória da História, a qual nenhum bom
apresentador conta, quando muito aponta, para que os leitores fiquem
de água na boca.
Assis Brasil é
um bandeirante das letras, no melhor sentido, enquanto caçador de
pedras preciosas, com aquele ímpeto e a coragem indomável de quem
sabe que busca o caminho da verdade, da beleza e das virtudes mais
humanas.
Finalizando,
refiro-me a um pequeno e comovedor episódio de “Bandeirantes”,
do capítulo “Estranho Leilão”. O capitão Matias Cardoso e Fernão
Dias Pais se encontram, descem de seus cavalos, abraçam-se e
conversam sobre os entreveros com os índios mapaxós. Fernão Dias
preocupa-se com os filhos José Dias e Garcia Pais e por um instante
fica pensativo, coça a longa barba branca e diz que o primeiro “é
veterano no combate e no matar” mas Garcia Pais, embora animado,
é inexperiente. Terá coragem de matar no fragor da batalha, mas, a
sangue frio, que acontecerá? E se, chegado o momento, ele fracassar?
Matias Cardoso,
entretanto, lhe assegura que Garcia Pais matará, “se é que já não
matou”. E acrescenta que o menino traz essa vocação no sangue.
Mas,
inconformado, Fernão Dias contrapõe: - “Sei que não é hora nem
tempo para tal assunto, primo Matias. Nunca conversaria sobre isso
com Borba Gato ou com José Dias. Eles já estão macerados pelo que
viveram e presenciaram de violência e de matança. O meu jovem Garcia
Pais, sei, tem algo que os outros não têm... ou que já tiveram. É o
lado bom da mãe dele. Não, não gostaria de vê-lo perder a face de
misericórdia e de perdão. Tampouco posso dizer isso para Garcia
Pais. Tenho me feito durão, frio, calculista perante ele. É que já
fui como meu filho...”
Para os que
acham que a arte não tem nada a ver com a moral, o episódio do
romance de Assis Brasil sirva de lição. Até àqueles homens
turbulentos, cruéis, assassinos, o remorso chega pela pena do
romancista: é uma luz na escuridão dos espíritos.
Esta foi a minha
leitura, vocês farão outras, certamente. A literatura é o reino da
liberdade. E o romance é o melhor gênero para exercê-la. Leiam o
romance de Assis Brasil, é a melhor homenagem que podemos prestar a
um autor.
Leia Assis Brasil
|