Francisco Miguel de Moura*
A mulher que não ri
Encontrei-a na
rua.
É bonita mas não
chega a ser nenhum misse. Nem ex-misse. Pelos olhos, pelo rosto,
pelos cabelos, acredito que não freqüenta salões de beleza.
Ia andando de
pé, pela cidade, e encontrei-a. É que ainda sinto prazer em andar e
andar, sem propósito, sem preocupação, pelas ruas da cidade onde
habito, apesar de todos os pesares. E nas minhas andanças, poucas
vezes em busca de resolver meus quefazeres e tantas outras nas
minhas caminhadas matinais e vespertinas, tenho observado hábitos e
comportamentos. As diferenças me aprazem.
Como as
criaturas são estranhas!
Há pessoas que,
mesmo em se lhe dando bom dia, ou boa tarde, conforme a hora, não se
abrem, não dizem nada em resposta, às vezes nem olham, ou viram a
cara. Raras são aquelas que, sem serem conhecidas, respondem à
saudação dos passantes ou lhes dirigem a palavra junto com um
sorriso prazenteiro.
Verdade que
existe o medo dos estranhos, da perversidade dos ladrões, dos
seqüestradores, dos assassinos, dos que só buscam fazer o mal. Mas
também é certo que pessoas outras não se parecem nada com gente
daquele naipe, no físico, nas feições. São comuns, nem precisam ter
letreiro na testa. Ainda mais se entraram já na casa dos sessenta,
com os cabelos pintados do branco permanente da velhice.
E foi por causa
da idade que me vem chegando, talvez, que observei, aquela moça
especial, desde muito tempo na minha presença quando a vejo e quando
a deixo de vê-la, a que tomo agora por minha “persona”. Não é
caminhante como eu e sim empregada de uma loja cujo nome não vai
dito aqui porque seria uma propaganda gratuita, e mais, por
resguardo da identidade daquela de quem falo ao meu leitor.
Ela, minha
personagem, nunca ri. Fala pouco, só o necessário, embora seja
expedita no atendimento dos que procuram comprar alguma mercadoria
ou pedir informações, esclarecimentos. Mas não ri, não ri nunca.
Está sempre ocupada, trabalhando. Seria por causa disto? Já a
encontrei na rua outras vezes, além da primeira de que me lembro. É
o mesmo comportar-se: o rosto não contraído, mas não ri; e tem
poucas palavras para com as pessoas que a cercam, por exemplo uma
companheira de trabalho com quem chega na loja. Daquela vez dei-lhe
o meu bom dia e não ouvi resposta, ou então era muito baixa sua voz.
Conheço-a de três anos a mais. Sabe, leitor, o que ela me falou até
agora na loja? Apenas isto:
- Já foi
atendido, senhor?
Outras colegas
suas já me atenderam e soltaram seus meio-sorrisos, ou falaram
alguma coisa mais que o referente ao simples ato comercial.
Minto. No ano
passado, quando publiquei minha crônica costumeira de dezembro, ela
me dirigiu duas palavras, em meio a seu serviço de vendedora. A
provocação partiu de mim.
- Já leu meu
conto de Natal deste ano? Eu sou escritor – apresentei-me.
- Como é seu
nome? – ela perguntou.
Eu balbuciei meu
nome, depois criei coragem e o disse completo.
- Me nome
literário!
E ainda
acrescentei onde havia saído, o nome do jornal.
- Ah, sim! Li e
gostei. É por ali mesmo.
Agradeci por ter
a simpatia de tão agradável leitora e fiquei esperando seu sorriso.
Qual nada!
Por isto fico me
perguntando como acontecem tais coisas, como as pessoas são assim,
cada uma diferente. E todas iguais no comer, no dormir, no
trabalhar, na prática da vida diária.
Por que, meu
Deus?
No ano seguinte,
nova crônica de Natal no mesmo jornal, e fico na escuta dos leitores
que se manifestam. Uns o fazem agradando, outros não. Pior os que
esquecem. Ou não leram.
Continuei a
passar por onde minha “persona” atende profissionalmente. E continuo
freguês do estabelecimento. Esperando sua reação, lógico. Mas até
hoje não me falou nada.
Esse é um dos
enigmas que tento desvendar, talvez o mais difícil. Não me parece
pessoa infeliz Nem doente. Ao contrário tem uma aparência agradável.
Também não pode ser considerada feia de feição, muito menos de
corpo. Não faz muito que a vi fora do balcão, mostrava toda a sua
estatura, suas formas dentro de uma veste comum, de trabalho. Mulher
atraente. Mas como milhares de outras por aí. Convenci-me de que não
eram suas formas que me atraíam, nem seu olhar, nem seus cabelos.
Era o enigma. Que faz de sua vida a moça que não tem o prazer do
riso? Todos os seres humanos se enfeitam com o sorriso, a mulher
então!...
Já pensava em
quebrar mais um pouco de minha timidez, na próxima passagem por ali,
coisa que não seria difícil porque minha andança em redor se tornara
mais constante. Era só perguntar-lhe o nome. Depois emendava com
outras perguntinhas atoas. O nome é coisa importante para todo o
mundo. É a partir dele que nascem outras palavras. E das palavras,
uma história, o comentário de um fato, uma confissão mesmo diminuta.
De seqüência em seqüência estaria lhe declarando amor nem que fosse
para quebrar a cara. Quebrar a cara seria conhecê-la mais, até então
o meu obsessivo propósito.
Qual não foi a
minha surpresa quando, no dia seguinte, ela não voltou. Nem no
outro, nem no outro. Uma semana inteira. E nenhuma de suas colegas
quis dar-me seu endereço.
Pode ser que eu
tenha sido o seu constrangimento e onde esteja agora sorria como
qualquer criatura.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor, mesmo do Conselho de Cultura e
da Academia Piauiense de Letras. Mora em Teresina.
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