“In
my beginning is my end”. A inesperada e insistente abertura de T.S.Eliot
no quarteto de “East Coker” parece vibrar, como um contraponto, ao longo
da leitura de “As Linhas da Mão”, o belo livro de Alberto
da Costa e Silva, caprichosamente percorrido, numa espécie de
leitura simultânea com a obra completa de seu pai, esse pungente
Da Costa e Silva, que a poesia conduziu ao porto da morte pelos mesmos
caminhos silenciosos de Hoelderlin. Parece fascinante a experiência
de perguntar, num outro plano da indagação de Kierkegaard,
diante de um filho que continua o vício paterno da poesia, se a
repetição será possível. Wittgenstein já
colocara o problema: ? se herdamos de um pai as linhas do rosto, o jeito
de andar, a fábrica dos gestos e da voz, um meneio de cabeça,
o maneirismo dos olhos e das mãos, não lhe herdamos acaso,
também o sopro da palavra?
A “mise-en-question”
desse tipo de herança não envolve, obviamente, a autonomia
e a legitimidade de um poeta, embora possa armar um perigoso problema sobre
aquilo que Heldegger chamaria de “essência da poesia”. E aqui entra
de novo o contraponto eliotiano: ? “in succession ? houses rise and fall,
crumble, are extended ? are removed, destroyed, restored”... E, afinal,
aquela visão unamuniana da vida terrena como prefácio da
vida eterna, e na qual as pessoas se perpetuam através dos filhos,
cuja nascimento seria uma verdadeira preconização da ressureição
da carne ? essa ressureição que o homem é capaz de
operar com suas próprias forças, e que levaria à loucura
e à apostasia o atormentado padre Jacinto Loyson, comovidamente
evocado nas páginas da “Agonia do Cristianismo”.
Mas
isto é outra história, apenas para dizer que, não
havendo propriamente uma “influência”, sequer uma “influência”,
do primeiro Da Costa e Silva na arte do verso
de seu filho Alberto, parece que a mesma atmosfera de ternura humana e
de saudade da luz nos túneis de mistério em que se achava
e se perdia o poeta de “Zodíaco” perpassa agora no canto de “As
Linhas da Mão”. Ele mesmo o dirá: ? “a mão de meu
pai sobre o papel desenha ? quase num só traço o menino a
cavalo”.
A infância
deslumbrada e pungente nutriu para sempre Alberto da Costa e Silva, talvez
por isso ainda agora caçador de um deus ? “deste deus que não
fui no menino” ? o menino a quem a impotência diante das coisas insondáveis
não empobreceu, antes enriqueceu com o lirismo de um amor elegíaco
tão poderoso, que, qualquer que seja sua viagem pelo mundo, não
encontra o poeta para ela outro caminho senão o caminho inaugural
da infância: ? e o potro pisa a marca de seus cascos”.
A infância
lhe será, assim, o eterno retorno nietzschiano: ? venho de minha
vida adulta”... “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora
menino”. Pois “depois dos quinze anos quase nada aprendemos: a dar laço
em gravatas, por exemplo”. A própria paisagem da infância
é a que viaja com ele por todos os quadrantes, fixa em sua memória
e em sua retina, como a estrela da manhã que acompanha o marinheiro
por todas as latitudes e longitudes: “Em nossa volta o capim ensolarado
? o Piauí”. E os nomes das terras da infância, no país
do Nordeste, Sobral, Viçosa, Camocim, Pastos Bons, voltam sempre
com suas melodias, seus babaçuais, a casa do Amarante. E pode ser
na Europa e pode ser no trópico, mas seja onde for, o diálogo
com as terras descobertas não tem sentido se não se coloca
na circunstância dos tempos e dos espaços aurorais da infância,
na magia de um nome repetido, na própria memória animal dos
cinco sentidos:? “ como era o odor dos rosmaninhos”?
Talvez
valha a pena esclarecer que Alberto da Costa e Silva é diplomata
e, pois, andarilho por profissão. Sua poesia, entretanto, a quem
não soubesse desse detalhe existencial, levaria a supor um poeta
ancorado nalguma pequena cidade do interior. Como aquele saudoso Dantas
Mota, sob o panejamento de cuja oralidade rítmica, de resto parecem
cantar as mesmas melodias interiores de que se faz o verso medularmente
barroco de Alberto da Costa e Silva: ? “sob o teto e a ferrugem ? do mercado,
em Fortaleza, ele tocava a rabeca ? e era cego... Mas em Medinacelli ?
Alberca e entardeceres, ? senti o mesmo cheiro ? de palha, urina e pêlo
? de um jumento suado ? sob o sol de Sobral” ? este Sobral que pode estar
em Portugal, na Espanha, na Itália, mas que será sempre o
Sobral da infância, do país de um menino a cavalo.
Como
no soneto do primeiro Da Costa e Silva, o poeta Alberto parece ter sempre
ao ouvido aquele búzio de sons remotos, que lhe trazem a voz da
vaga. os cânticos do vento, a memória da inacabada sinfonia
da infância. Como naquela página antológica, de “Uma
tarde, em Caracas”, quando, na “primeira manhã, Elza Maria era ruiva”
e “Pedro Miguel amanhecia nos cabelos”. Antológica, aliás,
é cada página desses diversos momentos de seu permanente
trato com a poesia, no comércio com as coisas simples, todas elas
aterradoramente ou consoladoramente poéticas, como a cadeira de
vime que rangia “enquanto o velho passava a mão sobre o tempo em
seus cabelos”. Em suas cento e quarenta páginas, o volume de “As
Linhas da Mão” reúne nada menos de sete coletâneas
de poesia de Alberto da Costa e Silva. Não se pode, assim, dizer
que se trata de uma obra caudalosa. E tanto melhor. E aqui lembro a confidência
com que um dia me aterrou o grande poeta Godofredo Iommi, dizendo-me: ?
“não escrevo mais poesia. Descobri que já sei escrever poesia,
que aprendi a escrever poesia. Por isso, não preciso mais escrever”.
É claro que o poeta continuará escrevendo, mas parece claro
também que há uma relação efetiva entre a qualidade
e a economia dos textos poéticos. A observação não
vulnera, evidentemente, os longos textos poéticos, de Homero a Dante,
até porque, queiramos ou não, toda obra poética é
uma coleção de fragmentos.
Da tessitura
dos fragmentos se faz o grande painel. Disto tem perfeita noção
o poeta Alberto, que até deu a um de seus livros o título
de “O Tecelão”. E mais: um outro se chama “Alberto da Costa e Silva
Carda, Fia, Doba e Tece”. E carda e fia e doba e tece novamente, cada vez
que se encontra com a infância na lua do selim em que reside, com
seus olhos, com suas mãos, com a mão de seu pai, que punha
um rosto triste e um sol e um céu ao redor do menino a cavalo. Herdeiro
de um conhecimento mágico das coisas da poesia, conhecimento destilado
e escandido “de père en fils”, o poeta de “As Linhas da Mão”
trabalhou algumas das mais belas formas poéticas de nossa língua
e de nosso tempo, criando e sustentando a beleza de um momento imperecível
de poesia, repondo “no universo o que foi sonho”. No universo, em todos
os sentidos, pois exatamente por guardar o chão e o céu de
seu país brasileiro, abriu, com seu canto, uma verdadeira picada
para o universal. |