Francisco Miguel de Moura (*)
As profecias de «Laços de Poder»
Tem-se como
certo que uma das funções da arte é adivinhar, antever certos
acontecimentos ou o futuro de uma comunidade ou de um povo. Daí a
idéia, nalguns a certeza, de que as artes, especialmente a poesia e
por extensão a literatura, são divinas, colhem os mistérios do céu,
e o poeta é um profeta.
Embora tenha que ferir a modéstia, dou o meu próprio exemplo. Em
1985, quando escrevi Laços de Poder, posteriormente laureado pela
Fundação Cultural do Piauí com o prêmio «Fontes Ibiapina» para
romance, sob a forma de ficção previ algumas tendências e fatos que
só na década de 90 iriam desencadear-se. Infelizmente pouca gente lê
romances, nesta terra. Mas quem o lesse agora, comprovaria minha
assertiva.
Para efeito didático, enumeramos algumas dessas antecipações de
Laços de Poder:
1. A quebra dos bancos, especialmente os estatais, que começou com
os do Estado da Paraíba e do Piauí. Quem não lembra?
2. A quebra do estado brasileiro como instituição ineficiente,
empregadora de afilhados políticos e corruptora da vida nacional
através de seus inúmeros mecanismos burocráticos
3. O nascimento e crescimento das seitas protestantes e do
espiritismo, no Brasil, e, conseqüentemente, a perda de monopólio da
igreja católica e a perseguição por Roma àqueles elementos do clero
que tinham uma visão mais livre como a chamada «teologia da
libertação.»
4. Finalmente, a onda de seccionamentos de órgãos genitais
masculinos pelas mulheres, a partir do caso de castração (também
política) de Bartô, a mando de Miriam, sua namorada.
Também na forma,
Laços de Poder se antecipa. Não se conhecia até
então, no Brasil e talvez no mundo, nenhuma obra que começasse e
terminasse pela mesma frase, formando a figura literária que João
Felício dos Santos, grande romancista recentemente falecido, chamou
de epanadiplose. A forma de apresentação dos diálogos, já sem os
tracinhos denunciadores, já sem a definição de quem fala, ficando a
cargo do leitor colocá-los na boca de quem achar melhor - não se
trata do diálogo interior verdadeiro nem do falso diálogo interior -
penso que é uma conquista, uma criação formal minha. Não gostaria de
falar tudo, pois o autor não deve ser o crítico de si mesmo,
especialmente quando se trata de apresentar o que é positivo. Mas,
como não existe mais crítica como antigamente...
Com respeito ao ponto de vista, outra mola fundamental do gênero
romance, meu Laços de Poder começa na primeira pessoa e assim permance por toda sua longa primeira parte. Por isto houve quem
pensasse tratar-se de um romance de cunho memoriaístico. Não é. Na
segunda parte, está escrito na terceira pessoa, é ponto de vista de
Miriam. E, na terceira e final, as falas são dos dois personagens
principais, na primeira do plural: Cirilo e Miriam, no seu drama, na
sua tragédia.
Digam que sou pretensioso, que isto já aconteceu aqui e ali, etc.
etc. Estarei atento a ouvi-los e pedirei comprovação.
Teria muito mais a referir. Por exemplo, o sonho ou pesadelo de
Cirilo na primeira parte é pura antecipação, pois, na vida real do
romance, vai acontecer quase tudo, especialmente a essência do
sonho.
Espera-se criação, originalidade e maior emoção quando a obra vem de
Flaubert, Proust, Dostoiévski, Joyce. No Brasil são poucos, vale a
pena citar Machado de Assis, Graciliano Ramos e talvez Guimarães
Rosa. Não pretendo comparar-me a nenhum dos gênios mundiais, mas,
sem falsa modéstia, quero explicitar minhas contribuições à
construção do romance moderno.
A precedência do que acima apontamos é de
Laços de Poder. Ele
estaria anunciando a transformação do homem e da sociedade como um
todo, no final deste século, 1989. A glória é maior pelo fato de
saber-se que o Piauí é um território ainda praticamente isolado do
resto do Brasil e por isto poucos tomaram conhecimento.
Alegra-me que o famoso crítico Fausto Cunha me tenha escrito uma
carta que é uma consagração, sem esquecer a anterior e mais
importante - a apreciação de João Felício dos Santos, de 1988,
aparecida na orelha da edição de Laços de Poder, 1991. Parte da
carta de Fausto Cunha já dei conhecimento ao público, na contracapa
de Ternura, meu terceiro romance, saído em 1993. Mas tenho que
transcrevê-la aqui. Suprirá, certamente, a penúria de crítica que
nós, romancistas deste fim de século, sofremos. Ei-la:
«Rio, 23.8.1991. Caro escritor Francisco Miguel de Moura. Somente
nestes meados de agosto pude encetar a leitura de seu romance Laços
de Poder, recebido em princípios de maio. Ler por ler, ou ler por
alto, a gente faz com qualquer livro, mas um romance, e mais um
romance apresentado pelo meu saudoso amigo João Felício dos Santos,
requer um mínimo de tranqüilidade contínua.
É de fato uma esplêndida apresentação e deve ter sido uma das
últimas páginas escritas por ele, com quem fui (cada vez mais surdo,
o bom Felício) a uma editora para ver as provas de um livro até hoje
não lançado. Na verdade, João Felício dos Santos ainda não teve o
reconhecimento que merecia como romancista: Ênio Silveira, o editor
da Civilização Brasileira, considera-o um dos nossos maiores
escritores. Era bom poeta e um ator nato (Xica da Silva).
Laços de Poder foge do linear, da narrativa direta, desenvolvendo-se
mais como um painel em que personagens, cenas e episódios se dispõem
numa estrutura que João Felício dos Santos chama de estilo 'materialista-naturo-realista'.
Todo o clima é criado pelas neuroses, pelas doenças, pela violência
e pelas relações de poder, poder político e poder pecuniário.
Nietzsche num dos seus livros denunciava a conspiração dos doentes
contra os sãos, verberando acima de tudo a arma infalível de que
eles se servem: a comiseração. Exatamente o que V. diz à p. 152. E
passando pelas sessões espíritas, pelas romarias, toda essa
estratégia de dominação de um outro poder, o religioso.
Agradecendo-lhe a remessa de seu excelente romance, mando-lhe meu
abraço muito amigo». Fausto Cunha.
Porque as capas de livros são a parte mais frágil e as primeiras
páginas que se rasgam, finando-se no vão do tempo, mas acima de tudo
porque posso dizer que foi minha glorificação, nada mais
gratificante para mim que do que mostrar também as orelhas de Laços
de Poder, escritas com a cabeça e o coração de um dos nossos mais
sérios romancistas, hoje tão injustamente esquecido como referiu o
missivista acima mencionado - que foi justamente João Felício dos
Santos, tão amigo de Fontes Ibiapina, de Magalhães da Costa e, por
último, meu, um dos meus amigos escritos (pois foi um pena não o ter
conhecido pessoalmente).
Ei-las em transcrição:
«Há, na ficção diferente de Francisco Miguel de Moura -
Laços de
Poder, romance premiado pela Fundação Cultural do Piauí - uma forma
plástica, quase pictórica, concedida pelo autor a seus personagens,
sem dúvida a parte mais cuidada e importante do livro, fato
inteiramente dentro do conceito do moderno Erich Auerbach em seu
crivo de uma crítica filigranada e multissignificante, aplicado
indiferentemente, tanto à vida real como de ficção.
De início, justo pelo trato de sua gente-personagem, coisa que
Francisco Miguel de Moura faz como poucos autores consagrados pelo
público, podemos classificar autor e obra, no caso este estranho
Laços de Poder, como quase um ensaio de funda psicologia. Ambos
evidentemente aristotélicos - de vez que o filósofo e crítico grego,
para expressar a 'impressão' de uma figura usava a palavra 'typos'
como o cerne de qualquer enredo - dizia: 'o movimento impresso em
uma coisa percebida é, sobretudo, a personagem (typos) fictício ou
real, não importa origens".
Singular este romance que, na complexidade do estilo do autor,
certamente um escritor profissional, emaranha propositadamente
personagens que pouco falam em seus diálogos, ainda mais raros no
decorrer da ação, não obstante ser esta ação riquíssima em cenas as
mais variáveis, provindas da vivência do seu criador.
De notar como as personagens transitam dentro da trama, ou das
tramas, sempre focalizados com maestria. Tais manobras, todas muito
bem cuidadas, focalizam, em nuances de comportamento puro, complexos
e medos aprofundados com muito propósito justamente aquela vivência.
O tímido Cirilo; o sofrido Bartô, com suas terríveis castrações e a
multi-Miriam, para só nos ocuparmos do triângulo principal, ainda
que totalmente independentes em seus dolorosos movimentos -
'impressão' de Aristóteles - bem poderiam ser facetas de uma mesma
pessoa real - como o autor - tal a sincronização dos 'typos', em
impressões complementares.
Claro que Francisco Miguel de Moura, passando um pouco (necessário)
por cima de sua história, ainda que sem se descuidar do
entrosamento, coisa que, via de regra, apavora o seu tanto os
amadores das letras e principiantes, só cuida em analisar
sentimentos mais singulares, como o amor e a revolta, dando-nos um
belo estudo íntimo das figuras humanas. Com isso, o autor consegue,
sem prejuízo da trama em si, fazer um importante livro, repleto da
melhor psicologia.
Outra coisa a notar, dentro do estilo naturalista da obra, é a
intriga social, quando o autor se estende, sobretudo nas
entrelinhas, na asfixia das profissões rotineiras e seus opostos,
num gemido fundo contra as injustiças e desigualdades cuja culpa
direta não cabe a ninguém, senão geradas em forma direta por uma
sociedade egoísta, onde os laços de poder (dinheiro, prestígio e
força) se entrechocam, quer num banco, num hospital, numa pequena
cidade, quer na alfa e ômega que é o perdido Timon.
Roubando o papel principal da obra, falando em linguagem teatral,
temos uma Miriam espalhada por mil prismas, cuja criação levaria o
autor a uma obra prima, caso pretendesse ele imprimir outro rumo a
seu romance.
Sem esconder o simbolismo paradoxalmente encerrado em seu estilo
materialista-naturo-realista, destaque-se, por fim, a epanadiplose
'nunca se sabe o princípio de nada' com que Francisco Miguel de
Moura abre e encerra sua bela história. Ao terminar a leitura de
Laços de Poder, vontade é acrescentar em homenagem ao livro: 'Nunca
se sabe mesmo, Francisco, ninguém saberá nunca onde começam as
coisas; nem o meio, nem onde terminam. Suas personagens teriam
sabido?' Rio, 3 de dezembro de 1988. João Felício dos Santos.
Para ressaltar mais ainda a carência da crítica formal em nossos
tempos, termino com outra opinião de pessoa que não conheço
pessoalmente. Trata-se do professor universitário e poeta R.
Leontino Filho, cearense aclimatado em Pau dos Ferros, Rio Grande do
Norte. Ele me diz a certa altura de sua carta datada de 20 de
outubro de 1997 - cujo documento vale como um belo e sábio artigo de
crítica:
"Laços de Poder encanta-nos pela sutileza e perfeição da trama
romanesca. Os personagens atravessam toda a narrativa envoltos num
clima de grande cumplicidade com a vida e por extensão com o leitor.
Somos cativos de Cirilo, Bartô e Miriam - triângulo que envolve as
mais disparatadas visões de vida: o trágico, o lírico e o dramático
se justapõem nas peripécias e angústias desta trindade da paixão. O
amor é comovente, prazeroso, mas extremamente sofrido nas linhas
traçadas por estes três viventes. O mundo que eles habitam - e que
nós também habitamos - é de uma crueldade exasperante, todavia,
mesmo nesse abismo de dores e sofrimentos, há réstias de esperanças,
olhares fixos na capacidade de reconstruir as nossas mais cotidianas
emoções. Laços de Poder tenta, por vias diversas, suprir ou melhor
recarregar as baterias do afeto e da amizade, pois se 'Há quanta
gente com carência de afeto neste mundo! Os carentes se completam no
calor do corpo e nos sonhos.' (p.85). Na realidade, somos todos
carentes, precisamos fortalecer nossos laços de afeto, o poder que
vislumbramos é o poder da amizade, todos os outros tipos de poder
escravizam. E a sua obra, tão artísticamente nos mostra as nossas
limitações, do mesmo modo que nos possibilita outros vôos, mais
altos e mais sincronizados com o próximo. Sem dúvida alguma, um belo
e necessário livro. O que seria da beleza sem a sua necessária
presteza em ser útil?... Que escritor fantástico você é, que país
medíocre somos, desconhecer autores de raro talento e excepcional
escritura, tais como você, o Foed Castro Chamma, o Francisco
Carvalho, o Nilto Maciel, o Sérgio Campos... e tantos outros. Como a
mídia é burra e pobre, vive de lantejoulas, confetes e de
porcarias/em sua enorme maioria, esta minha afirmação vale para a
música e a literatura, especialmente. Enfim, são felizes aqueles que
conseguem fugir dos esquemas midiáticos e empobrecedores, pois deles
é o reino da beleza e do humano, demasiadamente humano, como diz o
filósofo."
Se é certo que a crítica formal não bafejou minha obra, e as razões
para tanto não encontro ou são as mais descabidas possíveis, não
posso deixar de ser infinitamente grato por tudo que me disseram os
dois missivistas acima mencionados, além de outras como os
escritores William Palha Dias, colega da Academia Piauiense de
Letras, e José Afrânio Moreira Duarte, da Academia Mineira de
Letras, cujas apreciações não transcrevo para não sobrecarregar por
demais este espaço e, portanto, a paciência dos leitores. E como
deixar de referir os artigos de Roberto Carvalho e José Ribamar
Garcia, aquele publicado numa revista de pequena circulação, em
Teresina, e este, num jornalzinho de associação de trabalhadores, no
Rio de Janeiro?
Penso que a mostra é suficiente para que o futuro historiador
literário possa bem situar-se diante de Laços de Poder, primeiro
lugar no concurso "Fontes Ibiapina" para romance, em 1986, que teve
a importante apreciação do acadêmico da APL e grande crítico
literário Prof. Manoel Paulo Nunes, entre outros intelectuais de
gabarito que integraram aquela comissão. Mas, não contente, o "Prejeto
Petrônio Portela", editora do Governo do Estado, em 1991, submeteu
Laços de Poder novamente a outra comissão julgadora, esta última
composta pelos seguintes intelectuais: poeta Rubervam do Nascimento,
historiador Pe. Cláudio Melo e crítico literário e professor de
literatura Luiz Romero Lima. Eles deram o parecer favorável à
publicação, embora a dita publicação já estivesse nas normas do
concurso de 1986.
Quanto ao grande romancista João Felício dos Santos, autor de
João
Abade, Ganga-Zumba, Xica da Silva, Cristo de Lama e tantas outras
obras primas do romance brasileiro, falecido em 13 de junho de 1989,
no Rio de Janeiro, só posso desejar que lá no céu, enquanto desfruta
da presença e alegria de Deus, peça por nós outros, pobres
escritores mortais, para que alcancemos um pouca de sua doçura, de
seu lírismo, de sua tão simples e humana sabedoria e graça.
Francisco Miguel de Moura é poeta, crítico literário, romancista,
contista e cronista, tendo recebido prêmios em todos os gêneros que
pratica. Já publicou 18 livros, tendo estreado com "Areias", na
poesia, e na prosa, com "Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de
Carvalho". Seus últimos lançamentos foram "Poesia in Completa",
1997, e "Por que Petrônio não Ganhou o Céu", 1999, contos. É membro
da Academia Piauiense de Letras e do Conselho Estadual de Cultura.
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