Francisco Carvalho
Equipe do caderno cultural do jornal
O Povo entrevista o poeta
Quando o Sábado
tentou pela primeira vez um contato com o poeta Francisco Carvalho
ouviu um não. Um não ressabiado, um tanto sem jeito, mas um não. É
que arredio, modesto, o poeta preferiu não elaborar sua lista dos
grandes homens de letras do Ceará -matéria de capa desta edição.
Os dias se passaram,
porém, os votos chegaram e eis que o autor de Cristal da Memória
(1955), seu primeiro livro, e Barca dos Sentidos (1992), seu livro
básico, foi posto outra vez no meio do caminho. Desta vez como um
dos cânones vivos - ao lado da escritora Rachel de Queiroz.
Veio o segundo
convite. Ou melhor, uma negociação de parte a parte pra uma
entrevista. Argumenta daqui, explica dali,Francisco Carvalho aceitou
responder algumas perguntas, não muitas - por fax.
Às vésperas do Ano
Novo corremos e lhe enviamos um questionário que ele respondeu como
um bom poeta, no prazo combinado e, ao que parece, não tanto contra
a vontade. Falando de suas primeiras lembranças, de falta de jeito e
ressentimento de uma maneira muito sincera.
Com as respostas na
mão, outro desafio: convencer o senhor arredio de que uma boa sessão
de fotos seria imprescindível. "Fotos?- quis procurar uma rima. Mas
eu tenho tantas fotos aí no jornal".
Mesmo assim ajudou o
fotógrafo uma, duas, três vezes em seu local de trabalho, posando,
até rindo, vencendo sua própria resistência.
Quanto a entrevista,
achamos que ela é mais uma oportunidade de Francisco Carvalho, 69
anos, 22 livros, dois de prosa, vinte de poesia, grande poeta
estadual - por enquanto - justificar seu prestígio.
Sábado - Antes de qualquer coisa, o senhor
poderia falar um pouco de Russas. Existe algum vestígio da cidade e
da sua infância em sua obra?
Francisco Carvalho- Da cidade de Russas me ficaram numerosas e
profundas recordações. A cidade era triste na quadra invernosa e
poeirenta nas tardes de verão, quando o vento do Aracati soprava
mais forte. Recordo a figura do Monsenhor Vital, consolando e
aconselhando os pobres que lhe pediam remédio para os males do corpo
e da alma; o beato Zé Doidinho, o peito constelado de medalhas,
cruzes, fitas e efígies do Padre Cícero; o Ateneu São Bernardo, onde
fiz os primeiros estudos; o som cadenciado das matracas nas
sextas-feiras de páscoa; as procissões do Cristo Morto; os sinos da
matriz dobrando pelos mortos, numerosos nos tempos da malária, e que
eram transportados em redes para o cemitério. É um desfilar de
recordações que não acabam mais. Em vários poemas meus existem
vestígios desse tempo e das impressões causadas pela cidade a um
menino que, de forma ingênua e talvez equivocada, tentava descobrir
o mundo à sua volta.
Sábado - O senhor foi um menino ensimesmado
que virou um adulto tímido?
Francisco - É verdade que sempre fui arredio. Sempre olhei mais para
dentro do que para fora. Sempre fui inquilino da timidez. Fiz
esforços para mudar, mas não consegui alterar o desenho do molde
primitivo.
Sábado - O senhor preferiu não participar da
eleição do Cânone Cearense e terminou como um dos mais votados. Por
que preferiu não votar?
Francisco - Devo ao Prof. Antônio Martins Filho meu ingresso na
Academia Cearense de Letras. Durante alguns anos ele me estimulou a
participar da Academia, mas eu sempre alegava razões pessoais para
declinar desse honroso convite. Chegou um dia em que não pude
recusar pedido do Prof. Martins Filho para assumir a vaga aberta com
a morte do acadêmico Cláudio Martins. Não pedi votos a ninguém mas
fui eleito por manifestação consagradora dos membros da Academia.
Sábado - Estar entre os grandes da nossa
literatura mexe com a sua vaidade?
Francisco - Não sei dizer se se trata exatamente de um sentimento de
vaidade. Mas não posso negar que me sinto honrado em participar do
convívio das pessoas que ali se encontram.
Sábado - Como o senhor costuma ver estas
listas de melhores?
Francisco - Às vezes chego a pensar que por trás dessas "listas de
melhores" existem motivações de ordem mercadológica. Não tenho
razões, todavia, para criticar os que promovem tais iniciativas nem
os que dela participam. A vida em sociedade tem seu código de
valores. Além do mais, parece que existe certo charme em premiar
aqueles que conhecem o segredo do "mapa da mina".
Sábado - O senhor também preferiu responder a
perguntas por fax. Por que muitos escritores não gostam de falar ou
de dar entrevistas?
Francisco - É mais confortável e mais seguro responder a perguntas
previamente formuladas, principalmente quando não se tem o
raciocínio rápido ou quando a inibição entra em cena na hora de
gravar a entrevista. Certas idéias mal colocadas podem ensejar
interpretações distorcidas. É lícito pensar que as entrevistas
gravadas são mais espontâneas, mais dinâmicas, mais descontraídas.
Muitas pessoas não gostam de ser entrevistadas por diversas razões.
Respeito o posicionamento dos que pensam desse modo.
Sábado - Mas o senhor já foi entrevistado
outras vezes. Não ficou satisfeito com o resultado?
Francisco - É verdade. Algumas entrevistas que me foram solicitadas
por telefone, depois de publicadas, não corresponderam às minhas
expectativas. Acontece de se dar mais ênfase a algumas idéias menos
importantes, enquanto outras, de maior relevância, são banidas do
contexto.
Sábado - É possível atribuir à timidez o fato
do senhor não ser um poeta tão popular quanto merecia?
Francisco - A timidez me tem prejudicado consideravelmente ao longo
da vida. O homem e o poeta foram seguramente comprometidos por essas
limitações de ordem pessoal. Mas não seria correto afirmar que a
timidez contribuiu para que não me tornasse num poeta popular.
Drummond era sabidamente um grande tímido mas isso não o impediu de
se transformar num poeta que sempre desfrutou de grande
popularidade, até mesmo depois de sua morte. É preciso ressaltar que
esse ostracismo poético tem muito que ver com o problema da
discriminação geográfica.
Nordestino não tem
vez neste país de neoliberais, onde as elites são tratadas a caviar
e as classes assalariadas são espoliadas de seus direitos.
Sábado - Alguma coisa - o mercado, o nível dos
autores - melhorou desde que o senhor deu sua última entrevista?
Francisco - É indiscutível que alguma coisa melhorou. O advento da
editoração eletrônica deu maiores oportunidades aos escritores.
Hoje se editam
livros com maior rapidez e qualidade. Os custos foram bastante
reduzidos, tornando o preço do livro mais atraente.
Ainda assim, o
mercado de livros continua operando abaixo das expectativas.
Sábado - Acaba de sair um livro - da
professora de literatura da Uece, Ana Vládia - que analisa sua obra.
O que achou do trabalho e como recebeu a homenagem?
Francisco - A Profa. Ana Vládia, da UECE, dedicou um livro (sua tese
de mestrado) à minha obra poética. Esse gesto da professora, além de
construir uma homenagem das mais significativas à minha pessoa, me
comoveu profundamente. Por motivos que me parecem óbvios, não me
cabe discutir o mérito desse trabalho. Recebo, com alegria e
humildade, essa homenagem, fruto do trabalho exaustivo de uma pessoa
que se dedica ao estudo da literatura. É pena que o meu nome de
poeta municipal não possa contribuir para projetar o livro da Profa.
Ana Vládia em nível nacional.
Sábado - Vou falar de temas que estavam nas
entrevistas de quase dez anos atrás. O senhor disse que escrevia sob
motivação, mas escrevia muito mais quando inspirado. Isto não parece
muito comum num autor moderno.
Francisco - Inspiração é palavra proibida no dicionário poético da
atualidade. Melhor seria, talvez, dizer que existe um momento
propício para a poesia. O sujeito não deve colocar-se diante do
papel à espera de que o poema lhe caia do céu, pronto e acabado.
Isso é uma falácia.
Tem-se vontade de escrever um poema da mesma forma que se tem
vontade de fazer amor. Tem de existir certo clima de sedução e de
cumplicidade para que o poema comece a existir. Têm de existir
motivações, de ordem interior ou exterior, uma espécie de senha para
que o poema comece a acontecer. O poeta constrói o poema, a emoção
desenha o ritmo.
Mas pode existir o
ritmo sem emoção. Como, por exemplo, aquela aridez de cacto
nordestino que permeia a poesia do Sr. João Cabral, que detecta
música porque a música o deixa sonolento, e as pessoas sonolentas,
na opinião dele, não seriam capazes de formular corretamente os
princípios estéticos da engenharia poética.
De acordo com esse
ponto de vista, poeta que se preze há de padecer, necessariamente,
da síndrome do engenheiro.
Sábado - Em 1988 o senhor disse que não se
surpreendia com o fato de que não o conheciam porque não se lia mais
poesia. E hoje?
Francisco - Perdão, mas não devo ter dito essa asneira. Não me
conheciam ontem nem me conhecem hoje porque certamente não decifrei
o segredo do mapa da mina ou porque não me tornei porta-voz dos
anseios e emoções da coletividade. Os ensimesmados se inclinam para
o hermetismo e acabam perdendo contacto com a claridade que emana
das coisas simples e do coração do povo. Desejo que esse equívoco
seja esclarecido de forma definitiva. Sou um poeta obscuro por culpa
própria. Não sou um comunicador, não tenho sabido praticar o
exercício da outridade.
Devo ser um sujeito
antiquado, tão fora de moda que ainda faço gaiolas, quero dizer,
ainda escrevo sonetos. Você não me perguntou se já fui traduzido
para algum idioma estrangeiro. Não fui.
Mas posso
garantir-lhe que meus poemas já foram lidos em Sobral. Qual é mesmo
a língua que se fala nesse país?
Sábado - E a questão das vaidades e das
panelinhas?
Francisco - Panelinhas e vaidades sempre existiram e haverão de
existir para todo o sempre. Não se trata de um vício provinciano.
Isso acontece em todos os contextos sociais onde operam grupos
literários. O Sr. Darci Ribeiro, que entende dessas coisas de
vaidade melhor do que ninguém, usou de grande sinceridade quando
afirmou que intelectual não é flor que se cheire. O problema é que
as pessoas se super-estimam e começam a pensar que se chove ou faz
sol é por causa delas. Essa fogueira das vaidades só se paga com a
morte.
Sábado - O senhor parece assumidamente
anti-grupos, mas pertence hoje à União Brasileira de Escritores e à
Academia Cearense de Letras. Como é sua relação com estas
instituições?
Francisco - Pertenço à União Brasileira de Escritores (UBE) por
iniciativa do poeta Domingos Carvalho da Silva, mas essa condição
não me rendeu até hoje nenhum privilégio. Nunca estive em São Paulo,
de modo que não sei dizer se esse status de membro da UBE ainda
continua a prevalecer. Meu relacionamento com a ACL vem-se
processando dentro das normas elementares da cortesia. Trato todos
os membros da ACL, os meus amigos e os que não participam da minha
intimidade, com a maior consideração e respeito. Não freqüento
assiduamente a Academia, mas de vez em quando participo de suas
reuniões ordinárias.
Sábado - Quais são suas grandes influências?
Autores que o senhor lê desde e sempre?
Francisco - Os grandes autores nos influenciam pela vida inteira.
Cada vez que
voltamos a eles encontramos novos motivos de encantamento e de
sedução, novas expectativas e novas descobertas. Tive algumas
influências marcantes pela vida afora: Camões, Fernando Pessoa,
Rilke, Saint-John Perse, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes,
Cesário Verde e vários outros da mesma ordem de grandeza. Essas
influências foram importantes na minha carreira literária e de certa
forma contribuíram para o meu amadurecimento. Com o passar do tempo,
elas foram sendo diluídas e, pouco a pouco, a minha individualidade
literária impôs o seu ritmo.
Sábado - O senhor tem algum tipo de
ressentimento em relação ao nosso mercado literário?
Francisco- Nenhum ressentimento a tal respeito. Não seria razoável
culpar o mercado literário pela inexistência de leitores de poesia.
Seguramente, a
pobreza e o baixo nível de escolaridade de camadas expressivas da
população contribuem para esse estado de coisas. Mas vários outros
fatores precisam ser levados em conta, principalmente certos
indicadores que estão na base da política econômica do país. Hão de
argumentar que tais motivos não impedem o Sr. Paulo Coelho de vender
milhões de exemplares em todo o mundo. Mas o caso dele e de alguns
outros devem ser vistos como exceções.
(in jornal O Povo, caderno Sábado, 11.01.97)
|