Francisco Miguel de Moura
Papo-Amarelo, drástica solução
Estou certo de
que é impossível compreender-se a obra de um autor, especialmente se
brasileiro, do Nordeste e do Piauí, sem um pouco de sua biografia,
do seu contexto, dos costumes desta terra que foi tão importante
para o Brasil colonial e hoje é considerada a pobre enjeitadinha,
com direito apenas de ser pelada de todos os seus recursos sem
nenhum retorno, por cuja razão – e seus governantes não vêem isto –
passou a ser grosseiramente alvo da piada nacional.
Como vou
escrever sobre um escritor piauiense considerado regionalista, é
preciso que a premissa seja levada em conta. Falo de William Palha
Dias, e uma de suas características é ter começado a escrever e a
publicar tardiamente. Outra: não obstante, é uma autor dos mais
prolíficos. São treze obras entre romances, crônicas e ensaios de
história. Seu primeiro trabalho literário publicado em livro foi
"Caracol na História do Piauí", 1959. A referência vem a pelo
porque, agora, aos 82 anos, lança o livro "Papo Amarelo",
espécie de continuidade à saga de Caracol, sua terra, sua gente,
seus familiares e avoengos, parentes e aderentes que contam na
conquista da terra e na manutenção da ordem e do poder sobre ela. É
assim que todos os seus romances, mais ou menos históricos, vão no
mesmo rumo, fundem realidade e ficção, criam um estilo onde o
discursivo mistura-se ao poético, o vocabulário e os dizeres
regionais à linguagem do homem da cidade, especialmente do homem do
direito e da justiça que tem sido o homem Palha Dias. Verdade que
vira ficção e vice-versa, seus livros mais importantes são o
primeiro já mencionado, mais "Vila de Jurema" e "Memorial
de um Lutador Obstinado", aos quais este "Papo Amarelo"
em boa hora veio juntar-se.
O estilo de
Palha Dias, neste livro, dá gosto, e situa-se dentro daquela
dimensão colocada acima – o regionalismo tardio de nossa literatura
– e para tanto destacamos um trecho comprobatório:
"Foi assim
que, em certa madrugada, quando um grupo de jagunços do Coronel
Aureliano, tendo à frente o cabecilha Jerônimo Afro, cedido pelo
Coronel Franklin Albuquerque, seguia para a fazenda Sossego, receoso
de piquete inimigo em posição avançada, destacou, por ser mais
experiente, o companheiro João Miliê para, como sentinela avançada,
fazer pesquisa nas imediações de uma barroca ao longo do trecho por
onde forçosamente teriam de margear. E qual não foi o imprevisto...
quando Miliê aproximou-se do local por onde ia atravessar, recebeu
uma saraivada de tiros partidos não se soube de onde e que, por
felicidade, não o atingiram em cheio. Mesmo assim, teve arrancado da
cabeça o chapéu de abas largas e ornado com medalhas de reluzente
ouropel. O impacto causou-lhe tanto susto que, na afobação, não
pensou duas vezes – apragatou-se no chão por trás da raiz gibosa de
uma gameleira que demorava por ali. Nesta posição, teve mais vontade
de soverter-se que mesmo de revidar o inesperado desafio.
Reanimando-se instantes depois, não contou desgraceira... Como se
sentisse protegido pela corcova da raiz, sem pestanejar, sacolejou
com disposição a alavanca do papo-amarelo. Depois de se benzer com a
cruz do rosário de semente de capim que lhe caía do pescoço, mandou
brasa..." (p. 47-48).
O fato de Palha
Dias não filiar-se aos romancistas de personagem – o romance
psico-social, que fez a festa do modernismo brasileiro dos últimos
tempos – justamente por ser histórico e dentro da perspectiva
histórica narrar uma saga, nem por isto deixa de dar unidade ao seu
trabalho. Se muito não me engano, caracteristicamente o que lhe dá
coesão são as lutas (barulhos) de Corrente e Parnaguá, com
ramificações para as comunidades próximas e também mais distantes da
mesma região do Sul do Piauí, quais sejam São Raimundo Nonato e
Caracol, formando um grande painel do final do século XIX e começo
do século XX, a época em que a exploração da maniçoba se transformou
em nosso suporte econômico principal e levantou ambições de pessoas
de meio-mundo, com diversos princípios morais ou com nenhum,
arrebanhando-os para lá, onde se tornavam seringueiros, jagunços,
cangaceiros, messiânicos, ciganos, e especialmente "cabras" a
serviço das partes em contendo como foi no caso das lutas de
Parnaguá e Corrente. De um lado, Cândido Lustosa de Araújo e o
restante da família Lustosa Nogueira, de Parnaguá; do outro, o
Coronel José Honório Graça e seu irmão Diolindo, apaniguados do
Coronel Franklin Lins de Albuquerque, de Pilão Arcado, Bahia.
Nessas relações
do coronelismo imperante naqueles idos nota-se que sempre uma parte
tem razão e a outra nenhuma; e aquilo que diz respeito aos que são
terra e têm tradição é louvado, mas o que vem da parte dos
forasteiros é sempre maldito. Um retrato, diríamos, fiel da época,
se fosse possível ser fiel numa escrita de ficção, mesmo numa ficção
histórica. Porque registram-se os fatos, mas não há como
registrarem-se as emoções. Não obstante, Palha Dias se esforça
bastante e algumas vezes até consegue, nas descrições de lutas e
entreveros, o que é normal nesse tipo de narrativa. Ou nos capítulos
finais, narrando os desastres do missianismo que também ali
proliferou.
Na técnica,
louve-se a iniciativa de colocar como narradores da saga os
contadores de história Sinfrônio Quelé, Agenor Bonson, Zequintino,
Capitão Manoel Luiz e o fedelho Emiliano, os quais se revezam na
pabulagem dos feitos de guerras e contendas daquelas bandas.
Sinfrônio Quelé é o mestre, começa e termina contando tudo o que
sabe sobre os barulhos. E todo o romance começa "naquela
tarde de junho" quando "A casa do Coronel Aureliano Augusto Dias
– último patriarca dos Dias Soares, chantados na Vila de Caracol,
depois da conquista dos índios Pimenteiras, da região Sudeste
piauiense – estava repleta de parentes e amigos que ali se
encontravam para as boas-vindas ao conterrâneo Sinfrônio Clemente,
que há muitos anos havia desaparecido do convívio de sua gente. A
curiosidade dos visitantes não se limitava apenas ao desejo de rever
o chegante, mas sobretudo a bisbilhotarem as razões de tamanho
sumiço por tão crescido espaço de tempo. Não se conformando com o
exagerado desejo de tudo perquirir, ainda cavaqueavam sobre as novas
de outras paragens por onde andara durante a sua ausência."
Prosa da mais
limpa, grande narrativa de ponta a ponta, pelo que se pode dizer que
Palha Dias conseguiu construir seu estilo. Há quem goste e quem
desgoste, mas isto não é importante. Maravilhoso para um escritor é
ter sua feição própria, sua marca, e ele a tem – construída ao longo
de uma vida, cheia de lutas, derrotas e vitórias, tudo pela verdade,
pelo direito e pela felicidade. Muito também pelo amor de sua terra
e sua gente.
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