Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Marco Lucchesi

marlucchesi@aol.com

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Crítica: 


 

Alguma notícia do autor:

Marco Lucchesi é carioca, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Colégio do Brasil. Formado em História pela UFF, Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ e Pós-Doutor em filosofia da Renascença na Universidade de Colônia, Alemanha. Pesquisador do CNPq.  Editor da Coordenação Geral de Pesquisa e Editoração da Biblioteca Nacional. Diretor Acadêmico do Colégio do Brasil. Professor-Visitante da Universidade de Roma  ”Tor Vergata” e da Universidade de Craiova na Romênia. 

Publicou:  Meridiano celeste & bestiário (Prêmio Alphonsus de Guimarães 2006 da Biblioteca Nacional, finalista do Prêmio Jabuti 2007), A memória de Ulisses (Prêmio UBE João Fagundes de Meneses 2007),  Sphera (Menção Honrosa do Prêmio Jabuti 2004, Prêmio UBE de Poesia Da Costa e Silva 2004 e pré-finalista do Prêmio Portugal Telecom 2004), Poemas reunidos (finalista do Prêmio Jabuti 2002), Os olhos do deserto, Saudades do paraíso, O sorriso do caos, Teatro alquímico (Prêmio Eduardo Frieiro 2000 da Academia Mineira de Letras), Faces da utopia, A paixão do infinito, Bizâncio (Comenda Espatário da Trebizonda, finalista do Prêmio Jabuti 1999). Em italiano, os livros: Poesie (Prêmio Cilento 1999) Lucca dentro (Prêmio da Câmera de Comércio de Lucca),  Hyades La gioia del dolor

Organizou as edições da Jerusalém libertada, de Tasso, e de Leopardi: poesia e prosa, Artaud, a nostalgia do mais, Caminhos do islã (indicado ao Prêmio Portugal Telecom 2003), Viagem a Florença O canto da unidade, em torno da poética de Rûmî (Prêmio Mário Barata da UBE,  finalista do Prêmio Jabuti 2008). Traduziu dentre outros A Ilha do dia anterior (finalista do Prêmio Jabuti 1996) e Baudolino (finalista do Prêmio Jabuti 2002), de Umberto Eco, A ciência nova (Prêmio União Latina 2000, Premio Speciale del Presidente della Repubblica Carlo Ciampi: Prometeo d´Argento), de Vico, Poemas à Noite, de Rilke e Trakl (Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional 1996), Poemas, de Khliébnikov, Três histórias, de Patrick Süsskind, Esboço do julgamento universal, de Alfieri, A trégua, de Primo Levi, A sombra do Amado: poemas de Rûmî (Prêmio Jabuti 2001), Caligrafia silenciosa, de George Popescu, Presto con fuoco, de Roberto Cotroneo, a Teologia mística, do Pseudo-Dionísio Areopagita, e os “Versos de Iúri Jivago”, do romance Doutor Jivago, de Boris Pasternak.

Editou as edições fac-símiles de A divina proporção, de Luca Pacioli,  e obras do período colonial, tais como Frutas do Brasil, de Frei Antonio do Rosário, A língua de Angola, de Pedro Dias, Oração apodíxica, de Diogo Gomes Carneiro,  Medicina teológica, de Franscisdo de Melo Franco. Editor da revista Poesia Sempre, redator-chefe da Tempo Brasileiro, ex-editor da revista Mosaico Italiano. Colabora saltuariamente para O Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo. Tem atuado como dramaturgista de montagens teatrais cariocas.

Participou da criação da Universidade do Professor, no Paraná, além de organizar seminários para o Centro Cultural Banco do Brasil e Funiarte. Curador das exposições dos cem anos de Euclides da Cunha: uma poética do espaço brasileiro, e de Machado de Assis: cem anos de uma cartografia inacabada na Biblioteca Nacional, onde publicou a Machadiana da instituição e o fac-simile do jornal O Espelho.

Recebeu o Prêmio Alceu Amoroso Lima: Poesia e Liberdade – 2008 pelo conjunto da obra poética, o Premio Nazionale per la traduzione 2001 do Ministero dei Beni Culturali da Itália, o título de Cavaliere della Stella della Solidarietà della Repubblica Italiana, o Prêmio Marin Sorescu, na Romênia, o Mérito da União Brasileira de Escritores, o Premio San Paolo - Città di Torino, , as medalhas Geraldo Bezerra de Meneses, José Cândido de Carvalho, Associazione Lucchesi nel Mondo e da Academia Maranhense de Letras. Pertence a diversas instituições, dentre as quais O Pen Club do Brasil, a Sociedade Brasileira de Geografia e a Academia Fluminense de Letras.

Seus livros foram traduzidos em romeno, por George Popescu, em romeno (Grădinile somnului - Craiova, Scrisul Românesc e Hyades – Autograf MJM), em persa,  por  Rafi Moussavi  (Ministério do exterior – Teerã, reed. Rio, Editora Shams),  em alemão, por Curt Meyer-Clason (Erwartungslicht - Berlim, Leonardo Verlag), em sueco, por por Márcia Cavalcanti Schuback  (Risk- Berlim, Leonardo Verlag) e em árabe, por Safa Jubran (Shukran, iá sama  multhba - Rio, Editora Shams). (set/2009) 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Antônio Cícero

 

Sphera

 

Marco Lucchesi faz parte da família dos poetas cuja obra manifesta um cosmo que se desdobra em cada poema e cada livro seu. Mais depurado e, portanto, mais claro do que nunca, esse mundo reaparece - e resplandece - no livro Sphera. Trata-se aqui da fascinante estranheza de um mundo imaginal que nos impressiona, em primeiro lugar, pela raridade - e pela rara beleza - dos elementos intrigantes que, ao compô-lo, distinguem-no inapelavelmente do âmbito pletórico em que nossa vida e nossa fala cotidiana têm lugar.

Mas atenção: “raro” não quer dizer “privado”. Os elementos raros de Sphera nada têm a ver com a metalingüística particularista e paroquial que caracteriza a literatura dita “pós-moderna”. É que a poesia de Lucchesi é a um só tempo essencialmente cosmopolita e essencialmente solitária, de modo que, ainda que não desdenhe a intertextualidade e que se permita, por vezes, ser grandiosamente arcana, despreza todo particularismo: … “e a parte / contra / o Todo // se dissolve / se consome / e se estilhaça”. Tal poesia se incandesce precisamente no místico curto- circuito dos pólos do universal e do singular. Além disso, não sendo meramente superficial ou horizontal, sua erudição jamais extravia o leitor, nem obsta à fluência do texto em que se dá. Vertical e profunda, ela não se apresenta na forma de alusões externas ou adventícias, mas se manifesta, ao contrario, no próprio corpo, na própria essência do poema.

Sphera é uma obra de alquimia do verbo. Embora essa expressão lembre imediatamente Rimbaud e, talvez, Breton, temo que tais referências ameacem obscurecer a originalidade da relação de Lucchesi com a alquimia e a radicalidade com que fala a linguagem e sonha os sonhos milenares daqueles que foram, nas palavras de Lenglet-Dufresnoy, “os mais ilustres sonhadores que a humanidade já conheceu”. Com eles, o autor de Sphera almeja nada menos que a perfeição e o absoluto, mesmo sabendo que este talvez se revele como “um abismo / sem fundo // de um anjo / sem rosto //de um nada / sem Deus…” É privilégio do leitor que o acompanha em suas peregrinações através dos desertos físicos e metafísicos do chão e das alturas colher os momentos em que o verbo se transmuta em ouro e “esplende em mar filosofal”.

 

 
   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Marco Lucchesi - Textos

 

O fascínio dos gatos só pode ser comparado aos raios de Betelguese, ao vermelho de Orion, ao azul de Eta Carinae. Os felinos são como que a imagem infinitamente misteriosa das idéias de Platão. A música das esferas e dos números.

 

Essa foi uma parte do diálogo que tive com a Doutora Nise da Silveira. Como testemunhas, Leo e Carlinhos, Cleo e Mestre Onça. E os gatos passaram a integrar boa parte de nossa amizade. Nise era íntima de seus enigmas. E eu buscava iniciar-me nesse universo. 

 

Mandei-lhe a foto de um gato, que acabara de conhecer – amarelo como um girassol, olhos verdes, inquieto, como os de sua espécie – e que ensaiava uma tímida aproximação. Ofereci-lhe não sei quantos mimos e dons para que fizesse de meu jardim sua própria casa. Guardava um ar altivo e desdenhoso. Atingira o nirvana dos gatos-mestres, dos que viveram mil vidas e dos que sabiam a altura de quedas e telhados.  Desconfiava que os gatos de uma certa idade se tornavam metafísicos. Como se fossem extremados bizantinos, mergulhando horas a fio em contemplação. Gatos monacais. Giróvagos. Estacionários. Ao que responde Nise, frente ao irredutível dos seres gatos:

  

Lindo, lindíssimo o seu gato mestre. Sabedoria profunda em seus olhos. Sabedoria difícil de adquirir. Talvez ele saiba o caminho da uniqueness. Depois de ter praticado muitas lutas marciais e disputas amorosas. Mas tudo isso sempre aconteceu nos telhados e hoje quase não há mais telhados. Mas “os apaixonados do infinito”, os mesmos apaixonados da uniqueness continuam a buscar.

 

A paixão do infinito, ou a nostalgia do mais, coincidem em suas pupilas de fogo, na estranha e irredutível uniqueness. Mas era preciso nomear o gato, cuidando de emprestar-lhe um verbo impreciso e vago, a fim de não magoar o seu modo de estar-não-estando, ao receber um nome, sem se prender a formas específicas. Como dizem os teólogos, um gato definido não é um gato, ein begriffener Katz ist kein Katz. Nise responde, valendo-se de Eliot:

 

E hoje você me propõe outro dificílimo problema: o nome do gato. Recorri logo ao poeta T. S. Eliot, no seu poema “The Naming of Cats”,

 

The naming of cats is a difficult matter

.....

When I tell you, a cat must have three different names,

First of all, there’s the name that the family use daily,

.....

But I tell you, a cat needs a name that’s particular,

A name that’s particular and more dignified,

Else how can he keep up his tail perpendicular,

.....

But above and beyond there’s still one name left over,

And that is the name that you will never guese;

The name that no human research can discover -

But the cat himself knows, and will never confess.

.....

.....

His ineffable effable

Effanineffable

Deep and inscrutable singular Name.

 

Comparando suas dificuldades para dar um nome a este ser singular, mágico, o mais belo ser da natureza, segundo Leonardo da Vinci, que certamente era um entendido em beleza.

 

 Pouco depois, o gato desapareceu de meus dias. Não mais que a imagem sonhada por Da Vinci. A casa mostrava em toda a parte sua ausência. A sua tremenda e solitária simetria. Buscamos seus rastros por toda a parte. Mas em vão. O gato regressara – inominado – ao aleph primordial: 

 

Ia ainda dizer outras coisas, mas acabou de chegar sua última carta. Fiquei desolada! Mas estou certa que seu gato vai reaparecer. Os gatos sãomuito susceptíveis. Você, sem querer, o terá magoado? O gato custa a perdoar a menor desatenção. São muito exigentes. Será que você o retirou de alguma página da Divina comédia, onde ele se havia estendido? Para um gato, gato, isso é uma ofensa muito grande. Alguma mulher de coração esfiapado terá, sem querer, magoado o gato? O gato é muito sensível. Também é boêmio e talvez esteja lhe experimentando.

Eu sei quanto eles, quando pensam uma coisa, custam a desprender-se dela. Depois da morte de Cléo, a quem eu dava carinhos e remédios por meio de um conta-gotas, seus dois filhos nunca mais se aproximaram de mim. De certo imaginaram que o remédio fosse um veneno... Tenho me desdobrado em explicações carinhosas, mas sem resultado algum. Espero com paciência recuperá-los e você também vai recuperar seu belo gato. Cante baixinho para ele. Ele volta, volta, tenho certeza. Escreva-me. O mundo dos sentimentos dos gatos é sincero e não de todo impenetrável. Ele está chegando... ele ouve de longe.

 

PS.: Pensamento da madrugada de hoje - Você teria trazido o gato da liberdade para o seu apartamento? O espaço livre é muito importante para o gato. Só quando menino ele se adapta a recintos fechados e às restrições dos habitantes de apartamentos. Talvez ele haja fugido para a liberdade, mas voltará pelo amor. Não desanime, mande notícias,

Nise

 

  Cantei de todas as maneiras. Fiquei vigiando o seu regresso. Tenho certeza de que ninguém o retirou de sobre as páginas da Divina comédia.  Jamais voltei a vê-lo se não em sonhos. Talvez fosse realmente um monge errante, que fazia uma pausa em suas longas caminhadas – um ser que buscava a transitividade.

 

O fluxo em estado selvagem, como aprisioná-lo?

 

Tempo depois, uma gata menina é levada por amigos. Pequena. Afetuosa. Irritadiça. Conquistar-lhe a confiança não representou pequeno esforço. Branca e negra de pele – seus olhos e saltos não vacilavam. Vivia no alto, junto aos livros da biblioteca. Era preciso trazê-la para baixo, mas sem transformar-lhe em exílio a sede de alturas. Minha dúvida voltava-se mais uma vez para o nome. Havia pensado em duas ou três possibilidades, que tratassem do eterno feminino, dada a condição da gatinha. Ocorreu-me Nise e Beatrice. Sentimento de altas esferas. Mas havia pensado também na Diotima, de Hölderlin.  A palavra final veio assim:

 

O nome de sua gatinha, assim penso, deverá ser Beatrice, por vários motivos. É um nome muito lindo e significativo. Não esqueça que gatos e gatas são seres muito sensíveis. Facilmente sentem-se ofendidos. Perdoar é para eles dificílimo.

 

Beatrice foi de uma convivência pacífica e belicosa. Dava-me a impressão da síntese dos contrários. Difícil saber quando e como podia aproximar-me de si. Talvez não estivesse feliz no apartamento (ninguém pode ser feliz em apartamentos!) Ou quem sabe eu não me dedicava como devia à sua forma de ser e estar. Humana solidão. Humana ignorância. Foi um longo combate para vencer a indiferença de Beatrice. Cheguei a pensar na mudança do espaço, ao refazer a geopolítica da casa, alterando suas razões de estado. Obtive apoio de Leo e Nise, que escrevem a mim e Beatrice, intuindo as dificuldades da relação homem-gato:

 

Querido Marco

Amada Beatrice

 

Seu livro está iluminando toda nossa pequena casa. Nise anda com ele de um andar para o outro, não o solta um instante. Ela está muito decepcionada com o bicho gente e por isso agora esforça-se em metamorfosear-se num gato. Aprovo esta decisão de nossa amiga.

Espero que você ame cada vez mais Beatrice e lhe dê o carinho que ela merece.

Eu estou ficando velho e um tanto impertinente, mas Nise me adora.

Desejo que você se conserve corajoso como um gato que compreende os segredos das múltiplas vidas.

Beijos e muito afeto para você e Beatrice. De Nise também, certamente.

Nosso carinho

Leo - Nise

 

Com o passar dos meses, Beatrice me acolhe mais afetuosa com ronroneios e chamados outros. Sem perder os traços essenciais de sua personalidade, aprova meus serviços e cuidados. Não tenho dúvidas de que o tempo afetivo dos gatos pertence ao tempo aion, ao quinto elemento e aos números-idéia de Platão. Beatrice me acompanha quando estudo as partituras musicais, quando abro meus livros ou quando penso nos poemas futuros. Leo da Silveira comemora essa fase e insiste em passar – como gato mais velho – sua experiência à jovem Beatrice:

 

 Leo escreve a Beatrice

 

Fiquei feliz de saber que você se aconchega no colo de Marco enquanto ele estuda, escreve. Você logo descobriu que estava junto a um poeta. Numa relação estreita com o poeta amigo você o levará a descobrir coisas extraordinárias, estou certo.

 

Sei que uma verdadeira relação de amor de um ser humano com o ser gato é arte muito difícil. Sutilíssima arte. Por telecomunicação você já me disse que está confiante. Longas experiências da espécie gato já lhe ensinaram que as decepções, duras decepções, não são raras. O bicho homem é muito pretencioso, julga-se superior a todos os seus irmãos que vivem neste planeta. Nós, os gatos, sem dúvida, somos superiores a todos os habitantes da Terra.

 

O homem nunca alcançará a capacidade elegante de saltar de grandes alturas, coisa que nós fazemos tão facilmente. Nem o dom de ver as notas musicais tomarem lindos contornos, segundo o privilegiado Stravinski descobriu: enquanto ele compunha, seu amigo gato saltava para brincar com as notas. O mesmo aconteceu a outros músicos, mas eles não sabem o que está acontecendo. Tão longe estão de uma profunda relação com o gato, enquanto este tenta desvendar-lhes segredos inutilmente. Os poetas são mais afins com o gato, que o diga Baudelaire. Por isso estou contente que você esteja junto de Marco. Mas não fique satisfeita apenas com a proximidade. Sei que ele não é arrogante como o comum dos humanos. Você poderá suavemente transmitir-lhe muitas sutilezas. Alimentos, vagas carícias são totalmente insuficientes. Diga-lhe que os gatos são muito misteriosos. Seus olhos lindos alcançam esferas astrais, que jamais os homens alcançarão, enquanto estiverem prisioneiros nas suas espessas vendas corporais.

 

(remetente: Leo da Silveira)

 

 Nise – através de Leo – clamava por uma visão cósmica do lugar de homens e gatos nos escaninhos do Universo, em suas remotas e estranhas comarcas, atravessadas pela perspectiva franciscana das criaturas e pela visão neoplatônica das esferas. Tratava-se de um gato platônico. O gato do Fédon – se fosse possível inventá-lo. A vida é uma preparação para a morte e para a liberdade. A destes olhos. A destes dias. A destes corpos. Ver além da espessura não seria mais que reeducar os sentidos. Foi o que aprendi com meus primeiros gatos, com Leo da Silveira e com a Dra. Nise: a tarefa de reeducar os sentidos. A poesia do Espaço. A poesia do Tempo. A força do salto quântico. O pulo do gato. Do universo ao multiverso: olhos atentos em órbitas de fogo. Pupilas infinitas. Misteriosas. Ou como dizem os versos de Nise da Silveira:

 

Le poète de l’espace

est un vrai vagabond

il saute d’une planète à l’autre

d’une étoile à l’autre

en grandes enjambées

il ne porte ni bâton ni sac

il est libre.

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Fábio Lucas

 

Momento alto da poesia brasileira, por Fábio Lucas

 

Meridiano celeste & Bestiário (Rio, Record, 2006) constituem uma das mais belas obras poéticas que tive a oportunidade de ler em 2006. Encantaram-me a bem lograda ambição cosmogônica e as particularidades zoomórficas com que a natureza se exprime na poesia de Marco Lucchesi, cujo auto-retrato se delineia numa das composições (pp.56-57.)

Refinado diálogo entre o universo infinito e o trágico limite da consciência egocêntrica. Dito de outro modo, temos a justaposição do silêncio eterno das esferas e do questionamento interminável do “eu poético”. Pois este, desprovido de respostas, escala desesperançado as duas vias sem termo: a do amor e a da máquina do mundo. Diz, no primeiro poema; “bem que sei que as partes”: “mas como aderir/ às rochas nuas/ e às estrelas firam/ de teu mundo/ que segue além/ desse meu vasto desamparo?”. A seguir, diante do ambicioso projeto, exclama: “diante dos conflitos/ que me arrastam/ levo em silêncio/ um pacto/ de armistício”. O questionamento almeja sair do íntimo, mas recua: “o meu país me move/ entre esperança/ e desencanto/ algo que procuro/ e de súbito abandono”.

O engenho verbal de que se socorre o poeta traz reminiscências da formação, os fantasmas e as aquisições da vida reclusa, numa espécie de sacerdócio da palavra, no sentido de divinizar as circunstâncias. Daí estas parcelas do seu Credo (poema “Creio na minha fome”): “ creio no corpo feminino/ nas formas nuas/ que me salvam/ do silêncio/ creio nos pássaros/ que voam/ bêbados de ocaso”. No final, temos: “creio nos horizontes/ do nada/ em que Deus trava/ para sempre perdido/ o mais rude combate”.

Escudado em Farias Brito, Marco Lucchesi propõe a hegemonia da luz no seu conceito de Cosmos (cf. poema “Luz”, p.57). Depois, afronta o mito cristão, o cristo-peixe, no poema “Barco ébrio”: “cardumes/ levados/ para as sublimes/ regiões do esquecimento”. Vale-se, o poeta, em várias ocasiões, do paganismo para exorcizar-se das marcas da educação religiosa, numa espécie de purificação. Ou de renascimento.

Diante do mistério, aspira ao infinito. Pratica a liturgia da palavra. É o que se verifica no poema “Azul”, transcrito a seguir: “aquele azul/ quase invisível/ reclama/ outro mais fundo/ e impronunciável”.

Meridiano celeste & Bestiário significam um momento alto da poesia contemporânea brasileira. Distancia-se do visualismo oco, estéril, dos experimentalistas que buscam inspiração nos recursos de publicidade e do mercado.

 

 

 

 

 
Titian, Noli me tangere

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William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

  

 

 

Wilson Martins

 

Ensaios Literários

 

Mais ensaísta que crítico literário de estrita definição (na mesma estante de Carpeaux, Antônio Cândido ou Augusto Meyer), Marco Lucchesi destaca-se entre os intelectuais das gerações mais recentes pela amplitude de interesses, erudição ecumênica e incomum afinidade com a coisa literária. (A memória de Ulisses. Rio: Civilização Brasileira, 2006). É um goethiano integrado na weltliteratur, cujo tipo de visão aplica nos seus próprios ensaios: Joaquim Cardozo (grande poeta sem a glória que merece), Villon, o padre Vieira e Cervantes, figuras epônimas não só da literatura universal, mas também das suas épocas e das seguintes: “A filosofia de Kant, a Revolução Francesa e o Fausto de Goethe. Desses horizontes surgiram… os fundamentos do mundo moderno: a coisa em si e a representação, a figura do gênio e o complexo de Fausto, a igualdade e a fraternidade (…)”.

Tudo isso se passa no plano ideal da literatura como idéia, para além das belas-letras que a representam: “Pode-se mesmo dizer, sob a chancela de uma história suspensa, que Goethe escreveu a Divina Comédia. E Dante o Fausto. Ou que Cervantes redigiu as Elegias romanas e Goethe, o Dom Quixote (…). O problema da luz e da unidade, do silêncio e da palavra, da vida e da representação aproximam Dante, Goethe e Cervantes”. Uma razão profunda tornou contíguos, neste livro, os capítulos sobre Spengler e Gibbon: são dois espíritos dominados pelo sentimento trágico da existência. Os grandes monumentos da historiografia e da filosofia da história são construídos sobre as ruínas das civilizações: “As ruínas são como que células mortas de uma história viva”.

The decline and fall of the Roman empire é livro simétrico ao A decadência do Ocidente, este último escrito e publicado quando o processo degenerativo da civilização parecia irreversível, especialmente aos olhos de um alemão (1918-1922). Coloquem-se os dois livros nas perspectivas mentais em que foram escritos: “Onde estão? As glórias de assírios e romanos. O império sassânida e mongol… o farol de Alexandria… os olhos de Cleópatra… o orgulho de Bonifácio VIII… onde estão as colunas e propileus, outrora soberbos, que fizeram da Acrópole o centro do mundo?”. Reflexões de Marco Lucchesi, que ainda transcreve as de Gibbon: “Enquanto este grande corpo (o Império Romano) foi invadido por violência aberta ou minado por uma vagarosa decadência, uma religião pura e humilde insinuou-se de modo sutil na mente dos homens, cresceu silenciosa e obscura, e finalmente erigiu a bandeira triunfante da cruz nas ruínas do Capitólio”.

Como se sabe, a idéia central de Spengler consistia em distinguir entre Kultur e Zivilisation, da vida ao letargo. De Apolo a Fausto, no que, claro está reencontramos o mito goethiano: “Vejo na história universal”, escrevia ele, “a imagem de uma eterna formação e deformação, de um maravilhoso advento e perecimento de formas orgânicas”. Assim voltamos, não apenas a Goethe, mas a Vico e a Niestzsche, e aos grandes mitos, conforme a cota de Marco Lucchesi: “Apolo é a alma da cultura antiga, a linha clara e sutil, a expressão do equilíbrio… Fausto é o espaço puro, sem limites”, segundo as notações de Spengler: “Fáusticos são a dinâmica de Galileu, a dogmática católico-protestante, as grandes dinastias da época barroca com sua política de gabinete, o destino do rei Lear e o ideal da Madona, desde e Beatriz de Dante até o fim do segundo Fausto”.

“Grandeza e decadência de Oswald Spengler” – eis o título de um livro possível: “Terreno movediço”, conclui Marco Lucchesi, deslocando-se “vertiginosamente de uma época para outra. Cria infundados paralelos. Impossíveis morfologias. (…) O sistema é arrogante. Auto-suficiente… todos cumprem… um papel predeterminado. Isso levou Thomas Mann a criticar o descaso de Spengler com a humana liberdade, e Karl Popper e Isaiah Berlin. Para Spengler, apenas as culturas são indivíduas, e boa parte do fascínio de Der Untergang parece ter nascido dessa condição inelutável”. Apesar de tudo, o livro “foi um best-seller nos anos 20 e 30”, assim como o de Arnold Toynbee seria nas décadas seguintes, para receber posteriormente restrições idênticas, quase literais. É o destino inelutável a que estão condenados todos os filósofos da história, justamente por não serem simples historiadores factuais.

Conforme Benedetto Croce em livro recentemente traduzido (Rio: Topbooks, 2006), A história é a história da liberdade, mas também uma história de tentativas e erros, são proporcionais às tentativas. Pode-se encarar tudo isso com um movimento em espiral, não o trajeto retilíneo e triunfalista em que acreditam os espíritos simples.

 

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Eleuda Carvalho

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Dora Ferreira da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As Carnaubeiras de Catuana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Nello Avella

 

O Ensaísmo de Marco Lucchesi

 

No ensaísmo de Marco Lucchesi reconheço a humana aventura de um intelectual dotado de capacidades espantosas: da poesia, da música, da matemática, da tradução, das mais de 15 línguas que domina, das incursões pelos variados campos do saber. E não bastasse, Marco Lucchesi é professor, curador de importantes exposições, editor de revistas literárias e de obras antigas e modernas.

Umberto Eco, Claudio Magris, Leonardo Boff, Eduardo Portella, Enzensberger, Marin Mincu, Baudrillard exaltaram sua criatividade e profunda inteligência, ao passo que Maffesoli disse que sua produção é “uma comovente ária de ópera”, em virtude da musicalidade de sua prosa e com evidente alusão à familiaridade do poeta com o piano e a composição. O grande poeta Mario Luzi considerava Marco um igual e Nise da Silveira afirmou que Lucchesi havia sido alfabetizado na Divina comédia. E poderia citar o nome de ilustres personagens que lhe manifestaram admiração, como Mahmud Darwich ou Nagib Mahfuz. Segundo Villaça “os maiores leitores da história intelectual do Brasil foram Rui, Pontes de Miranda, Alceu Amoroso Lima, San Tiago Dantas, José Guilherme Merquior a que se junta o fino, o sagaz, o penetrante Marco Lucchesi.” Para Wilson Martins: “Mais ensaísta que crítico literário de estrita definição (na mesma estante de Carpeaux, Antonio Candido ou Augusto Meyer), Marco Lucchesi destaca-se entre os intelectuais das gerações mais recentes pela amplitude de interesses, erudição ecumênica e incomum afinidade com a coisa literária. É um goetheano integrado na weltliteratur, cujo tipo de visão aplica nos seus próprios ensaios".

Tive a alegria de o conhecer pessoalmente há doze anos. Eu dava uma conferência aos estudantes de Letras na UFRJ sobre poesia contemporânea em língua portuguesa, lendo minha versão para o italiano. Na sala havia um rapaz, pouco mais velho talvez do que os outros, que acompanhava com interesse e dava luminosos sorrisos de satisfação. No final, quase temeroso de importunar, elogiou-me e apertou minha mão. Grande foi minha surpesa quando me dei conta de que aquele rosto muito jovem e aquele olhar carregado de afeto, de entusiasmo vital, eram do escritor que eu admirava. Começava então nossa amizade, que se multiplicou por diversos espaços geográficos e culturais.

Gosto de pensar na obra de Marco a partir da imagem fitomórfica, de Octavio Paz, segundo a qual a obra de arte é uma árvore: as raízes mergulham no húmus da cultura e do autor, o tronco representa o corpo em sua elaboração artística, os ramos que sobem pertencem a todos aqueles que observam a árvore e, admirando-lhe a beleza, retiram sua unicidade e universalidade.

Vejo em seu livro as raízes na tradição cultural européia, com ascendências que partem da Toscana, de suas origens ancestrais, e que se abrem para o mundo oriental e para as grandes literaturas da Europa e das Américas. Sua trajetória é marcada pela nostalgia do mais, como ele escreve num belo texto sobre os gatos; nos ramos dessa árvore, vejo centelhas, versos fulgurantes, a iluminar abismos, povoar desertos, tentando, enfim, recuperar o paraíso perdido, como nos récits en rêve de Yves Bonnefoy. Ler estas belas Ficções representa uma forma de elevação e de aliviar minha pessoal nostalgia do mais.

 

   
Ana Cristina Souto

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Rosa Alice Branco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Letícia Malard

 

Gênio do desenho e da tesoura

 

Nas orelhas de Sphera, livro anterior de Marco Lucchesi (Record, 2003), Antonio Cicero elogia-lhe a erudição vertical e profunda, manifestada não em suas exterioridades, mas no corpo e na essência do poema. E Eduardo Portella, no prefácio ao livro, detecta um Lucchesi que consegue alcançar ”a espontaneidade sábia ou a sabedoria espontânea”. Erudição e sabedoria assim qualificadas constituem novamente o binômio destacável neste novo conjunto de poemas, em cujo título figura o nome do maior círculo da esfera do céu.

O erudito e o sábio espontâneo aqui se aperfeiçoam, vestem o poema com trajes de festa ao reler a poesia de décadas anteriores na composição poética escancaradamente fashion. Trabalho de rebeldia nestes singelos tempos pós-modernos, o figurino lucchesiano renega o fácil e burila o difícil sem cair na quadratura do círculo nem na fantasmagoria melindrosa do corte. Uma espécie de dois maridos da Dona Flor – o romance e o filme -, uma vez que Jorge amado foi um dos pivôs da revista Meridiano – aqui evocada por mera associação de idéias -, da baiana Academia dos Rebeldes dos anos 1920.

Em suma: Lucchesi põe na vitrine uma moda poética bastante chique, sem plumas nem paetês, até mesmo superclean em muitos momentos, com um ou outro modelo falando língua ininteligível nos meridianos do equador: o poema “Hipopótamo”, por exemplo, é todo constituído por onomatopéias.

Assim, não fica estranho o fato de, nesta nova esfera poética, incluir-se o círculo “Bestiário” – afastada qualquer alusão a Cortazar e a medievalismos -, 24 poemas, em cada um deles desfilando um animal: da pulga micrográfica de Hooke ao elefante. Bichos eruditos como os de Miguel Torga, nada plastificados como se vê na Disney, mas plásticos e de soberbo porte em matéria de poesia. Bestiário sem perua, é óbvio, para não desequilibrar os elementos quantitativos do mencionado binômio.

Das intertextualizações Lucchesi sabe tirar os melhores partidos. Contudo, o escancaradamente fashion a que me referi não desemboca no brilho exagerado do intertexto como se fosse árvore de Natal, ou seja, o texto do Outro aparecendo lantejoulado, iluminado, chamando toda a atenção para si. Lucchesi afasta-se das exterioridades. Prefere outras duas perspectivas: ora é explicitadíssimo, tal no título “Barco ébrio”, no neologismo “boinuvem” e em “Luz”:

 

abro

Farias Brito

e leio

num misto

de encanto

e assombro

 

dentro da luz

nos movemos

agimos e estamos;

 

ora relê outros textos com tal perícia que apenas os leitores rodados em muita passarela de leituras são capazes de encontrar o texto retransmitido.

Nessa segunda perspectiva, veja-se, exemplificada, a sábia sofisticação do trabalho intelectual do poeta, consciente ou inconscientemente, pouco importa: “O torso delgado// de Afrodite” (poema “Vênus desvanece”) se cruza com “rosto de Apolo” (poema “Rosto de Apolo”), a partir do soneto de Rilke “Torso arcaico de Apolo”, mas na bela versão de Manuel Bandeira.

E ainda: o vagalume homônimo, “alquimista// do ouro das estrelas”, é releitura, até na sonoridade, do gemido do inseto machadiano – “Quem me dera que fosse aquela loura estrela”. Se o leitor bem se lembra, o famoso soneto “Círculo vicioso” também se faz tematizador de verdadeira alquimia cosmológica. E ainda mais: seu título agencia o mesmo campo semântico: círculo, esfera, meridiano.

Do intertextual literário para o intertexto coloquial e vice-versa é um passo, no trabalho dos recursos da poética em Lucchesi. Esse procedimento de inter-relação do espontâneo com o erudito, do clichê citativo de todos ou de qualquer um com a originalidade criativa do poeta produz um tom de inusitada discrição e elegância. Uma bem-sucedida tentativa de compatibilizar o dualismo “espontaneidade e sabedoria” divisado por Eduardo Portella, no livro anterior.

Assim, Lucchesi procede à moda de um estilista que criasse um jeans lavado e rasgado, porém bordado em arabescos com fios de prata e ouro, muito Dolce & Gabbana. Notem-se as três primeiras estrofes do poema “A noite é fria”. O coloquial da primeira estrofe começa a transformar-se na segunda, adquirindo foros de literariedade, para alcançar a máxima elaboração artística na terceira estrofe:

 

A noite é fria

e as estrelas

brilham ao longe

 

é preciso sofrer

avastidão

como quem se entrega

ao sacrifício de um deus

 

passei da insônia

escura

ao candor

da Via-Láctea

 

Este Meridiano celeste unifica a cosmologia e a teogonia, condensadas na fórmula da velocidade de fuga das galáxias, que intitula um poema, e na imagem “planetário de Deus”, de “E a barca do sol”. No livro, toda uma retórica de amálgama dos quatro elementos que se entrecruza com uma visibilidade cosmológica de transparências e opacidades, de cristais e porcelanas, de líquidos e solidez, de luzes e sombras em claro-escuro. Seu objetivo é ressuscitar para o sagrado ou o profano temas e subtemas poéticos de todos os tempos. Afinal, declara o poeta, bem distanciado do espelho de Narciso:

 

Marco Lucchesi

é o nome

de uma nuvem

 

árdua pluriforme

ligeira

e imperscrutável

 

Em seu universo temático, “abrasado de paixão e delírio” (poema “Creio na minha fome”), está o amor dantesco que move o sol e as estrelas (poema “Meu conflito”); está o tempo da infância com o “céu em chamas”; está o pavão trazendo “o lume baço das estrelas” em seu porte (poema “Pavão”). O fazer poético se trama e se tece nas essencialidades da palavra e pelas justas palavras, magicamente capitadas de um dicionário cósmico.

Em que pese a recorrência de Deus/ deus, este é mais do que um elemento cosmológico e menos que a entidade religiosa maior, descaracterizando, desse modo, a poesia de Lucchesi como aplaudidamente mística. Se, por um lado, o leitor pode cair na armadilha do misticismo católico em composições do tipo “Villaça”, o “saltimbanco de um circo místico”, por outro lado os termos dialéticos da contradição do poeta expõem sua fratura em “Farmácia”, onde ele busca um remédio para curar-se do mal de ter nascido. Atitude antidivina, pois contrária à obrigatória transmissão do legado de nossa miséria. Em compensação, a dialética do poeta se enuncia e anuncia em “Svoboda Bachvarova”, quando a religiosidade se cristaliza numa espécie de fornalha ardente nacional:

 

minha pátria

resplandece no rosto de Jesus

 

Em paralelo ao cosmológico e ao teogônico, prisma-se um mundo antigo, em ruínas, e um mundo primitivo, o dos animais de “Bestiário”. Roma se presentifica na epígrafe e se espraia por vários poemas, chamando e clamando o poeta para os tempos históricos do Cristianismo nascente. Os animais de “Bestiário”, conjunto epigrafado com a idéia de o poeta ser uma fera cercada de palavras, completar o círculo primitivista, em comunhão com deuses e figuras místicas. Em suas palavras, a águia anuncia a vinda dos deuses, a girafa visita o Alcorão, a hipupiara é uma Afrodite, a formiga representa O Venturoso Dom Manuel de antenas, o dragão deixa-se conduzir por São Jorge.

Marco Lucchesi é um poeta que se encontra em plena maturidade literária, que sabe trabalhar o poema para causar encanto e espanto. Encanto resultante de gestual beleza, espanto pela magreza, retilinidade e despojamento de seu discurso. Estilo de poesia que dialoga com o corpo e o gesto das deusas e deuses desfilantes e suas vestes maravilhosas: corpo, gesto e vestes especialmente criados para encanto e espanto de todos nós. E criados divinamente, por um gênio do desenho e da tesoura.

 

 

 

 

 
Elizabeth Marinheiro

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Edna Menezes