I.
SE NÃO FOI ASSIM
No
princípio de todos os princípios, Deus fez o homem do pó da
terra, que era negro. E o homem saído das mãos de Deus estava
ereto, imóvel, silente, negro.
O
homem estava ereto, imóvel, silente, negro. Nem andava, nem via,
nem ouvia, nem falava.
Deus
disse: Anda. E o homem se moveu na terra de um lado para outro,
diante de Deus.
Deus
disse: Vê. E os olhos do homem brilharam. Ele viu todas as coisas,
e viu a Deus, que o tinha criado.
Deus
disse: Ouve. E o homem ouviu a voz de Deus. As palavras, os gritos,
os sons, e os ruídos, começaram a ser para o homem.
Deus
disse: Fala. E o homem falou, deu graças a Deus.
O
homem era negro. Deus o tomou pela mão, e o levou ao lado do Paraíso,
e o banhou nas águas claras. E o homem ficou branco.
Então
fez Deus a mulher de uma aura da manhã ligeira e fresca, e a deu
por companheira ao homem. O primeiro homem e a primeira mulher, no
princípio de todos os princípios.
O
Diabo estava de parte, e contemplava o trabalho de Deus. O Diabo
pensou: Eu posso fazer a mesma coisa.
Do
pó da terra, que era negro, o Diabo também fez um homem, e lhe
soprou o espírito da vida.
O
homem saído das mãos do Diabo era semelhante ao outro criado por
Deus. E andava, e via, e ouvia, e falava.
Logo
o Diabo o tomou pela mão, e o levou ao lago do Paraíso, para banhá-lo
nas águas claras. Mas, quando chegava com a sua criatura, as águas
fugiram para longe.
O
Diabo espantou-se do que via, e duas, três, muitas vezes, as águas
fugiram para longe.
O
Diabo raivou do que via, e o homem, tocado por um pontapé, mal pôde
ater-se nas palmas e nas plantas à margem de onde as águas tinham
fugido.
O
homem se ateve nas palmas e nas plantas, e as palmas e as plantas do
homem branquejaram por ter pousado na areia úmida.
O
Diabo, raivoso, repôs de pé a sua criatura, e lhe mirou a face
espavorida. E, ao mirar-lhe a face espavorida, o Diabo deu-lhe um
murro em cima do nariz, que ficou achatado.
Ora,
o homem chorou, e o Diabo turbou-se por vê-lo chorar. E com a mão
espalmada afagou-lhe a cabeça para acalentá-lo.
A mão do Diabo ardia, fremente ainda, e os cabelos do
homem se torceram, e se encresparam todos.
Estava
o corvo perto, e o Diabo tomou-lhe as penas mais luzidias, mais
finas. Das penas finas do corvo o Diabo fez a mulher, que deu por
companheira ao homem, para consolá-lo,. E servi-lo.
Assim
foi no princípio de todos os princípios, quando o Diabo
contrastava o trabalho de Deus. Assim houve sempre homens brancos e
homens negros.
II.
FOI TALVEZ ASSIM
No
princípio de todos os princípios, Deus fez o céu, com o Sol, e a
Lua, e as estrelas, e debaixo do céu fez o ar, e a terra, e as águas.
Viu
Deus que isso não era tudo, e fez as nuvens, as plantas e os
animais, as pedras brilhantes e as mais coisas, no ar, na terra, e
nas águas.
Viu
Deus que isso não era tudo, e de seu sopro fez o homem e a mulher.
O primeiro homem e a primeira mulher, no princípio de todos os
princípios. E ambos eram alvos, limpos como o pensamento de Deus.
Viu
Deus que isso era tudo, e mandou que o homem levantasse a casa. E o
homem levantou a casa, e cobriu-a com folhas de palmeira.
A
casa tinhas três partes: a da frente, para estar e conversar; a do
meio, que era a camarinha, para dormir; e a de trás, que era a
cozinha.
Na
frente da casa havia a porta de entrar e sair. Deus disse ao homem:
Da porta para fora, tu mandarás sobre tudo; mas da porta para
dentro há-de mandar a mulher.
Deus
disse, e foi-se embora. A mulher e o homem ficaram contentes.
Tempo
passou. Entre a nona e a décima lua, a mulher teve um menino.
Ora,
ela e o homem se assustaram muito porque o menino era negro, negro.
Tempo
passou. A mulher teve ainda uma menina, e depois um menino, e depois
uma menina. E todos eram negros.
O
homem dizia tranqüilo: Deus sabe. Mas a mulher não estava contente
porque se pejava da cor dos filhos. Tempo passou, tempo passou. Os
menininhos e as menininhas foram crescendo, crescendo, até que um
dia veio Deus passear na terra, e lembrou-lhe visitar a casa do
homem.
O
homem andava no mato: foi a mulher quem sentiu que Deus ia chegar. E
ela correu-se por seu respeito, e escondeu os filhos na camarinha.
Deus
perguntou: Onde está o homem? A mulher disse: Está no mato. Deus
perguntou: Onde estão os filhos? A mulher disse: Estão na
camarinha.
Deus
mandou-lhe que fosse buscar os meninos. A mulher inclinou-se, mas
pensava que meninos negros não haviam de agradar a Deus.
Por
causa da vergonha, a mulher trouxe os dois filhos menores, deixando
aos outros escondidos.
Deus
perguntou: Somente dois filhos? A mulher respondeu: Somente dois,
este menino e esta menina, que eu vou lavá-los na fonte.
Deus
levou os menininhos pela mão, e os lavou na fonte. E ambos ficaram
alvos como a neve da montanha.
Ao
ver os dois filhos brancos, brancos, a mulher sentiu maior vergonha
porque tinha mentido a Deus. E Deus foi-se embora, sem prometer
voltar.
Assim
foi no princípio de todos os princípios. E dos filhos do primeiro
homem e da primeira mulher nasceram gentes brancas e gentes negras.
III.
VISLUMBRES
Ser negro – é ser Negro para o Branco.
O
Branco se vê sempre a si mesmo, o Negro nunca.
–
Negro, não te enxergas?
Os
Negros em companhia se divertem todo o tempo a tratar de coisas inúteis
– como os Brancos. As coisas inúteis são o sal da vida.
Riso
de Branco, risada de Negro.
Um
Negro a rir: um corpo inteiro que ri.
Um
Negro é um Negro. Uma Negra é uma mulher.
Todo
Negro é mais negro que uma Negra.
Muita
cantiga diz: minha Nêga.
Dizer:
Negra – é separar, marcar distância. Dizer: Nêga – é
exprimir sentimento de aproximação e ternura. Minha Nêga: voz íntima,
cariciosa, amante. Foi um Branco o primeiro a dizer: Minha Nêga!
Toda
raça vencida por outra, e batida, e pisada, e esmagada sob o seu
jugo, ainda subsiste femininamente. A vida é essencialmente fêmea.
Negra
amorosa não cede: dá-se
No
Branco amoroso de uma Negra, a alma é cega às distinções claras.
O amor se torna para ele uma delícia noturna.
Enleado
com a bela Negra, o Branco não se perturba tanto ao gosto que ela
lhe dá quanto ao temor de parecer que se trai.
Quando
o Branco, macho orgulhoso, conquista as boas graças de uma Negra, são
as graças da Negra que o conquistam.
Amores
de Branco e Negra, simples amores: orgulho que se anula numa efusão
comovida e passiva, dualidade que se dissolve em unidade, o Sexo que
ri das adições e subtrações do Pensamento.
Amores
de Branco e Negra ardem súbitos, e fáceis… Para uma hora como se
foram para a vida inteira. Ao romper-se o encanto, o homem guarda a
nostalgia de estranho país onde a alma se perdeu no mistério da
noite, da escura noite cheia de emanações tórpidas, quentes,
alucinantes…
Mulato,
filho de Branco e Negra: síntese de um duplo que aspirou à
unidade.
IV.
MATITA
A
porta da Casa Grande, o cavalo selado, e o pagem, à espera. Na
sala, Senhor Moço levantou-se para partir:
– Sua bênção, Senhor Pai.
Senhor Baltazar já lhe dera dobrões de ouro para a viagem.
Deu-lhe agora a bênção, e deu lembranças para oompadre Marquês,
que morava na Cidade.
– Sua bênção, Senhora Mãe.
Dona Maria Adelaide chorou:
– Feliz, filho meu! Sê muito feliz!
Atrás os Negros de cada, à frente Dona Maria Adelaide e
Senhor Baltazar, ficaram-se todos no terreiro a acompanhar com os
olhos o cavaleiro que partia. Ficaram-se todos aguardá-lo, atentos,
até que ele desapareceu, longe, com o seu pagem. Somente Matita
esteve todo o tempo de olhos baixos – para não ver.
Meses adiante, Dona Maria Adelaide começou a estranhar as
maneiras de sua mucama:
– Que tens, Matita?
– Nada, não, Senhora.
Outra vez, a mesma impressão. Pareciam-lhe fatigados os
gestos da escrava predileta:
– Estás doente, Matita?
– Senhora, não!
Outro dia, viu-lhe os olhos chorosos:
– Estás a chorar, Matita?
– Senhora, não!
Reparou-lhe mais na cintura larga, nos peitos maiores, no círculo
escuro à roda dos olhos. Sentiu Dona Maria Adelaide uma pancada no
coração:
– Matita! Quem te fez mal?!…
Matita baixou os olhos. Inerme, suave, dolorosa. Depois
cobriu subitamente o rosto com as mãos, abalada por grande choro:
– Ai! Sinhá!…
E baixinho, baixinho:
– Fui eu mesma que me fiz mal com Senhor Moço!
V.
PAI JOÃO
Como te chamas, Negro velho?
– Nome esquecido, Nhonhô.
Quantos
anos tens?
–
Perdeu-se a conta, Nhonhô.
Todos
dizem: Pai João. Todos chamam: Pai João. E sabem todos que Pai João
está velhinho, velhinho! Ficaram-lhe a ele as pernas duras e
pesadas… Já lhe custa arrastá-las. E a vista muito curta… Mal
enxerga onde pisa. E o ouvido muito longe… Mal alcança o que lhe
dizem.
Em
outro tempo, outra coisa.
Em
outro tempo, era o pagem de Sinhá Moça!
Em
outro tempo, as mucamas brincavam:
–
Negrinho pachola!
As
mucamas suspiravam. E o Negrinho como senão fosse com ele! Como se
nem ouvisse nem soubesse as palavras e os suspiros das mucamas!
Um
dia, Sinhá Moça casou com o primo da Cidade – e partiu sem
pagem. Para ele, a vida mudou completamente. Já de vê-lo sempre
distraído, Senhor Velho disse ao feitor:
–
Leva este Negro para o eito!
O
feitor tinha um chicote. As costas do Negro sentiram muitas vezes
como ardia a ponta aberta do açoite. E o feitor bradava:
–
Ah! Negro ruim!
Não
só chicotadas. O Negro soube também o que era ficar no tronco –
para exemplo. Um dia, afinal, vendido. Teve outro senhor, mais
outro, muitos outros.
–
A boi que emperra, a Negro que falta – ou mata-se o boi, ou
vende-se o Negro.
Andaram
depois com ele os anos até não servir mais para ser vendido. Seu
último dono, senhor de bom coração, mandou riscar-lhe o nome da
lista dos escravos:
–
Deixem Pai João no seu canto – para morrer.
Ainda
assim Pai João vai vivendo. Todo encoscorado, todo curvo, o cabelo
todo branco. Tardo abobado, sem lembrança.
Sem
lembrança? As Negras se divertem a ouvi-lo. As negras riem, riem
loucamente, quando Pai João lhes conta que foi pagem de uma Sinhá
Moça como nenhuma outra existiu neste mundo. As Negras se
desmancham de rir:
–
Que fez ela, Pai João?
Pai
João se anima. E diz que uma vez, as mucamas ausentes, Sinhá Moça
estava deitada na preguiçosa… Sinhá Moça lia um livro… E,
enquanto lia, Sinhá Moça mandou que o seu pagem lhe calçasse as
meias compridas!
VI.
EXPERIÊNCIA
A
Casa Grande recebia convivas alegres. Eram todos os parentes do
Engenho Novo, chegados à tarde, que iam ficar até o dia seguinte.
Tia Augusta e as primas afagavam, beijavam Juquinha. As primas
diziam:
– Como Juquinha cresceu!
– Como Juquinha é bonito!
– Só tem ele três anos? Já parece que tem quatro!
Mamãe sorria, mas pensava noutra coisa. Mamãe
pensava:
– Como hei-de acomodar esta noite a gente do Engenho
Novo? Onde arranjar camas para todos?
Mamãe fez o possível. Botou até a cama de Juquinha
para a caçula de Tia Augusta… E o Juquinha? Mamãe chamou a sua
mucama de estimação, que dormia no pequeno quarto azul:
– Maria, toma conta de Juquinha. Prepara a tua cama
para ele, e põe-lhe ao pé um colchão onde te deites. É só por
hoje, não faz mal.
As primas e os primos se divertiam. Toda a Casa Grande
ressoava de risos e vozes alegres. E, depois do jantar, dançou-se
no vasto salão, onde havia o retrato do Imperador…
Viu Juquinha somente o começo da festa. Mamãe dizia
que as crianças dormem cedo:
– Maria, vai deitar Juquinha.
Mamãe fez muitas promessas, porque Juquinha se
recusava. Afinal, meio convencido, meio triste, lá se foi contra
vontade pela mão da mucama.
Nova revolta, em seguida, no quarto. A princípio, não
queria admitir que ali passaria a noite. Ao apagar-se a candeia, não
queria dormir no escuro:
– Maria, acenda a luz!
– O pavio acabou-se, Juquinha… Agora a gente vai
dormir…
Sobre o colchão, Maria em camisa. Na cama, Juquinha
fechava bem os olhos para não ver a treva excessiva, misteriosa,
ameaçadora.
– Maria, eu tenho medo!
Do colchão, ao pé da cama, subiu a voz de Maria:
– Estou aqui, meu bem.
Estendendo o braço, a mucama atingiu-lhe a cabeça,
acariciou-lhe os cabelos. Juquinha sentiu-se aliviado; e, mal tentou
ela retirar a mão, pediu:
– Maria, venha aqui!
Um momento Maria deixou-se imóvel, sem responder.
Soergueu-se, porém, de manso:
– Que é, meu bem? Quer ver a Maria?
– Quero!
Maria deitou-se na cama, cingindo o menino ao peito:
– Ainda tem medo, meu bem?
– Agora está bom! declarou Juquinha, aconchegado ao
corpo da mucama.
No outro dia a festa continuou na Casa Grande, até a
tarde, quando os parentes do Engenho Novo se foram embora. E
Juquinha os viu partir, apreensivo.
À noite, Mamãe percebeu-lhe o ar inquieto:
– Vem dormir, filhinho.
No quarto de paredes claras, o seu quarto, que se
abria para o grande aposento de Mamãe, Juquinha não queria
deitar-se. Por fim bradou súbito, sentido, exigente, choroso:
– Eu quero ir para a cama da Maria!
VII.
JUSTIÇA
Antes, antes do Sol nado, Senhor Moço chamou o escravo Haussá,
que dormia fora da senzala, e mandou-lhe que trouxesse cavalo
selado.
Andava inquieto o escravo Haussá. Mais inquieto,
agora, a si mesmo perguntava aonde ia tão cedo o seu amo e dono.
Senhor Moço tinha a pistola à cintura. Mal se pôs
na sela, disse ao escravo Haussá que tomasse uma pá e uma enxada;
e ordenou-lhe que marchasse à frente.
Mais de uma hora o escravo Haussá marchou à frente;
atrás, Senhor Moço regulava o passo de seu cavalo.
Entraram, depois, na brenha espessa. Entraram,
seguiram fora de caminhos, pelo mato a dentro… E longe, muito
longe, no meio do mato, onde não dava a luz da manhã, Senhor Moço
fez alto – e mandou que o escravo Haussá cavasse aterra.
O escravo Haussá tinha a enxada, e pôs-se a cavar a
terra, sem perguntar por que cavava.
Cavou muito tempo. Enquanto o buraco se fazia fundo, o
escravo Haussá nem cuidava nem queria saber por que Senhor Moço
tinha a pistola na mão.
De nada queria saber o escravo Haussá. Cavava,
cavava, e frio suor molhava-lhe a testa.
Foi quando o buraco ficou muito fundo que Senhor Moço
falou. Então Senhor Moço disse, com voz arrogante:
– Negro! Sabes que se vai enterra nesta cova?
O escravo Haussá já sabia, mas nada disse. Apoiado
ao cabo da enxada, ergueu a fronte para fitar os olhos nos olhos de
Senhor Moço.
– Negro! Sabes quem vai morrer?
O escravo Haussá bem sabia, mas nada disse. Somente
os olhos olhavam alto os olhos de Senhor Moço.
– Negro! Pede perdão a Deus.
Os lábios do escravo Haussá ficaram cerrados, os
olhos imóveis. Quando o tiro lhe varou o coração, ele ainda um
instante ficou na mesma atitude.
Somente um instante o escravo Haussá ficou na mesma
atitude: a cabeça pendeu para o peito, o corpo rolou na terra
aberta.
Senhor Moço fechou a cova, onde deixava guardado o
segredo da sua honra. Fechou-a com vagar e cuidado, e tornou à Casa
Grande.
Ninguém o vira sair, ninguém o viu quando chegava.
Mas onde o escravo Haussá? Já os Negros segredavam contentes que o
escravo Haussá tinha fugido!
No outro dia, tratava-se de outra coisa. No outro dia,
Sinhá Dona, a mãe de Senhor Moço, partia em grande liteira para a
Cidade, com sua filha, Dona Branca i! dona Branca! Ia entrar para o
Convento! E as mucamas choravam:
Ai! ai! Vai-se embora Sinhazinha, que ninguém mais há-de
ver!
As mucamas choravam. E, desde aí, nunca mais na Casa
Grande houve escravos da Nação Haussá, esses Negros infames, que
entendem querer e fazer – como se fossem Brancos!
VIII.
O BANHO
Eram três as moças do Engenho. Eram três! Cada qual mais
branca, mais alegre, mais bonita.
As moças do Engenho e suas mucamas eram seis. Eram
seis! E riam ao mesmo tempo, todo o tempo Todo o tempo!
Qualquer
das moças do Engenho tratava a sua mucama como igual. Como igual! E
a mucama lhe chamava: Sinhazinha… Sinhazinha!
Ao
claro Sol, de manhã, as moças do Engenho e as mucamas iam tomar
banho no rio, perto da ingazeira, onde os homens não passavam…
Ah! Não passavam!
As
moças do Engenho – tão brancas! e as mucamas – escurinhas,
luzidias! entravam na água nuas Todas nuas!
Mais
de uma hora lá ficavam, dentro da água, e qual ria, qual saltava,
qual nadava, ou de uma vez todas seis.
Jamais
pensavam – ou pensavam? – que olhos alheios as vissem Ah! Os
olhos de quem as visse!
Certo
dia, dentro da água, perceberam por acaso, na moita, ao pé da
ingazeira, invisa suspeita forma, à espreita.
Logo
as moças e as mucamas, dentro da água, se abaixaram, se
entreolharam, curiosas. Se não, talvez, receosas!
Seis
cabeças à flor da água fitavam doze olhos atentos na moita, no pé
da ingazeira, onde os ramos buliam… Ah! Buliam!
De
repente foi um grito que se formou de seis gritos: eram as moças e
as mucamas que viam entrar na água o tourinho Palhano, de três
anos.
Sem
mais cuidar nem pensar, as moças do Engenho – tão brancas! e as
mucamas – escurinhas, luzidias! se escaparam da água nuas…
Todas nuas!
Ao
claro Sol, de manhã, todas seis – todas seis! Qual mais prestes,
qual mais lestes, qual mais nua, correram pelo campo fora, para bem
longe… Para onde estavam os homens!
IX.
O SENHOR POBRE
Quando nasceu Senhor Quinquim, havia em casa tanto ouro que
dava para comprar a Lua, contanto que a Lua fora coisa que se
comprasse. E escravos, escravos, escravos! Passandoem menino nos braços
da ama, toda a gente dizia:
– Ali vai o Menino de Ouro!
Mas
quem o viu e quem o vê! Os fados desmandam com o tempo, e tudo se
perde. Hoje o mundo aparece mudado a Senhor Quinquim. Como se lho
tivessem trocado por outro mundo! E a ele os cabelos já lhe estão
a fazer-se grisalhos, as duas filhas já lhe andam nos 16 e 17 anos,
e a sua Sinhá começa amostrar-se reversa. Da riqueza, que era
tamanha, restam algumas jóias, algumas pelas antigas, pouco e pouco
vendidas para suprir necessidades. Da escravaria sem conto, ficou
somente Laurina, que todos dizem Dadá.
Às
vezes Sinhá murmura, a modo de consolação:
– Ainda bem que temos Dadá. Que seria desta casa
sem Dadá?
Acertam as filhas na mesma segurança:
– Dadá é da família! não é, Papai?
Senhor Quinquim passa os dias com seus pensamentos.
Silêncio e meditação sem revolta. Que medita? Ninguém lho
pergunta, e seus gestos se perdem na aquiescência dócil – na
branda, passiva aquiescência. De tempo a tempo, consulta-o Sinhá
sobre a venda de alguma coisa: adorno de uso passado, objeto lavrado
a cinzel, resíduo vário do antigo tesouro de casa. Consulta
formal, ou jeito de avivar a lembrança, porque a venda se fará de
qualquer modo. O próprio Senhor Quinquim manda vir da Cidade, que
está perto, o mercador de metais finos, sempre o mesmo velho de
unhas encardidas, nariz recurvo e pequeninos olhos ávidos, que lhe
explora a discreta brandura, depois de jurar-lhe mil vezes que essas
coisas velhas não têm grande preço. E feita a venda, Senhor
Quinquim foi quem perdeu. Negócio de pobre. Não é ele o Senhor
Pobre? Uma vez, na Cidade, bem ouvira a um que não cuidava ser
ouvido:
– Este senhor de três mil escravos ficou senhor
apenas de uma Negra, o mais pobre dos senhores. É por isso que o
povo lhe chama o Senhor Pobre.
Senhor Quinquim bem o sabe. Agora vendeu justamente a
melhor peça antiga da família, a mais estimada, que pensava
guardar para o primeiro neto, se Deus lho desse algum dia. E diz
vencido:
– Está tudo acabado! Nada mais de bom para vender!
Sinhá replica:
– Salvo Dadá. É a melhor peça que nos resta.
Entram as filhas, e entra com elas o tumulto. Não os
ouviram ambas? Grita logo a mais menina:
– Como é isso?! Vender Dadá?! Está Mamãe
pensando em vender Dadá?! Oh! coisa horrível!… Eu não quero! Não
quero! Não quero!…
No mesmo tom grita a outra:
– Será possível, meu Paizinho?! Não! não! não!
Pai de minha alma, não deixe Mamãe fazer semelhante coisa!…
– Calem-se, filhas! – brada a mãe. Calem-se!
Calem-se pelo amor de Deus! Não me queiram tomar em palavras!…
E, porque choram as filhas, mais a mãe clama, e
Senhor Quinquim já se apavora do escarcéu que não lhe deixa
dissipar a exaltação gerada no engano. Eis porém a mesma Dadá,
que surge à porta, como que trazida pelo rumor da discórdia. Sendo
a primeira a divisar-lhe de longe o belo sorriso interrogativo,
brando e pacificador, é Sinhá quem chama:
– Ó Dadá, chegas a tempo! Faze-me o favor de
acalmar estas meninas!
– Dadá! Dadá! Minha Dadazinha! – grita a caçula.
– Mãe Dadá! Mãe Dadá! –grita a outra.
Arfantes ainda, lançam-se as duas nos braços da ama.
E Dadá, risonha, consoladora:
– Que é isto, minhas meninas?! Por que chorar? Por
que chorar? Ora esta! Não há nada! nada!
Certamente não há nada. as meninas voltam a rir. Dadá
ri às duas, ri a todos.
Agora Senhor Quinquim dá em fazer-se mais silencioso
e meditativo, ao passo que Sinhá se deixa mais tempo a seu lado,
como se fora preciso assistir-lhe, falar-lhe com mais constância.
Uma diversão, por fim, sobrevem. Sinhá presente,
Senhor Quinquim recebe em visita a Manuel Henriques, o filho do Brás
Sapateiro, do velho Brás Galego, já defunto. É o mesmo Manuel
Henriques, que há muito se partira da terra, moço e pobre, e
tornou agora para matar saudades, e mostrar a todos que se fez homem
rico nas Alagoas. Visita de negócio. Conversação de negócio. A
Casa Grande hipotecada, onerosa, improdutiva, cairá talvez um dia
às mãos dos credores. O reverente Henriques, o gordo Henriques
jovial, explica o seu intento:
– Vossa Mercê, Senhor Quinquim, bem podia vender-me
esta Casa Grande, que nada mais lhe produz. Para mim, a falar
verdade, não há interesse de ganho, mas o gosto de possuir alguma
coisa na terra onde nasci. Digo-lhe até, se ma vende Vossa Mercê,
que essa venda não significa mudança imediata… Bem preciso eu
ficar ainda algum tempo nas Alagoas, e podíamos ajustar o negócio
de maneira que Vossa Mercê continuasse ocupando a casa com o sítio,
durante certo prazo…
Senhor Quinquim procura ler os olhos de Sinhá. A
proposta é repetida, explicada, esmiuçada. As palavras do
comprador se renovam. Qual verdadeiramente o prazo por que poderia
Senhor Quinquim permanecer na Casa Grande? Henriques diz primeiro
que talvez um ano, mas Sinhá objeta peremptoriamente que maior é o
prazo da hipoteca. Então fala o ricaço em dois anos, enquanto Sinhá
pretende que não pode ser menos que cinco anos. Como está decidido
a pagar a vaidade de possuir o velho domínio, ainda que reduzido de
muitas terras, cujo passado esplendor lhe enchera outrora a imaginação
de menino pobre, Manuel Henriques pede que se ponha de parte a questão
do prazo, para ser resolvida ao fim de tudo. Haverá primeiro que
decidir o preço. Sinhá entende que toda proposta terá que cobrir
a hipoteca, e deixar meios a Senhor Quinquim para recompor sua vida.
As conversações fazem-se demoradas. As visitas do comprador se
tornam mais freqüentes. De certo Henriques já mediu e pesou todos
os prós e contras do negócio, e viu que as dificuldades de Senhor
Quinquim são maiores do que tinha imaginado. Toda a dúvida vem do
que pode acaso a vontade de Sinhá. E é como quem fizesse transação
difícil que ele apresenta, afinal, os termos de sua proposta:
– Ouça-me por favor, Senhor Quinquim. Se Vossa Mercê
e ali a Senhora Dona querem acabar comigo este negócio, eu lhes
pago cem contos pela Casa Grande hipotecada como está, e lhe deixo
o usufruto dela pelo prazo de três anos…
Brilham furtivamente os olhos de Sinhá.
Afigura-se-lhe que a venda está feita, e que se irá um dia com o
marido e as filhas para a Cidade. Mas Henriques ainda fala:
– Há outra coisa. Eu deixei nas Alagoas a mulher e
uma filha de três anos. Quando de lá parti, muito me recomendou a
senhora que lhe leve de cá uma escrava de qualidade para ama da
menina. Este assunto me tem ocupado dês que cheguei à nossa terra,
e de tudo o que tenho visto, e ouvido, já tirei a segurança de que
só irei bem servido se Vossas Mercês consentirem vender-me a
escrava Dadá. Pago-lhes por ela dois contos, que é preço dobrado,
e um negócio tem de concluir-se juntamente com o outro.
Tudo parece desfeito. Senhor Quinquim e Sinhá quase
consideram a Segunda proposta um desaforo. Exigir que lhe vendam a
ama das filhas! Nada podia ser mais chocante. No entanto o gordo
Henriques não se dá por vencido:
– Negócio é negócio: faz-se ou não se faz. Neste
caso são Vossas Mercês quem decide. E, agora, eu me vou até a
Cidade. Antes, porém, quero dizer-lhes que ainda me fico todo este
mês, porque mandei fazer um túmulo de pedra no cemitério do Bem
Grande, onde me descansem os ossos dos velhos pais, que lá se acham
sob duas cruzes de pau. Se acaso Vossas Mercês quiserem
reconsiderar o trato que tivemos hoje, é só mandarem uma palavra
à Cidade, e eu cá tornarei. Está claro que as condições são as
que digo.
– Sem a escrava?
– Senhor, não. Eu digo com a escrava.
Sinhá e Senhor Quinquim a sós. Silêncio. Silêncio!
Afinal, Senhor Quinquim:
– Melhor fora não lhe ter dado ouvidos.
Silêncio. Silêncio! Afinal, Sinhá:
– Como aprendeu a falar o filho do sapateiro! Bem
sentiu que este negócio há-de fazer-se algum dia…
Olhar estranho, incerto, inquieto. É Senhor Quinquim
o que olha desta maneira, como quem pergunta pelo que mais sabe e
receia. Pesa maior o silêncio – obscuro, inquietante. Três vezes
Sinhá deixa a sua cadeira, divaga pela vasta sala, braços cruzados
e olhos baixos. Três vezes se detém diante do marido, sem dizer
palavra. Também três vezes Senhor Quinquim se teme do que há-de
ser.
Por fim, desesperada, silva no ar a voz da Senhora:
– Que há-de ser, Senhor Quinquim? Faz-se ou não se
faz este negócio?…
quem responderá? Quem pode responder? Será Senhor
Quinquim? Será ele o que quer e decide? Mas subitamente, lá fora,
na varanda, soam risadas felizes – e ambos, Senhor Quinquim e Sinhá,
se encolhem, trêmulos, aterrados, ansiosos por escapar a um negro,
infiel pensamento. São as filhas que riem lá fora, e é Dadá quem
as faz alegres. Dadá! Dadá!
Volta mais torvo o silêncio, enquanto Sinhá e Senhor
Quinquim parecem contritos, isolados, separados, na vasta sala, um
sem o outro, e perdidos de todos. E nada ousa nem um nem outro,
antes inertes se deixam levar soltamente em um remoinho de imagens
confusas, no remoinho das inumeráveis e diferentes imagens que os
salteiam: imagens do presente e do passado, que os tornam sem
vontade. Mais talvez que o sentimento, punge-os aos dois o sentido
de uma força exterior, coerciva, que os tivesse desde sempre
condenado a irremissíveis penas, e que ora os precipita na miséria
de escura desolação. E parece-lhes que não podem eles nem ninguém
poderá jamais subtrair-se à fatalidade, que nos move a todos pela
mesma sombra eterna, onde acaso o destino traçou por antecipação
os nossos caminhos sem desvios…
Não!
Não? Quem diz não? É Sinhá. É Sinhá quem o
pensa, e o diz a si mesma. É Sinhá, que se lança de pé, resoluta
e severa, e passa voluntariosa pela frente de Senhor Quinquim, e
marcha através da vasta sala, e vai perder-se ao fundo, na larga
porta, que lhe dá passagem para a realização de ato impreteríveis.
Na vasta sala, o tempo se confunde com o silêncio.
Senhor Quinquim sabe que já aconteceu o que há-de acontecer, e
fecha os olhos para esconder-se de si mesmo, da própria consciência,
que vê mais claro quando os olhos estão abertos. E as horas já não
passam… Não passam; antes se imobilizam, subdivididas e
multiplicadas como se cada instante fora por sua vez uma hora, e se
erguem no pensamento, por trás dos olhos fechados, impositivas e
presentes. São todas as suas horas, todas as horas vividas, que
Senhor Quinquim vê diante de si, formas etéreas, indefiníveis,
quais se feitas da leve substância dessas névoas que flutuam no
cimo das serranias. Não as vê dispostas em ordem como passaram na
duração dos dias sucessivos, porém confundidas, caóticas, mais
próximas as que sabia mais distantes, e mais claras porventura as
que tinha por menos significativas, e todas a lhe darem, na própria
diversidade aparente, com a pura impressão de coisas sonhadas a
simultânea certeza de que, suas embora, são como se fossem
alheias, estranhas, incaracterísticas, absurdas, sem motivo. E das
pálpebras cerradas de Senhor Quinquim as lágrimas vão correndo,
suavemente, lentamente…
X.
ROUPA NA CORDA
Ernestina Lavadeira, Ernestina dos Braços Nus, prendeu na
corda a roupa enxaguada… Para bem corar ao Sol, para bem secar ao
Vento.
Vestidos claros, lençóis de linho, camisas de
cambraia, os panos finos das Donas, muito tempo ali ficaram
dependurados, imóveis…
Muito
tempo? Pouco tempo! O Sol e o Vento fizeram quanto esperava
Ernestina dos Braços Nus. Ao Vento e ao Sol a roupa, agora, está
branca, branca! e enxuta, enxuta!
Quem
passa à beira do rio vê um jogo fantástico na corda. O jogo do
Vento ao Sol O jogo do Vento que anima a roupa das Donas.
Cabeções
de renda, corpetes claros! Inflam-se, parecem viver… São como os
mesmos bustos que tantas vezes cingiram.
Mangas
compridas de camisas de dormir! Agitam-se, agitam-se… Como alvos
braços que querem abraçar.
Largos
lençóis, alvos lençóis de linho! Elevam-se, estendem-se em plano
horizontal… Como leitos oferecidos e desertos.
Quando
vier buscar a roupa, Ernestina dos Braços Nus, Negra Ernestina dos
Olhos Redondos, não saberá o que viu o Sol e o que fez o Vento.
De
nada saberás, Ernestina Lavadeira. Nem ao menos saberás que umas
calças de mulher, as calças de Sinhazinha, coraram pegadas aos calções
de montar de Primo Lulu!
XI.
ALMA PENADA
O
senhor do Retiro morria, e os Negros duvidavam:
– Verdade?
Era
verdade. A notícia, levada à cozinha pelas mucamas, chegava à
casa do engenho, espalhava-se nos eitos, fazia-se de todos, estranha
mensagem a correr em voz baixa de escravo a escravo.
–
Verdade?
–
Verdade!
Mandou
logo Sinhá Dona que cessasse o trabalho no engenho por que nenhum
rumor viesse à Casa Grande, onde se andava nas pontas dos pés; e
duas vezes Belisa saiu a levar uma bacia cheia de sangue negro, de
coisas ascosas, que o Senhor lançara pela boca, e foi deitá-la bem
longe, ao fundo dos barreiros.
–
O Homem está apodrecendo! dizia a mensagem soprada de escravo a
escravo.
–
Verdade?
–
Verdade!
À
noite a morte veio: justamente à meia noite, que é hora de
assombros. E no mesmo instante toda a senzala, onde os Negros
cismavam sem sono, recebia misteriosamente a certeza desejada:
–
Acabou-se o Homem!
–
Verdade?
–
Verdade!
Suspiros
de alívio dos Negros. Ficava-lhes apenas o receio que a noite e a
morte, presença dupla, lhes metiam na alma… Era um senhor tão
mau! Todos fugiam de vê-lo. Fazia medo o seu olhar… Ainda agora a
simples lembrança fazia tremer. Alto, grosso de corpo, olhos azuis
meio sumidos que entravam na gente como duas pontas, e um carão
vermelho, duro, que parecia de pedra. Oh! Como era mau! E pior ainda
quando ria… Que modo de rir! Era um riso que mostrava os dentes
arreganhados como os de cão que rosna… Ria assim quando dizia ao
feitor:
–
Mete este Negro na fornalha!
Nem
um só, nem dois. Muito Negro tinha morrido, por seu mandado, em
cima das grelhas ardentes. Nos mais engenhos falavam:
–
O Senhor do Retiro queima Negro na fornalha!
Era
rico e poderoso, o Senhor do Retiro. Que lhe importava o falar
alheio? No quarto de dormir tinha grandes arcas cheias de ouro e
prata: somente o seu orgulho era maior que toda a riqueza. Por
mandar queimar um Negro, mal se sentia da censura silenciosas de
Sinhá Dona; e porque julgava absurdas as fraquezas de mulher,
costumava dizer, ao feitor, por exemplo, de maneira que ela ouvisse:
–
Não há prejuízo onde fica o exemplo. Demais, era um Negro ordinário
que não valia dois patacões!
Agora,
sim. Estava ele também morto. Bem morto! E os Negros respiravam,
aliviados.
Agora,
sim!
Um
mês inteiro, por ordens novas, houve trabalho somente nas plantações,
longe da casa do engenho, e proibiu-se ao feitor castigar os
escravos.
–
Sinhá Dona, Negro sem castigo não trabalha…
–
Mas não haja castigo, feitor, que mando eu!
Um
dia, afinal, como outrora, as moendas recomeçaram a moer,
encheram-se de novo as caldeiras de ferro. Como outrora, o foguista
meteu lenha na fornalha, ateou-lhe fogo… Uma acha, após outra; as
chamas cresciam, as pedras das grelhas se faziam vermelhas. Afeito
à sua tarefa, o Negro mal atentava no crepitar do braseiro. Só uma
vez, por acaso, espiou cuidoso a caverna ardente… Que viu lá
dentro? O foguista deu um salto para trás com gritos apavorados, e
aos outros, que acudiam, inquietos por vê-lo assim, apontava para a
fornalha, e gritava, convulsamente:
–
O Homem! O Homem está lá! Dentro do fogo!…
Ninguém
compreendia:
–
Que homem?!
–
Ele mesmo!… O Homem!…O Homem!… gritava o foguista, fora de si,
Ninguém
compreendia, mas era grande a estranheza de quantos o viam gritar, e
tremer.
Bernardino,
Negro velho, perguntou:
–
Onde está esse homem?!…
–
Eu bem vi!… Dentro do fogo!…
Duvidoso,
Bernardino balançou a cabeça:
–
Uma coisa destas!
Disse,
e avançou lentamente para a boca da fornalha. Os escravos em redor,
que já eram muitos, seguiam ao velho com os olhos, na suposição
aparente de que nada podia haver lá dentro, senão lenha abrasada.
Bernardino
curvou-se, e olhou.
–
Ui!… – foi o grito espantoso de Bernardino, que saltou para trás,
desfigurado; e todos, com ele e o foguista, correram,
atropeladamente, para longe da fornalha.
O
feitor, que chegava, clamou, inquieto à vista de tamanho tumulto.
–
Que é isso?! Que é isso?! – clamava o feitor.
Logo
todos se atiraram para o seu lado, como a pedir-lhe auxílio.
Falavam ao mesmo tempo. Mal podia o feitor entendê-los… Soube,
enfim, que o foguista e Bernardino tinham visto o corpo do Senhor do
Retiro dentro da fornalha!
Olhou-os
bem o feitor, e conheceu que estavam deveras amedrontados. Habituado
porém a duvidar do juízo dos Negros, dirigiu-se ele mesmo à boca
do fogo, e se deteve a divisar a lenha, que ardia lá dentro.
Voltou-se, depois, carrancudo, para o foguista:
–
Viste o Senhor no meio das brasas?
Aflito,
o escravo agitou a cabeça, afirmativamente.
–
Mentira de teus olhos! – gritou-lhe o feitor.
O
mesmo à Bernardino:
–
Dizes também que o viste? Mentira! mentira!
Os
Negros, incertos, não replicavam. Como poder convencê-los? O
feitor chamou um deles:
–
André, vem cá! Vem mostrar que tens a vista boa! Olha, como eu
olhei, para dentro da fornalha, e dize a esta gente que lá não há
nada…
André
obedeceu. Quando se aproximava, o feitor segurou-lhe o pulso, e o
fez curvar-se à boca do fogo. Mas o escravo olhou, e o mesmo
assombro o feriu:
–
Eu vi!… Eu vi!… – gritava André.
Tornou-se
enorme o pânico dos Negros. Já o feitor, perplexo, hesitava. E
mais uma vez se inclinou diante da caverna encendida, e ficou-se a
reparar no fogo, demoradamente, como se procurasse distinguir lá
dentro algum reflexo ilusório, que lhe explicasse o terror dos
escravos: via apenas as flamas, a lenha ardente sobre as grelhas
vermelhas.
–
Eu vejo o fogo! – disse o feitor, voltando-se para os Negros. Mas
aqui três homens pensam Ter visto o corpo do Senhor Silveira no
meio das brasas… Que aconteceu a esses homens? Nada, não é
verdade? Venham outros ver quem tem razão!
Aos
Negros pareceu a idéia justa. Mais confiantes, embora receosos,
consentiram fazer como o feitor dizia. E um, depois outro, a começar
pelos mais velhos, mal se punham diante do fogo, saltavam
precipitados, arregalando os olhos pávidos:
–
O Homem está lá!
Exasperou-se
o feitor:
–
Bando de poltrões!
A
esse momento vinha dos canaviais Negrinho Joel, o pagem do feitor,
que tinha doze anos. Na mente do feitor novo pensamento:
–
Silêncio! Mandou ele.
Os
escravos silenciaram, imóveis. E o feitor chamou:
–
Joel!
Negrinho
Joel acudiu correndo. Certo de os confundir a todos, o feitor pôs a
mão no ombro do pagem para falar-lhe em tom simples:
–
Olha aqui a boca da fornalha. Olha bem a ver se alguma coisa está lá
dentro.
O
pagem saltou lesto ao meio do ladrilhado raso, que resguardava a
boca do fogo, e ajoelhou para bem divisar a lenha acesa. Logo os
seus olhos se alargaram, e ele voltou a cara espantada para o
feitor:
–
Estou vendo!
–
Que estás a ver? – perguntou-lhe o feitor com voz tranqüila.
Negrinho
Joel, sempre de joelhos, olhou de novo, atentamente, o interior da
fornalha, e tornou a erguer os olhos para o feitor:
–
É o Senhor meu amo!
Profundo
murmúrio subiu do peito dos Negros. Uma voz temente pediu:
–
É bom apagar este fogo!
O
feitor fez um gesto:
–
Eu vou falar com Sinhá Dona.
O
fogo apagou-se por si mesmo. Nem nesse dia nem nunca mais se acendeu
a fornalha do Retiro. Da fábrica do engenho e casa senhorial resta
apenas a tapera, onde árvores não crescem.
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