Antônio Massa
1.
- Psi, a Penúltima:
A
estepe e a noite se deitaram juntas
paralelas
as asas sobre as asas.
Jorge
de Lima, in Invenção de Orfeu
Nada define melhor a sensação de se abrir um Feitosa: a poesia invade! Nosso multinordestino — Ceará / Pernambuco / Bahia — erigiu novo patamar literário, e a Arte o abençoou. Uniu o mítico e o místico das auroras antigas e o poderio dos recursos gráficos que os modernos computadores proporcionam. Nordeste e Grécia, água e sol, Oriente e Ocidente recheados com as cadências da Ampulheta da Criação.
Entrelaçando a cantiga seca de pó a pó da caatinga, do sertão de xiquexiques e mandacarus, com os arredores transbordos do rio Amazonas, suas peles indígenas e seus cantos multicolores, Soares Feitosa, que só se descobriu poeta aos cinqüenta anos, inovou e renovou a poética brasileira.
Com uma sensibilidade que vi em poucos e me deixa cada vez mais perplexo, o Aprendiz Feitosa nos faz navegar em poemas preciosos, retirados de fatos corriqueiros, quase sempre desprezados pelos mais desavisados. Partilhar um Feitosa é aventura para os ousados e os puros de espírito.
Feitosa (sempre o irrequieto menino) também trouxe inspiração para a sua nova linguagem de psi, a penúltima letra do alfabeto grego. Nunca o ômega, o último, o derradeiro, pois a arte é uma renovação, inconstante e permeável, onde a seca do Nordeste e o Amazonas se misturam em dança épica dentro do balde do menino macho e sacolejam até os últimos fios de cabelo das raposas enlouquecidas pela fome.
O penúltimo é o eterno, no coração deste PSI, a penúltima, livro nascido artesanalmente, escrito, impresso e cosido pelas próprias mãos do poeta. Um livro vivo, que cresceu a cada nova edição e carrega em suas folhas a indiscutível prova da genialidade do escritor.
A pergunta é: onde Soares Feitosa escondeu, em cinqüenta anos de vida, a poética que hoje divide quarto e sala com ele e cada vez mais o domina? Certamente estava se guardando, juntando forças e esperando o toque de partida do compadre tempo, que conhece bem a hora da colheita.
A magia está aí, reunida neste livro, que traz o cheiro do mato e o sabor de água da moringa. Não se assuste com os ruídos que possam aparecer à medida que acompanhe esta viagem que ultrapassa a dimensão cartesiana e nos leva à perene cantilena do surpreendente.
A Noite e a Estepe certamente se deitaram juntas e, sob a proteção de suas asas, aí deixaram a lírica galopante de Soares Feitosa. Ficaram os novos alqueires, talvez em algum lugar lá pelas terrinhas do Siarah, prontos para o plantio do eterno poemar...
Nota:
Este texto é a orelha principal de Psi, a penúltima. À época, 1997, o poeta Antônio Massa tinha 19 anos. Reside dos Estados Unidos da América.
2.
- Salomão:
E nas pedras rudes de meu berço gravei poemas
Silêncio. O supra-sumo coração, inquieto por natureza negra — porque negros somos —, cala. O silêncio não é mórbido ou dormente. É reconciliador. Une alma e raízes à quase aurora de meu canto. Chego de uma trilha-estrada nova. Uma estrada poema intitulada Salomão. Poderiam titular Inferno. É como fica a alma depois de uma leitura concentrada: em chamas. De paz? Talvez.
Refletindo um pensamento aristotélico, o infinito não existe na nossa realidade porque ao homem não foi concedido tempo suficiente para contar a eternidade. Este é o grande desafio que o autor do Salomão conseguiu. Dar ao homem a eternidade. Desmembrar as linhas áureas destes tempos e de outros tantos para que o leitor pudesse navegarmos nos braços máquina tão sonhada por H. G. Wells. Epigrafando o próprio poema: ele rompe as rochas do tempo, rasga as cortinas do mundo.
Quando comecei a escrever, um crítico me perguntou qual era meu estilo literário. Minha resposta foi um inibido não sei. Ele contra-argumentou me dizendo que tudo deveria possuir um estilo, uma escola. Pessoa muito respeitada no âmbito social, não respondi. Calei. Hoje compreendo que a realidade passa milhas longe desta ótica. Poderia alguém definir o poema Salomão, se é que também podemos defini-lo como poema, incutido em um simples rótulo ou casca? Se apelássemos para as forças estéticas o que me diriam do poema os grandes críticos do poema? Barroco, concretista, palavrista (este termo inventado pelo poeta, para definir os poemas de versos curtos e ás vezes monossilábicos), moderno? As respostas me surgem com a mesma força do sentimento que me abre este texto. Silêncio.
Encontrei no poema elementos taoísticos, órficos e os últimos versos do sexto movimento me fizeram relembrar uma passagem na mitologia egípcia onde Anúbis pesa o coração de Ani, o julgado, contra a pena de Maat. A deusa da verdade. O que valem grandes poemas é o poderio que eles possuem de despertar as coisas que guardamos no nosso espírito. Tão bem guardadas que algumas vezes esquecemos que nos foram entregues, seja pela mão da procura, da leitura ou da experiência da vida. O rebuliçar das emoções, o tilintar das camadas subterrâneas da alma, este poço de conhecimentos encobertos. Aí está a grande importância do poeta: Desvelar o homem de sua própria cegueira. Quem revela, desvela: processo de fotografia. Cito Germano Machado.
O momento atual é de revolução. Com a chegada de um novo século o ser humano se encontra espremido nas paredes do tempo. Muitos ainda desistirão de transpor as barreiras deste milênio. Outros enlouquecerão. O homem é tão resistente às mudanças que prefere se manter distante. O poema nos evoca mudança. Nos traz à memória o sonho libertador de um negro, Luther King e o do ícone branco, John Lennon. Um rumo igualitário para uma sociedade que tem o mesmo princípio e um mesmo fim. Se é que existe um fim. Mas esta não é a grande questão. A questão é viver um tempo-agora onde os seres se reafirmem irmãos. Crucifiquem as almas próprias, para descobrir no madeiro de seu profundo eu a ligação universal dos homens. Brancos, pretos ou alvaçãos. Porque isto não tem cor.
O poema também é história. Uma enciclopédia, diria Ésquilo. A história que permeia o poema me deixa atribulado. Uma nova vertente na poética do escritor que ficara escondida, quase inibida, no centro de sua alma. A poesia social. O poeta clama os negreiros, morros de arribanceira que, com meus olhos (estes que ainda não desistiram de me acompanhar), vi desabarem línguas e bocas e rostos, engolidos pelas garras da terra. Retorno às raízes. E na manhã cavoucamos…
Cavoucamos coisa alguma, porque tudo nos passa desapercebido. A notícia do horário nobre nos relata, e no outro dia já deixamos as cenas de lado para escutar uma outra tragédia. E tanto faz quantas sejam. A memória cuida de afastá-las deixando o ciclo se repetir. E aqui o poeta eterniza a fábula. Porque esta também é a missão do poema. Assim como o Menino, que retratou as angústias de seu tempo e no seu sesquicentenário, foi comemorado com a lágrima do esquecimento.
Sobre o poeta em si nada digo. Não há mais a dizer. Ele foi obscurecido pela grandeza de sua criação. Nas pedras do berço da vida ficou eternizado como coadjuvante na confecção de sua estrela.
Assim como o outro Poeta. Ao Salomão, só a grandeza do Século Cem. E este virá, eu acredito na profecia.
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