Alberto
da Costa e Silva não é poeta bissexto. Pelo contrário:
até que vem versejando mais que antes, e não faz muito tempo
nos deu esse admirável As Linhas da Mão, um dos mais puros
vôos líricos da década passada. Mas é um poeta
do intensivo; e neste magro livrinho, A roupa no estendal, o muro, os pombos,
a própria ausência da numeração das páginas
parece sublinhar a natureza nada copiosa desse verso feito de limpidez
e contenção. Lirismo sempre em surdina, alheio a toda oratória
e, na verdade, a todo efeito retórico.
Há uma “ars poetica”
do verso oratório, muito eficaz em d’Aubigné, Hugo, ou, entre
nós, Castro Alves, Menotti del Picchia ou Affonso Romano de Sant’Anna;
apenas não é esta a família poética dos textos
de Alberto da Costa e Silva. Neles, nada se salvas de tropos, nem música
(por mais bela) externa; nenhum jogo pelo jogo. A linhagem albertina não
se prendeu ao idioma neoparnasiano de 45, nem à neovanguarda seguinte.
Como Octavio Mora ou Marly de Oliveira, trata-se de um poeta nem antimoderno,
nem experimental ? mas muito menos “literário” que esses dois. “Jardim
imaginário com sapos reais dentro dele” ? essa miniestética
de Marianne Moore, epigrafando A roupa no estendal..., situa acuradamente
o espírito antiornamental da poesia de Alberto.
John Bailey, o fino crítico de Oxford, costuma cobrar da
poesia contemporânea o senso perdido da magia. De magia não
como dúbio reflexo de supostas transcendências, mas como encapsulamento
verbal do encanto das coisas, de certa aura das situações.
Os antigos sabiam disso quando falavam das “lacrimae rerum”, do pranto
da natureza. Alberto canta sempre algo assim: uma discreta vibração
do quotidiano, o claro mistério das situações mais
singelas, do espetáculo, nada espetacular, da vida à mão.
Intermitente comunhão da alma com um súbito sentido da existência,
... neste assombro do tempo que só é o que
já fomos, um céu parado sobre o mar do instante.
“Tudo é eterno quando
nós o vemos”, sentencia esse poeta de modo algum sentencioso. E
a partir dai, dessa quieta mística do átimo, a melodia de
seus sóbrios “enjambements” se torna irmã da luz dos Vermeer
e Morandi. Alberto pertence à raça dos contemplativos ardentes,
que extraem seiva lírica da matéria mais humilde, do gesto
mais banal, do momento mais precário. Como, por exemplo, tomar café
na copa; ou lembrar os ritos da infância; o rever uma avó
junto à máquina de costura:
... Sonho vê-la no seu vestido negro, a gola branca
contra o corpo de cão, negro, da máquina: a roda, de perfil,
parece imóvel e a vida não se exila na beleza
Realmente não se exila:
não se alonga fugindo e vai morar no esteticismo. E por isso é
que a meditação, nesse tipo de poesia, flui desimpedida do
álbum dos dias simples, qual pura emanação de vivências
ao alcance da solidariedade imaginativa de cada um. Assim, na “Elegia de
Lagos”, a impressão da morte:
A morte
debulha-se
como uma fava: caem
de dentro dela os dias,
até o mais antigo,
em que ouvimos o seu nome pela vez primeira.
Ela nos põe o, focinho, sendo um cão, nos joelhos
e está cheia de sarna, de infância e de medo.
Abandona-me o que vejo
e fica em mim represo.
Fui
o que não pensei ter sido. Sei que os dias
se abraçam comigo.
Tive o amor e a beleza.
Por isso,
agora,
passo a mão humildemente sobre o pêlo do cachorro,
quase a pedir
ao escorraçado,
ao esquecido,
que se aconchegue aos meus pés
e aqui
fique.
Esta metafísica domesticada
fala baixinho e devagar. O verso sincopado é o seu respiro, cheio
de ênfases lacônicas ? pausas ? ditadas por um sentimento do
mundo como que destilado. Pois se essa poesia, intimista por vocação,
não comenta o mundo de maneira abrangente, não é por
estreiteza de registro moral:
Existe o rio.
Existe o campo. Existem
papoulas e um céu que era cedo.
Existem o não, e a páscoa, e a noite obesa,
e o ócio furioso. O iluminado
gosto de febre e de ferida existe.
Existem o eterno e a sombra
de um céu fosco e deserto
sobre o quando o esquecemos.
“Emoção recolhida
em tranqüilidade”... Ainda há poesia que não se envergonha
do lirismo ? mas que nem por isso faz dele um a priori postiço,
mascarando a crueza e, em última análise, a própria
beleza da realidade nossa de cada dia. |