Francisco Miguel de Moura
As tristezas de Panchico
O velho vem
vindo, entropica no batente que separa a sala da cozinha, cai,
levanta com dificuldade, gemendo. Puxa o tamborete de todos os dias,
encosta à parede e se senta. O quintal é um destroço. Ali da porta
divulga a porquinha debaixo da mangueira e escuta seu grunhido. Olha
por trás dos óculos grossos, ouve mal, cheira mal, não ensaia sequer
um sorriso. Faz tempo que ninguém lhe dirige o rosto. Só pode mesmo
ficar nos pensamentos, calado. Bem que ainda não fale com as
paredes.
Não é louco.
- Cale a boca,
Panchico!
Outrora tão
ouvido pelos filhos e parentes! Era um semideus. Os jovens
reverenciavam-no. Os de sua idade ficavam bestas com as sentenças
desfiadas, com as observações que saíam de sua cabeça, às vezes numa
palavra, e o respeitavam. Sua fama correra sítios e estradas,
chegara à cidade, os mais afoitos acreditavam ter ido além.
De muito
conversar não era. Mas, uma vez começando, tudo se aproveitava. Até
o não dito. Colocando fumo no cachimbo, picadinho, vinham histórias,
casos e anedotas, pacientemente. Bom tempo permanecia sentado à
mesa, depois das refeições. Tirava baforadas como se ficasse a
sonhar. Piscando os olhos miúdos e escuros, cofiava o bigode. Tinha
gestos elevados, sinceros, cavalheirescos. Diante de um pedido,
iniciava tempestivamente com o nublado «talvez», para terminar num
agradável «pois não». Entre o não e o sim, a reflexão necessária e
urgente corria, os circunlóquios para o acerto se revesavam.
Velho! O apelido
de outrora ia-se transformando no próprio nome.
Adorado pela
mulher, uma palavra sua era decreto. Ela mandava que os filhos o
tratassem com obediência. Ordem desnecessária. Quem iria duvidar do
que estava escrito na cara de seu Panchico? Tantas e tantas vezes a
barreira da cerimônia entre pai e filhos.
Era rigoroso mas
justo, exemplar como marido e amante. Se bem que, algumas vezes,
quando de viagem, distante das vistas da mulher, soubesse dar seus
passos...
- Cale a boca,
Panchico!
Enquanto ia bem,
a vida passava sem perceber.
O primeiro filho
casa e se torna dono da própria vontade. E o segundo, o terceiro, o
quarto, todos - que eram muitos. Por último, a filha querida se
acasala com um marmanjo. É tristeza que vem e desmancha a pouca
alegria restante no rosto do Velho, nos escaninhos da casa, até no
terreiro e no quintal. As noras e o genro, um a um, vieram morar com
ele, como nos velhos tempos senhoriais. Esperara netos que talvez
minorassem sua solidão. Não chegaram.
A cada dia
Panchico se acabrunha mais.
Uma vez, pela
manhã, como o poeta antigo, ele pergunta aos céus: «Cadê minha
alma?»
O mundo não
perdoa os que envelhecem depressa. Foi como se dormisse bom e
amanhecesse desmemoriado, caxingando, sem vontade de fazer, de dizer
nada. Já não tinha como, nem o que mandar. Qual se fosse
consequência, passo a passo se torna motivo de desprezo. Uma
inutilidade. Vêm os risos, disfarçados a princípio, depois no
próprio rosto. As chacotas.
- É seu pai?
- Um velho
caduco, não repare. Quer vender as terras.
- Bem, é
porque...
- Cale a boca,
Velho!
Do mundo, recebe
aquela pena calada - ah, coitado! - de pequenos murmúrios, gestos de
desalento, olhares de viés. Dos filhos: motejos, insultos, palavrões
- contínuos. O primeiro, mais compreensivo, era médico sem
progresso. O outro, vaidoso, praticava a advocacia em causa própria.
O terceiro lecionava história. O quarto era contabilista. A filha
aprendera a arte da mãe: dona de casa. Os demais trabalhavam no
pesado da roça ou cuidando dos bichos. A maior parte da renda vinha
da terra, da administração dos seus frutos.
Há algum tempo a
mulher advertia, mas sem força de convencimento:
- Lembrem-se do
que foi. Caiu por causa da doença. Vocês deviam era levar pra São
Paulo, procurar jeito, nunca se lamentar.
Não, não iam
fazer isto. Nada de coitado. Estavam perdendo prestígio político e a
renda se reduzia. Culpa dele. Só dele, de mais ninguém.
Panchico ainda
tentava defesa, inutilmente.
- Cale a boca,
Velho!
Seu Panchico
foi-se encantoando. Perdeu o gosto de falar. Decaiu de fazer dó.
Magrinho. Mais feio do que antes. Careca. A barba crescida. O bigode
respeitável virou uns fiapinhos onde a comida se enganchava e
permanecia sem ser incomodada por dias seguidos. Os olhos fundos.
Aquela cara de apalermado. Que estaria fazendo no mundo?
«Que estaria
fazendo no mundo»? ainda se perguntou.
Não ouvia nem
mais a própria voz, fanhosa, arranhenta, enferrujada, dentro do
silêncio. O que seus ouvidos escutaram, com asco, foi o refrão que
parecia nascer do inferno:
- Cale a boca,
Velho!
Dúvidas e mais
dúvidas lhe assaltavam. Sua consciência teria sido tão clara como
apregoaram os amigos? E a memória? Por acaso, ainda estaria vivo? Ou
apenas seu espírito sobrevoava no território em que vivera? Lenda!
Tudo não passaria de uma ilusão mantida pela fortuna, que agora os
filhos tratam de derrubar, de reduzir a pó?
Pediu a si mesmo
que se consolasse com os poderes divinos. Mas não encontrou coragem
nem por onde pudesse começar. Essas coisas não aprendera. Era tarde.
- Se voltasse
atrás...
- Cale a boca,
Velho!
Seu Panchico
treme, treme o corpo todo, em tempo de cair do assento.
Fuma às
escondidas o cachimbo que há meses lhe tomaram, achado por milagre,
na hora em que foram fazer as compras na cidade. Era como se mirasse
seu antigo quintal, num dia ameno, de chuva ou de sol agradável.
Momento de alívio. Sabia que os bacorinhos fuçavam o peito da mãe,
corriam em torno do chiqueiro velho, enlameavam-se nas poças. Mas já
não podia vê-los nem ouvir seus grunhidos. O pensamento murmura
palavras inauditas, diante do limbo do seu horizonte e do vazio
humano que lhe rodeia. Era um raio de luz que ainda piscava na
memória. O fiapo de sonho e ternura que restara em seu coração.
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