Francisco Miguel de Moura*
A guerra não acabou
O longo espaço
estreito lhe causava terror. Nunca mais quis pisar os pés num avião
depois do acidente com a Linda Bonson, nos idos de 70. Lembrança das
piores. E mais outra, enfim: o corredor da morte de que tanto ouvira
falar nos livros de ficção americana e que alguns filmes mostravam.
O cansaço da espera, duas horas no aeroporto, atraso e confusão,
tudo isto lhe pôs tonto. Ainda mais o sonho que o acordara: uma
mulher estranha lhe pedindo para ler a mão; quando aquiesceu e
entregou-a para exame de suas linhas, a sorte e o futuro,
imediatamente a cigana corta-lhe um dedo a canivete. Ilusão ou não,
os sonhos lhe deixavam atrapalhado.
Não!
Começava a
concordar com o que lhe dissera a mãe, em pequeno: que sonho seria a
vida pelo avesso. "Tudo ilusão."
No entanto, as
mãos esfriavam, os pés eram gelo. O coração, oh Deus! Jamais sofrera
de asma nem de tuberculose, os exames recentes estavam "legais",
assim o médico classificou há pouco. Por que... por que?...
Naka segurou-se
ao descer do táxi; agora ao subir o primeiro degrau, apega-se ao
corrimão, sem força. Vencida a etapa, teve que procurar um banheiro.
Sem prestar atenção aos bambeios e solavancos, olhou-se ao espelho.
Cadê forças para voltar ao normal? Deu algumas voltas em si.
– "Preste bem
atenção, cavalheiro Nana."
Eis que de
repente, como que adivinhando seus maus pensamentos, Arida lhe abre
os ouvidos, a pele e a inspiração, todos os sentidos juntos, com uma
frase linda como só ela sabe dizer-lhe:
– Esta viagem
vai ser ma-ra-vi-lho-sa, Naná! Tranquilize-se, homem.
Olhou em redor.
Os paraguaios estavam quietinhos, mas era um grupo perigoso. Ouvira
no rádio do taxista que tinham sido expulsos pelo último Governo (o
deles), cerca de 40 paraguaios envolvidos... E quando chegaram ao
embarque, o rádio anunciou: – "A Revolução do General... caiu!" –
"Como é mesmo o nome do último? Ninguém sabe?" – "Que importa? Outro
subirá..." – "Já subiu."
Dois índios
guaranis que permaneciam isolados, falavam baixinho e se cutucavam.
Naka afligia-se por não poder escutá-los direito no zunzum da
aeronave.
– Nunca pensei
que fosse assim! Melhor voltar. Com pouco a gente... e o de lá caiu
também.
– Calma, homem.
Tome seu comprimido.
Naná cada vez
mais temeroso e tenso. Nenhuma brincadeira, nenhuma piada. Todos
seus desconhecidos. Mais de cem. Sem condição de ler o jornal. De
vez em quando acudia-lhe a aflição da saída de casa, quase uma hora
antes. E ele dentro do táxi só pensando que tudo ia melhorar. Já
preparado o espírito para ver o vulcão Antígua, um espetáculo de
horror se estivesse em atividade, mas belíssimo – diziam os folhetos
da agência de propaganda turística – ilustrado com fotos de
Rigoberta Manchu, Prêmio Nobel da Paz, no meio das cinzas. Se
resolvesse ir para.... Duas da madrugada, quase. Chovia como nunca.
Se pudesse cancelar aquela aventura, mas a mulher insistira: Vamos!
E o prejuízo... Do banco de trás do táxi não se enxergava nada,
nada. Os vidros embaçados. Era de desconfiar se o motorista via as
ruas melhor que os passageiros, ou se apenas tateava o terreno, por
saber demais onde ia andando, por ser um caminho de muito uso.
Tentava desembaçar o vidro da frente, ora com uma flanela, ora com
as mãos, o relâmpago cortando de todos os lados, como se um raio
caísse sobre as cabeças desprotegidas. Viagem curta que demorou uma
eternidade. Afinal, depois de alguns sustos, derrapadas e o encoste
do pneu no meio-fio, nada de grave, chegaram e desceram naquela
aflição. Já em cima da hora do embarque, uma agonia de gente pra lá,
gente pra cá, ninguém se entendendo, cotoveladas, pés pisados,
desculpas e não-desculpas, abraços e adeuses. Mas principalmente
xingamentos. Por que, o' céus, as pessoas saem de suas casas de
madrugada, chovendo? Para não se entenderem, seria melhor ficar
deitados, sonhando. Tudo para viajar. Como se viajar fosse a coisa
mais importante do mundo! Vejam só a encruzilhada. Dois destinos. E
todos escolheram um: Guatemala ou Cuba? - "Não, Deus me livre!" -
"Por quê?" - "Quizília?" - "A capital?" - "Não, Guatemala." –
"Agüente a mala! Pegue a mala. Não esqueça a mala. Cadê minha mala?"
Mais de cem
pessoas, todos espremidos naquela droga: americanos, italianos,
alemães, franceses, japoneses, coreanos, chineses, portugas e gente
que nem parecia ser deste planeta. E havia também, e muitos,
exilados bolivianos, peruanos, colombianos, kosovares, chechenos e
brasileiros.
"Que droga!"
E se caísse?
Não! Tirar do pensamento, não quer morrer antes.
Alguns segundos,
depois que volta do banheiro, a aflição maior: um gaiato, metido a
doido, apossou-se do fone de bordo e anunciou, de revólver em punho
(depois vieram a saber que se tratava de uma arma de brinquedo), em
tom solene, que estava acontecendo um seqüestro. O piloto faria um
pouso forçado e, em seguida, a ordem era decolar para Cuba. Foi um
alvoroço de choros e gritos sufocados.
Desfeita a farsa
– óó! óóóó! óóóóóó! – todos se acalmaram, voltando a seus lugares e
jornais, a importunar as aeromoças, a tomar seu vinho ou uísque, a
dar cochilitos, cada um de acordo com os humores e as
idiossincrasias.
– "Deve haver
droga nesse avião" – sussurrou um carrancudo turista que ia ao lado
de Naka.
– "Psiu!"
– "E drogados e
traficantes e criminosos como..." – insistiu.
Todos desceram
cansados, estressados, decepcionados. Souberam – para aumentar a
tensão – que a Guatemala era um país em guerra civil, em estado de
sítio. Ninguém saía nem pra comprar remédio ou pão, ninguém chegava
de fora. Os bancos fechados. Algumas lojas não recebiam dólar.
Outras só transacionavam com quetzal Paralisia. Consultados os
relógios, o chefe do aeroporto, guatemalteco, embora mal-encarado,
sem polidez, baixo, atarracado, moreno, liberou, porque "havíamos
embarcado em Assunção, um minuto depois de ter caído o último regime".
– "Eu,
paraguaio!" – Naka falou de si para si.
– El General
caiu nos primeiros cinco minutos de hoje.
Os do planeta
Brasil não foram notados. Nem pela língua nem pelos costumes – maus
costumes, embora. Apesar de serem mais da metade dos que viajavam.
Passaportes de turista, válido por 60 dias. E era demais. Naka, um
nissei, nem sabe da progênie, talvez forte sangue de índio cariri ou
potiguar, portador de carteira de professor universitário e
especialista em pesquisas arqueológicas, mas não adiantava nada.
Quem quer saber de intelectual, por acaso? Por acaso, iria ficar
mostrando a quem passasse, "olhe aqui, sou isto, sou aquilo?"
Mesmo que designado para relatar as ruínas maias para os
universitários, seus alunos da Universidade Popular do Vale dos Três
Rios, na volta daquela viagem.
Ao desembarque,
veio a primeira pergunta. Saiu da boca de um cavalheiro moreno
café-com-leite, de óculos escuros, barba preta, bigode mal aparado e
com cabelo entrando pela boca. Falou quase a meia voz. E foi
imediatamente repetida pelos cento e um restantes passageiros, como
se houvessem ensaiado:
– A guerra
acabou?
– A guerra
acabou?
– Non, non,
la guerra continua. Mas não há problema, senhores e senhoras,
está somente lá na frente. Por enquanto os guerrilheiros fazem a
festa. Ninguém sabe até quando. É como a vida. Ninguém sabe de nada.
– Mas eu
gostaria de ver o Museu da Revolução - arriscou Naka.
– De qual delas?
De 30, 35, 40, 48, 50, 54, 58, 60, 69?...
Ficou mais
tonto, com tanto número.
– "Aqui também
teve 69? Ai!" Mas se segurou pra não soltar um palavrão. Apenas
ensaiou suas primeiras palavras em portunhol:
– Acá non se
trabaja?
– Si, si.
Mas ninguém é de ferro. Quando a gente descansa, brinca de guerrilha
urbana.
– E as crianças?
Cadê as crianças? Não tenho visto aqui nenhuma.
– Estão na
frente....
As pessoas
enterraram as cabeças na areia. O chão fugia dos pés. Não havia
areia nem crocodilos. Queriam era esquecer o erro inicial. Mas não
havia pensamentos que amparassem as sensações daquela hora, os
medos, os presságios. Como se o palavrório dos folhetos da agência
de viagem fosse pura mentira, e agora o delírio do mestiço ou quiché
que faziam as vezes de propagandistas e guias. Mas, que fazer?
Continuaram a aventura, engalfinharam-se pelo centro de Guatemala,
vendo seus arruados feios, pretos, sujos, umas habitações baixas,
outras altas, nada diferente de velhas favelas conhecidas. De vez em
quando surgia um menino sambudo com uma bola, dava uma corrida pela
rua poeirenta e esburacada, e lá vinha a voz aflita de mulher:
– Vem pra casa,
Pablito, se não queres ser pego pelos homens do Governo e levado pro
mato, pra lutar contra os sujos da guerrilha.
Naka e a família
estavam preocupados em não perder a abertura ou, no último caso, o
encerramento da Feira do Livro, tão amplamente anunciada em folhetos
e papéis xerografados e entregues de mão em mão por ciclistas
treinados diretamente para aquele mister. Diz que também houve ajuda
de uns carroceiros e pedestres, estes carregando, enfiada bem no
peito, a bandeira do país e na camisa uma frase:
"Livrai-nos
do mal do tio Sam, abaixo aquela família!"
Depois de deixar
o ponto de partida fechado no horizonte, entraram por um túnel
escuro que parecia não ter fim. Naka olhou o relógio, confirmou a
hora com Arida, e novamente lembraram-se do sonho. E caminharam,
caminharam cerca de uma hora, sem parar. Ninguém queria sair, Aiana
já chorava com dor nos pés. Todos estavam entrando, entrando,
calados, ninguém falava nada, não havia inscrição nem cartaz, nem
microfone anunciando. Num instante, entrementes, todos começaram a
sair, todos queriam sair, era uma avalanche. E havia os que entravam
e havia os que saíam. Quando ele exclamou: "meu Deus!" todos olharam
com os olhos de fogo, indagando-lhe o significado daquilo, mas
calados vinham, calados passavam. E apressados. E acotovelando.
Pisando. Como que estavam a sair de uma prisão e por isto não
tencionavam falar nada enquanto não os liberassem. Era um
formigueiro. Permaneciam as duas "mãos", agora se misturando. Ainda
bem que saíam em silêncio. Insuportável silêncio. Calor, mistério.
Algo parecido Naka só tinha visto em filme americano sobre formigas,
quando virtualmente sofria com elas. Mas agora o sentimento, a
angústia, o desespero eram reais, ali, consigo em carne e osso.
Enfim, pararam. A primeira barreira a enfrentar. Já suados,
nervosos, ouviram uma voz fina, fria, fanhosa, sem entonação, e duma
regularidade espantosa:
– Só entra quem
pagar - disse ao da frente.
– Mas já nos
inscrevemos há semanas para esta Feira. Depois pagamos ingresso na
boca do túnel (todos botaram a mão na boca para que o burocrata não
ouvisse bem esta palavra), embora a contragosto, e tudo já estaria
incluído no pacote da viagem.
Outro lá do fim
da fila grita:
– Eu não pago.
– Cadê os
bilhetes? perguntou o homem atrás do vido do guichê.
Eram tantos os
papéis, tantos os documentos, tantos os cartões, folhetos e
propagandas que só havia um jeito: ter paciência para procurá-los. E
era justo o que faltava.
Naka foi tomado
repentinamente por um acesso de raiva que lhe provocou cegueira, não
via nada, era impossível encontrar, naquela hora, qualquer coisa
mesmo que fosse grande.
Finalmente a
autoridade cansou-se de esperar pelo fim da longa busca dos turistas
por seus papéis e documentos, o monte já subira, subira, parecia ter
mais de metro, mais de dois metros, formando uma trincheira entre os
viajantes e ele. Reconhecendo a inutilidade daquela exigência, o
funcionário fez "uf! uf!" e liberou alguns, com a condição de
colocar adesivos em suas bocas, fechando-as, só sendo permitido a
abertura quando chegassem aos livros.
– Por que não
poderia ser na testa? – sugeriu Naka.
Não, não podia.
E pronto.
Que fazer?
Quando deram conta de si, já estavam com o sinal. As paredes do
labirinto possuíam muitos espelhos, bastava olhar de lado. E com a
demora, chegaram no fim da festa. Não havia mais ninguém, somente
cadeiras e mais cadeiras vazias, estandes vazias, mesas vazias,
prateleiras vazias. A sombra das criaturas: vazias. Livro para
vender – nenhum. Nenhuma revista, nenhum jornal. Gente – ninguém.
– Boa noite.
O eco respondeu,
como se a voz rasgasse o fundo túnel.
As pessoas
largaram as malas e maletas, os sacos de bagagens, as bolsas pra
todos os lados. E estacaram. De repente, tudo estava (ou estivera?)
preparado, solene, parado. Viam-se uns bonecos como se fossem robôs
suspensos por cordéis e que eram lançados sobre um auditório. Não
estavam antes. Não podia haver ilusão de ótica, consultaram-se uns
aos outros, os mais próximos, os que chegaram cedo. Verdade. Era
mistério. Ventrílocos que falavam tão bem, em diversos idiomas,
batiam palmas ao discurso de Naka, que, não obstante mudo, era
vestido de metáforas sinalizadas, reticências de olhares, posto que
visava tão-só libertar-se da obrigação do momento.
Chegara a hora
mais importante: Lançara os livros, ou melhor, não lançara - eles é
que se projetaram. Foi assim: o 1º – sobre a coluna de frente, que
abrigava uma imagem de Cristo, fazendo voá-la até a mesa do
auditório, onde outros robôs travestidos de homens, sentados,
fumavam e bebiam; o 2º – sobre um espelho que perseguia o olhar da
platéia, ficando lá pregado feito um monumento, aberto para a
leitura de quem por acaso se interessasse... Ou era uma grande tela
cinematográfica? Quem sabe, um aparelho de televisão. No meio do
luxo empoeirado, fedendo a mofo, dois livros sujos, escangalhados,
com páginas voando como borboletas... E mais: um líquido pegajoso
como chicletes misturando cacos de vidro e plástico que se
espalhavam pelo piso do auditório. Rangiam os sapatos e a paciência.
Ao final da
"festa", foram informados, num tom de voz de quem está com muito,
muito medo:
– O terceiro
General, de nome Oviedo, acaba de assumir o governo, tendo ele mesmo
executado, com vários tiros nas costas, o Presidente-General
anterior, assunto no qual é perito.
Andaram sem
rumo, mais veloz que o vento e o pensamento de um maluco e de um
gênio juntos, qual numa corrida de carros de fórmula 1, agora entre
robôs de tipos diversos que se espalhavam pelo recinto, lá fora, nos
becos, nas calçadas e praças, quando deram pela falta de duas
garrafas de uísque que conduziam, adquiridas ainda a bordo do
bóingue da viagem de vinda, aconselhados pelo vizinho de
assento: "é uma marca especial, cada dia fica melhor, uma gota
dele, misturada com sua cachaça e uma colherinha de suco de mexerica
por litro, transformar-se-á na mais gostosa das bebidas que tive o
prazer de degustar". Não ensinaria a fórmula, o segredo, a
ninguém, mas como havia gostado de um poema (inédito) que lhe
mostrou, num momento de loucura, e também do jeito da Arida e da
simpatia da Aianinha, por estas três coisitas é que lhe confiava.
Depois, viviam muito distantes. Mas, que ele, Naka, ("qual é seu
nome mesmo? vamos chamá-lo de Naná"), não escrevesse a fórmula,
por favor. Pelo amor de Deus! Você acredita?
– Acredito, sim.
Todos compraram.
E assim poderiam embriagar-se e dormir, esquecer as nuvens que
cobriam o céu, deixar que a cidade passasse, o mundo passasse, que a
entrada do século XXI fosse um mero acidente do sono, um sonho mau,
um pesadelo qualquer. Ou, como outros, padecer de olhos vidrados, de
ouvidos na escuta, de nariz no ar sem sentir cheiro, a pele cansada
de tanto esfregar-se em corpos sem vida, sem fala, sem sentido. Eram
autômatos que seguravam pacotes nas mãos: duas garrafas, dois
livros, duas gravatas (estas, no pescoço, ih, que ridículo é um
homem usar duas gravatas! dose pra dinossauro!), duas meninas (ele
andava com sua Aianinha, a outra deveria ser, se ainda não era, um
clone dela. Como é que pode? Ou será a sombra? Mas se não havia luz
antes, como existir sombra?
– "Não pode! Não
pode!" – gritava e batia o pé, feito criança.
A mulher
explodiu em choro. Aiana também, coitadinha!
Homens passavam
puxando pacotes de livros velhos, mofados, com as mãos e iam
arrastando dois outros presos aos pés. Um espetáculo desusado,
estranho, sem falar que se mantinham sisudos, como se tivessem
engolido uma lata. Agora, correndo, correndo... E entravam no túnel.
De onde teriam surgido tantos, num abrir e fechar de olhos? Quantos?
Se... Quando chegaram seus ouvidos ouviam repetidamente uma frase,
dez, vinte, trinta vezes:
– Já não há mais
ninguém, vamos fechar as portas.
– Vamos!
– Não me engane,
Naka. Aquela bebida faz muito mal aqui. Se fosse vinho... Tire-a
imediatamente dos meus olhos. Senão você vai-se arrepender - Naná
ouviu atrás de si, numa voz ameaçadora, ao tempo em que uma mulher
estranha puxava-o pelo braço, rasgava-lhe a manga esquerda da
camisa. Não contente com a cena e a violência, em seguida, solta uma
gargalhada de raiva e mau humor:
– Eu quis apenas
fazer uma brincadeira, seu idiota – acrescenta.
Naka e sua
família corriam um grande perigo.
É então que olha
em volta como que pedindo socorro, desesperado.
Naquele momento,
todos se voltaram para o local do escândalo. Naná estuporou-se.
Mirando o lugar das paredes (ou o que ficara em seu lugar, o
horizonte que o limitava) não via luz, nem piso, nem teto, nem
fones, nem avisos... Nada denunciava nada, nem a presença de ninguém
que tivesse alma. Mas tudo era claro como água de um rio limpo, no
fim das águas, ou o infinito até onde a vista alcança e pra lá,
muito pra lá da linha onde a terra encontra as nuvens e o céu.
Para onde foram
os robôs, pelo menos eles? Silêncio tumular. Lá em cima de um
aparador que se via de esguelha estavam duas garrafas de uísque como
que dialogando uma com a outra, intactas, iguais àquelas que Naná
havia comprado a bordo do bóingue. Procurou pelo corpo todo, nas
mãos, nos bolsos, nos pés, e não encontrou o que procurava há horas:
onde estavam elas. E porque foram parar ali? Se de mãos vazias
estava, de mãos amarradas ficou. Os pés desacorrentados, mas era
como se alguém lhe sustivesse por um tempo neutro. Arida e Aiana lhe
sumiram da vista. Sem direção, sem saber como sair da encrenca em
que se metera sem pensar nem querer. E na sua frente, a boca enorme
do túnel de onde haviam saído... Há quantas horas, meses, anos? Sem
luz, sem indicação em inglês, espanhol, português, latim. Sem nenhum
traço, nenhuma letra que fosse em grego ou chinês.
Como o par de
garrafas foi parar ao pé de onde estava, não sabe, não se pergunta.
E ninguém lhe diz coisa alguma, coisa com coisa, ninguém chega para
dar-lhe assistência. Ao que parece, pelo zunzunzum, Naka passou mal,
ficou amarelo, sem ar, sentou-se, cheirou algum remédio que lhe
trouxeram e bebeu algumas gotas de água (ou veneno?).
Quem se esquece
do que perdeu, se ainda não encontrou? Pode jurar que não esqueceu,
mesmo que tenha tido um passamento entre o pensar e o não pensar, o
abrir e o fechar d'olhos, a luz que se foi e agora chega... Eis que
lhe aparece uma visão estranha, com a barriga a roncar, dois olhos
na testa, mas nenhuma boca (por onde comeria, por onde beberia a
criatura?), nenhum nariz, nenhum braço, nada. Totalmente vestida de
preto. Dos olhos saíam fogo. E começou a gritar. Um fantasma do
inferno. Ensandeceu. A cabeça marcou trezentos e sessenta graus.
Suou frio. Seu desejo era sair desabalado, na carreira. Mas os pés
se plantaram no chão como uma estátua grega em seu pedestal. Não
sabe como as pernas não falharam, como não bambeou sobre si mesmo, e
bum! caiu, em tempo de rachar o crânio. Não sabe como... Mas suou,
suou, a seus pés correu um rio. Até que uma pessoa – finalmente uma
pessoa – a seu lado sussurrou-lhe:
– Você
conseguiu.
Tinham rompido a
distância quilométrica do túnel.
– Seu
desaparecimento já era anunciado. Mas você conseguiu, graças à sua
coerência, em meio a tanta adversidade. Afinal de contas, se trazia
vinho (ou outra bebida) para presentear alguém, esse alguém seria um
amigo ou uma pessoa de valor sagrado... Por que não procurá-lo?
Vendo que a mulher mentia, você não contestou para não conspurcar o
presente. Que ele fosse para outro destino era uma questão de menor
importância. O símbolo permaneceria intacto. É assim que se faz, a
ambição é um dos vícios que mais corrompe a criatura. E mata.
E completou:
– Disseste-lhe
alguma palavra?
– Não, ela foi
quem falou: "Estão secas. E se estão secas, não me pertencem.
Leve-as para você."
– Aquilo que não
podem usurpar, os invejosos não vêem com bons olhos e tentam
esvaziar – assim concluiu o interlocutor de Naná, deixando-o
consolado e perplexo.
Finalmente, Naná
vê-se agora, pela primeira vez, frente a frente com o casal que o
acompanhou na corrida por entre os mesmos becos, o mesmo túnel, a
mesma angústia, dando carinho a Aiana durante todo o trajeto – sem
ser pressentido – quando o homem rompe o silêncio e inocentemente
pergunta:
– A guerra já
acabou.?
– Não,
companheiro, creio que não. A guerra não acaba nunca, só muda de
nome - respondeu Naka, como que recuperando os sentidos.
E voltaram
juntos, calados, pelo mesmo caminho, cansados, mas graças a Deus são
e salvos, para contarem esta história cheia de linhas e entrelinhas
de verdade, como são todas as histórias.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor, membro da Academia Piauiense
de Letras e do Conselho de Cultura do Piauí
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