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Américo Facó

POESIA COMPLETA
DE
AMÉRICO FACÓ

Organização e estudo introdutório
Floriano Martins

Sinfonia negra (1946)

PRIMEIRA PARTE

I. SE NÃO FOI ASSIM

 

No princípio de todos os princípios, Deus fez o homem do pó da terra, que era negro. E o homem saído das mãos de Deus estava ereto, imóvel, silente, negro.

O homem estava ereto, imóvel, silente, negro. Nem andava, nem via, nem ouvia, nem falava.

Deus disse: Anda. E o homem se moveu na terra de um lado para outro, diante de Deus.

Deus disse: Vê. E os olhos do homem brilharam. Ele viu todas as coisas, e viu a Deus, que o tinha criado.

Deus disse: Ouve. E o homem ouviu a voz de Deus. As palavras, os gritos, os sons, e os ruídos, começaram a ser para o homem.

Deus disse: Fala. E o homem falou, deu graças a Deus.

O homem era negro. Deus o tomou pela mão, e o levou ao lado do Paraíso, e o banhou nas águas claras. E o homem ficou branco.

Então fez Deus a mulher de uma aura da manhã ligeira e fresca, e a deu por companheira ao homem. O primeiro homem e a primeira mulher, no princípio de todos os princípios.

 

O Diabo estava de parte, e contemplava o trabalho de Deus. O Diabo pensou: Eu posso fazer a mesma coisa.

Do pó da terra, que era negro, o Diabo também fez um homem, e lhe soprou o espírito da vida.

O homem saído das mãos do Diabo era semelhante ao outro criado por Deus. E andava, e via, e ouvia, e falava.

Logo o Diabo o tomou pela mão, e o levou ao lago do Paraíso, para banhá-lo nas águas claras. Mas, quando chegava com a sua criatura, as águas fugiram para longe.

O Diabo espantou-se do que via, e duas, três, muitas vezes, as águas fugiram para longe.

O Diabo raivou do que via, e o homem, tocado por um pontapé, mal pôde ater-se nas palmas e nas plantas à margem de onde as águas tinham fugido.

O homem se ateve nas palmas e nas plantas, e as palmas e as plantas do homem branquejaram por ter pousado na areia úmida.

O Diabo, raivoso, repôs de pé a sua criatura, e lhe mirou a face espavorida. E, ao mirar-lhe a face espavorida, o Diabo deu-lhe um murro em cima do nariz, que ficou achatado.

Ora, o homem chorou, e o Diabo turbou-se por vê-lo chorar. E com a mão espalmada afagou-lhe a cabeça para acalentá-lo.

A mão do Diabo ardia, fremente ainda, e os cabelos do homem se torceram, e se encresparam todos.

Estava o corvo perto, e o Diabo tomou-lhe as penas mais luzidias, mais finas. Das penas finas do corvo o Diabo fez a mulher, que deu por companheira ao homem, para consolá-lo,. E servi-lo.

Assim foi no princípio de todos os princípios, quando o Diabo contrastava o trabalho de Deus. Assim houve sempre homens brancos e homens negros.

 

II. FOI TALVEZ ASSIM

 

No princípio de todos os princípios, Deus fez o céu, com o Sol, e a Lua, e as estrelas, e debaixo do céu fez o ar, e a terra, e as águas.

Viu Deus que isso não era tudo, e fez as nuvens, as plantas e os animais, as pedras brilhantes e as mais coisas, no ar, na terra, e nas águas.

Viu Deus que isso não era tudo, e de seu sopro fez o homem e a mulher. O primeiro homem e a primeira mulher, no princípio de todos os princípios. E ambos eram alvos, limpos como o pensamento de Deus.

Viu Deus que isso era tudo, e mandou que o homem levantasse a casa. E o homem levantou a casa, e cobriu-a com folhas de palmeira.

A casa tinhas três partes: a da frente, para estar e conversar; a do meio, que era a camarinha, para dormir; e a de trás, que era a cozinha.

Na frente da casa havia a porta de entrar e sair. Deus disse ao homem: Da porta para fora, tu mandarás sobre tudo; mas da porta para dentro há-de mandar a mulher.

Deus disse, e foi-se embora. A mulher e o homem ficaram contentes.

Tempo passou. Entre a nona e a décima lua, a mulher teve um menino.

Ora, ela e o homem se assustaram muito porque o menino era negro, negro.

Tempo passou. A mulher teve ainda uma menina, e depois um menino, e depois uma menina. E todos eram negros.

O homem dizia tranqüilo: Deus sabe. Mas a mulher não estava contente porque se pejava da cor dos filhos. Tempo passou, tempo passou. Os menininhos e as menininhas foram crescendo, crescendo, até que um dia veio Deus passear na terra, e lembrou-lhe visitar a casa do homem.

O homem andava no mato: foi a mulher quem sentiu que Deus ia chegar. E ela correu-se por seu respeito, e escondeu os filhos na camarinha.

Deus perguntou: Onde está o homem? A mulher disse: Está no mato. Deus perguntou: Onde estão os filhos? A mulher disse: Estão na camarinha.

Deus mandou-lhe que fosse buscar os meninos. A mulher inclinou-se, mas pensava que meninos negros não haviam de agradar a Deus.

Por causa da vergonha, a mulher trouxe os dois filhos menores, deixando aos outros escondidos.

Deus perguntou: Somente dois filhos? A mulher respondeu: Somente dois, este menino e esta menina, que eu vou lavá-los na fonte.

Deus levou os menininhos pela mão, e os lavou na fonte. E ambos ficaram alvos como a neve da montanha.

Ao ver os dois filhos brancos, brancos, a mulher sentiu maior vergonha porque tinha mentido a Deus. E Deus foi-se embora, sem prometer voltar.

Assim foi no princípio de todos os princípios. E dos filhos do primeiro homem e da primeira mulher nasceram gentes brancas e gentes negras.

 

III. VISLUMBRES

 

Ser negro – é ser Negro para o Branco.

 

O Branco se vê sempre a si mesmo, o Negro nunca.

– Negro, não te enxergas?

 

Os Negros em companhia se divertem todo o tempo a tratar de coisas inúteis – como os Brancos. As coisas inúteis são o sal da vida.

 

Riso de Branco, risada de Negro.

 

Um Negro a rir: um corpo inteiro que ri.

 

Um Negro é um Negro. Uma Negra é uma mulher.

 

Todo Negro é mais negro que uma Negra.

 

Muita cantiga diz: minha Nêga.

Dizer: Negra – é separar, marcar distância. Dizer: Nêga – é exprimir sentimento de aproximação e ternura. Minha Nêga: voz íntima, cariciosa, amante. Foi um Branco o primeiro a dizer: Minha Nêga!

 

Toda raça vencida por outra, e batida, e pisada, e esmagada sob o seu jugo, ainda subsiste femininamente. A vida é essencialmente fêmea.

 

Negra amorosa não cede: dá-se

 

No Branco amoroso de uma Negra, a alma é cega às distinções claras. O amor se torna para ele uma delícia noturna.

 

Enleado com a bela Negra, o Branco não se perturba tanto ao gosto que ela lhe dá quanto ao temor de parecer que se trai.

 

Quando o Branco, macho orgulhoso, conquista as boas graças de uma Negra, são as graças da Negra que o conquistam.

 

Amores de Branco e Negra, simples amores: orgulho que se anula numa efusão comovida e passiva, dualidade que se dissolve em unidade, o Sexo que ri das adições e subtrações do Pensamento.

 

Amores de Branco e Negra ardem súbitos, e fáceis… Para uma hora como se foram para a vida inteira. Ao romper-se o encanto, o homem guarda a nostalgia de estranho país onde a alma se perdeu no mistério da noite, da escura noite cheia de emanações tórpidas, quentes, alucinantes…

 

Mulato, filho de Branco e Negra: síntese de um duplo que aspirou à unidade.

 

IV. MATITA

 

A porta da Casa Grande, o cavalo selado, e o pagem, à espera. Na sala, Senhor Moço levantou-se para partir:

– Sua bênção, Senhor Pai.

Senhor Baltazar já lhe dera dobrões de ouro para a viagem. Deu-lhe agora a bênção, e deu lembranças para oompadre Marquês, que morava na Cidade.

– Sua bênção, Senhora Mãe.

Dona Maria Adelaide chorou:

– Feliz, filho meu! Sê muito feliz!

Atrás os Negros de cada, à frente Dona Maria Adelaide e Senhor Baltazar, ficaram-se todos no terreiro a acompanhar com os olhos o cavaleiro que partia. Ficaram-se todos aguardá-lo, atentos, até que ele desapareceu, longe, com o seu pagem. Somente Matita esteve todo o tempo de olhos baixos – para não ver.

 

Meses adiante, Dona Maria Adelaide começou a estranhar as maneiras de sua mucama:

– Que tens, Matita?

– Nada, não, Senhora.

Outra vez, a mesma impressão. Pareciam-lhe fatigados os gestos da escrava predileta:

– Estás doente, Matita?

– Senhora, não!

Outro dia, viu-lhe os olhos chorosos:

– Estás a chorar, Matita?

– Senhora, não!

Reparou-lhe mais na cintura larga, nos peitos maiores, no círculo escuro à roda dos olhos. Sentiu Dona Maria Adelaide uma pancada no coração:

– Matita! Quem te fez mal?!…

Matita baixou os olhos. Inerme, suave, dolorosa. Depois cobriu subitamente o rosto com as mãos, abalada por grande choro:

– Ai! Sinhá!…

E baixinho, baixinho:

– Fui eu mesma que me fiz mal com Senhor Moço!

 

V. PAI JOÃO

 

Como te chamas, Negro velho?

– Nome esquecido, Nhonhô.

Quantos anos tens?

– Perdeu-se a conta, Nhonhô.

Todos dizem: Pai João. Todos chamam: Pai João. E sabem todos que Pai João está velhinho, velhinho! Ficaram-lhe a ele as pernas duras e pesadas… Já lhe custa arrastá-las. E a vista muito curta… Mal enxerga onde pisa. E o ouvido muito longe… Mal alcança o que lhe dizem.

Em outro tempo, outra coisa.

Em outro tempo, era o pagem de Sinhá Moça!

Em outro tempo, as mucamas brincavam:

– Negrinho pachola!

As mucamas suspiravam. E o Negrinho como senão fosse com ele! Como se nem ouvisse nem soubesse as palavras e os suspiros das mucamas!

Um dia, Sinhá Moça casou com o primo da Cidade – e partiu sem pagem. Para ele, a vida mudou completamente. Já de vê-lo sempre distraído, Senhor Velho disse ao feitor:

– Leva este Negro para o eito!

O feitor tinha um chicote. As costas do Negro sentiram muitas vezes como ardia a ponta aberta do açoite. E o feitor bradava:

– Ah! Negro ruim!

Não só chicotadas. O Negro soube também o que era ficar no tronco – para exemplo. Um dia, afinal, vendido. Teve outro senhor, mais outro, muitos outros.

– A boi que emperra, a Negro que falta – ou mata-se o boi, ou vende-se o Negro.

Andaram depois com ele os anos até não servir mais para ser vendido. Seu último dono, senhor de bom coração, mandou riscar-lhe o nome da lista dos escravos:

– Deixem Pai João no seu canto – para morrer.

Ainda assim Pai João vai vivendo. Todo encoscorado, todo curvo, o cabelo todo branco. Tardo abobado, sem lembrança.

Sem lembrança? As Negras se divertem a ouvi-lo. As negras riem, riem loucamente, quando Pai João lhes conta que foi pagem de uma Sinhá Moça como nenhuma outra existiu neste mundo. As Negras se desmancham de rir:

– Que fez ela, Pai João?

Pai João se anima. E diz que uma vez, as mucamas ausentes, Sinhá Moça estava deitada na preguiçosa… Sinhá Moça lia um livro… E, enquanto lia, Sinhá Moça mandou que o seu pagem lhe calçasse as meias compridas!

 

VI. EXPERIÊNCIA

 

A Casa Grande recebia convivas alegres. Eram todos os parentes do Engenho Novo, chegados à tarde, que iam ficar até o dia seguinte. Tia Augusta e as primas afagavam, beijavam Juquinha. As primas diziam:

– Como Juquinha cresceu!

– Como Juquinha é bonito!

– Só tem ele três anos? Já parece que tem quatro!

Mamãe sorria, mas pensava noutra coisa. Mamãe pensava:

– Como hei-de acomodar esta noite a gente do Engenho Novo? Onde arranjar camas para todos?

Mamãe fez o possível. Botou até a cama de Juquinha para a caçula de Tia Augusta… E o Juquinha? Mamãe chamou a sua mucama de estimação, que dormia no pequeno quarto azul:

– Maria, toma conta de Juquinha. Prepara a tua cama para ele, e põe-lhe ao pé um colchão onde te deites. É só por hoje, não faz mal.

As primas e os primos se divertiam. Toda a Casa Grande ressoava de risos e vozes alegres. E, depois do jantar, dançou-se no vasto salão, onde havia o retrato do Imperador…

Viu Juquinha somente o começo da festa. Mamãe dizia que as crianças dormem cedo:

– Maria, vai deitar Juquinha.

Mamãe fez muitas promessas, porque Juquinha se recusava. Afinal, meio convencido, meio triste, lá se foi contra vontade pela mão da mucama.

Nova revolta, em seguida, no quarto. A princípio, não queria admitir que ali passaria a noite. Ao apagar-se a candeia, não queria dormir no escuro:

– Maria, acenda a luz!

– O pavio acabou-se, Juquinha… Agora a gente vai dormir…

Sobre o colchão, Maria em camisa. Na cama, Juquinha fechava bem os olhos para não ver a treva excessiva, misteriosa, ameaçadora.

– Maria, eu tenho medo!

Do colchão, ao pé da cama, subiu a voz de Maria:

– Estou aqui, meu bem.

Estendendo o braço, a mucama atingiu-lhe a cabeça, acariciou-lhe os cabelos. Juquinha sentiu-se aliviado; e, mal tentou ela retirar a mão, pediu:

– Maria, venha aqui!

Um momento Maria deixou-se imóvel, sem responder. Soergueu-se, porém, de manso:

– Que é, meu bem? Quer ver a Maria?

– Quero!

Maria deitou-se na cama, cingindo o menino ao peito:

– Ainda tem medo, meu bem?

– Agora está bom! declarou Juquinha, aconchegado ao corpo da mucama.

No outro dia a festa continuou na Casa Grande, até a tarde, quando os parentes do Engenho Novo se foram embora. E Juquinha os viu partir, apreensivo.

À noite, Mamãe percebeu-lhe o ar inquieto:

– Vem dormir, filhinho.

No quarto de paredes claras, o seu quarto, que se abria para o grande aposento de Mamãe, Juquinha não queria deitar-se. Por fim bradou súbito, sentido, exigente, choroso:

– Eu quero ir para a cama da Maria!

 

VII. JUSTIÇA

 

Antes, antes do Sol nado, Senhor Moço chamou o escravo Haussá, que dormia fora da senzala, e mandou-lhe que trouxesse cavalo selado.

Andava inquieto o escravo Haussá. Mais inquieto, agora, a si mesmo perguntava aonde ia tão cedo o seu amo e dono.

Senhor Moço tinha a pistola à cintura. Mal se pôs na sela, disse ao escravo Haussá que tomasse uma pá e uma enxada; e ordenou-lhe que marchasse à frente.

Mais de uma hora o escravo Haussá marchou à frente; atrás, Senhor Moço regulava o passo de seu cavalo.

Entraram, depois, na brenha espessa. Entraram, seguiram fora de caminhos, pelo mato a dentro… E longe, muito longe, no meio do mato, onde não dava a luz da manhã, Senhor Moço fez alto – e mandou que o escravo Haussá cavasse aterra.

O escravo Haussá tinha a enxada, e pôs-se a cavar a terra, sem perguntar por que cavava.

Cavou muito tempo. Enquanto o buraco se fazia fundo, o escravo Haussá nem cuidava nem queria saber por que Senhor Moço tinha a pistola na mão.

De nada queria saber o escravo Haussá. Cavava, cavava, e frio suor molhava-lhe a testa.

Foi quando o buraco ficou muito fundo que Senhor Moço falou. Então Senhor Moço disse, com voz arrogante:

– Negro! Sabes que se vai enterra nesta cova?

O escravo Haussá já sabia, mas nada disse. Apoiado ao cabo da enxada, ergueu a fronte para fitar os olhos nos olhos de Senhor Moço.

– Negro! Sabes quem vai morrer?

O escravo Haussá bem sabia, mas nada disse. Somente os olhos olhavam alto os olhos de Senhor Moço.

– Negro! Pede perdão a Deus.

Os lábios do escravo Haussá ficaram cerrados, os olhos imóveis. Quando o tiro lhe varou o coração, ele ainda um instante ficou na mesma atitude.

Somente um instante o escravo Haussá ficou na mesma atitude: a cabeça pendeu para o peito, o corpo rolou na terra aberta.

Senhor Moço fechou a cova, onde deixava guardado o segredo da sua honra. Fechou-a com vagar e cuidado, e tornou à Casa Grande.

Ninguém o vira sair, ninguém o viu quando chegava. Mas onde o escravo Haussá? Já os Negros segredavam contentes que o escravo Haussá tinha fugido!

No outro dia, tratava-se de outra coisa. No outro dia, Sinhá Dona, a mãe de Senhor Moço, partia em grande liteira para a Cidade, com sua filha, Dona Branca i! dona Branca! Ia entrar para o Convento! E as mucamas choravam:

Ai! ai! Vai-se embora Sinhazinha, que ninguém mais há-de ver!

As mucamas choravam. E, desde aí, nunca mais na Casa Grande houve escravos da Nação Haussá, esses Negros infames, que entendem querer e fazer – como se fossem Brancos!

 

VIII. O BANHO

 

Eram três as moças do Engenho. Eram três! Cada qual mais branca, mais alegre, mais bonita.

 

As moças do Engenho e suas mucamas eram seis. Eram seis! E riam ao mesmo tempo, todo o tempo Todo o tempo!

 

Qualquer das moças do Engenho tratava a sua mucama como igual. Como igual! E a mucama lhe chamava: Sinhazinha… Sinhazinha!

 

Ao claro Sol, de manhã, as moças do Engenho e as mucamas iam tomar banho no rio, perto da ingazeira, onde os homens não passavam… Ah! Não passavam!

 

As moças do Engenho – tão brancas! e as mucamas – escurinhas, luzidias! entravam na água nuas Todas nuas!

 

Mais de uma hora lá ficavam, dentro da água, e qual ria, qual saltava, qual nadava, ou de uma vez todas seis.

 

Jamais pensavam – ou pensavam? – que olhos alheios as vissem Ah! Os olhos de quem as visse!

 

Certo dia, dentro da água, perceberam por acaso, na moita, ao pé da ingazeira, invisa suspeita forma, à espreita.

 

Logo as moças e as mucamas, dentro da água, se abaixaram, se entreolharam, curiosas. Se não, talvez, receosas!

 

Seis cabeças à flor da água fitavam doze olhos atentos na moita, no pé da ingazeira, onde os ramos buliam… Ah! Buliam!

 

De repente foi um grito que se formou de seis gritos: eram as moças e as mucamas que viam entrar na água o tourinho Palhano, de três anos.

 

Sem mais cuidar nem pensar, as moças do Engenho – tão brancas! e as mucamas – escurinhas, luzidias! se escaparam da água nuas… Todas nuas!

 

Ao claro Sol, de manhã, todas seis – todas seis! Qual mais prestes, qual mais lestes, qual mais nua, correram pelo campo fora, para bem longe… Para onde estavam os homens!

 

IX. O SENHOR POBRE

 

Quando nasceu Senhor Quinquim, havia em casa tanto ouro que dava para comprar a Lua, contanto que a Lua fora coisa que se comprasse. E escravos, escravos, escravos! Passandoem menino nos braços da ama, toda a gente dizia:

– Ali vai o Menino de Ouro!

Mas quem o viu e quem o vê! Os fados desmandam com o tempo, e tudo se perde. Hoje o mundo aparece mudado a Senhor Quinquim. Como se lho tivessem trocado por outro mundo! E a ele os cabelos já lhe estão a fazer-se grisalhos, as duas filhas já lhe andam nos 16 e 17 anos, e a sua Sinhá começa amostrar-se reversa. Da riqueza, que era tamanha, restam algumas jóias, algumas pelas antigas, pouco e pouco vendidas para suprir necessidades. Da escravaria sem conto, ficou somente Laurina, que todos dizem Dadá.

Às vezes Sinhá murmura, a modo de consolação:

– Ainda bem que temos Dadá. Que seria desta casa sem Dadá?

Acertam as filhas na mesma segurança:

– Dadá é da família! não é, Papai?

Senhor Quinquim passa os dias com seus pensamentos. Silêncio e meditação sem revolta. Que medita? Ninguém lho pergunta, e seus gestos se perdem na aquiescência dócil – na branda, passiva aquiescência. De tempo a tempo, consulta-o Sinhá sobre a venda de alguma coisa: adorno de uso passado, objeto lavrado a cinzel, resíduo vário do antigo tesouro de casa. Consulta formal, ou jeito de avivar a lembrança, porque a venda se fará de qualquer modo. O próprio Senhor Quinquim manda vir da Cidade, que está perto, o mercador de metais finos, sempre o mesmo velho de unhas encardidas, nariz recurvo e pequeninos olhos ávidos, que lhe explora a discreta brandura, depois de jurar-lhe mil vezes que essas coisas velhas não têm grande preço. E feita a venda, Senhor Quinquim foi quem perdeu. Negócio de pobre. Não é ele o Senhor Pobre? Uma vez, na Cidade, bem ouvira a um que não cuidava ser ouvido:

– Este senhor de três mil escravos ficou senhor apenas de uma Negra, o mais pobre dos senhores. É por isso que o povo lhe chama o Senhor Pobre.

Senhor Quinquim bem o sabe. Agora vendeu justamente a melhor peça antiga da família, a mais estimada, que pensava guardar para o primeiro neto, se Deus lho desse algum dia. E diz vencido:

– Está tudo acabado! Nada mais de bom para vender!

Sinhá replica:

– Salvo Dadá. É a melhor peça que nos resta.

Entram as filhas, e entra com elas o tumulto. Não os ouviram ambas? Grita logo a mais menina:

– Como é isso?! Vender Dadá?! Está Mamãe pensando em vender Dadá?! Oh! coisa horrível!… Eu não quero! Não quero! Não quero!…

No mesmo tom grita a outra:

– Será possível, meu Paizinho?! Não! não! não! Pai de minha alma, não deixe Mamãe fazer semelhante coisa!…

– Calem-se, filhas! – brada a mãe. Calem-se! Calem-se pelo amor de Deus! Não me queiram tomar em palavras!…

E, porque choram as filhas, mais a mãe clama, e Senhor Quinquim já se apavora do escarcéu que não lhe deixa dissipar a exaltação gerada no engano. Eis porém a mesma Dadá, que surge à porta, como que trazida pelo rumor da discórdia. Sendo a primeira a divisar-lhe de longe o belo sorriso interrogativo, brando e pacificador, é Sinhá quem chama:

– Ó Dadá, chegas a tempo! Faze-me o favor de acalmar estas meninas!

– Dadá! Dadá! Minha Dadazinha! – grita a caçula.

– Mãe Dadá! Mãe Dadá! –grita a outra.

Arfantes ainda, lançam-se as duas nos braços da ama. E Dadá, risonha, consoladora:

– Que é isto, minhas meninas?! Por que chorar? Por que chorar? Ora esta! Não há nada! nada!

Certamente não há nada. as meninas voltam a rir. Dadá ri às duas, ri a todos.

Agora Senhor Quinquim dá em fazer-se mais silencioso e meditativo, ao passo que Sinhá se deixa mais tempo a seu lado, como se fora preciso assistir-lhe, falar-lhe com mais constância.

Uma diversão, por fim, sobrevem. Sinhá presente, Senhor Quinquim recebe em visita a Manuel Henriques, o filho do Brás Sapateiro, do velho Brás Galego, já defunto. É o mesmo Manuel Henriques, que há muito se partira da terra, moço e pobre, e tornou agora para matar saudades, e mostrar a todos que se fez homem rico nas Alagoas. Visita de negócio. Conversação de negócio. A Casa Grande hipotecada, onerosa, improdutiva, cairá talvez um dia às mãos dos credores. O reverente Henriques, o gordo Henriques jovial, explica o seu intento:

– Vossa Mercê, Senhor Quinquim, bem podia vender-me esta Casa Grande, que nada mais lhe produz. Para mim, a falar verdade, não há interesse de ganho, mas o gosto de possuir alguma coisa na terra onde nasci. Digo-lhe até, se ma vende Vossa Mercê, que essa venda não significa mudança imediata… Bem preciso eu ficar ainda algum tempo nas Alagoas, e podíamos ajustar o negócio de maneira que Vossa Mercê continuasse ocupando a casa com o sítio, durante certo prazo…

Senhor Quinquim procura ler os olhos de Sinhá. A proposta é repetida, explicada, esmiuçada. As palavras do comprador se renovam. Qual verdadeiramente o prazo por que poderia Senhor Quinquim permanecer na Casa Grande? Henriques diz primeiro que talvez um ano, mas Sinhá objeta peremptoriamente que maior é o prazo da hipoteca. Então fala o ricaço em dois anos, enquanto Sinhá pretende que não pode ser menos que cinco anos. Como está decidido a pagar a vaidade de possuir o velho domínio, ainda que reduzido de muitas terras, cujo passado esplendor lhe enchera outrora a imaginação de menino pobre, Manuel Henriques pede que se ponha de parte a questão do prazo, para ser resolvida ao fim de tudo. Haverá primeiro que decidir o preço. Sinhá entende que toda proposta terá que cobrir a hipoteca, e deixar meios a Senhor Quinquim para recompor sua vida. As conversações fazem-se demoradas. As visitas do comprador se tornam mais freqüentes. De certo Henriques já mediu e pesou todos os prós e contras do negócio, e viu que as dificuldades de Senhor Quinquim são maiores do que tinha imaginado. Toda a dúvida vem do que pode acaso a vontade de Sinhá. E é como quem fizesse transação difícil que ele apresenta, afinal, os termos de sua proposta:

– Ouça-me por favor, Senhor Quinquim. Se Vossa Mercê e ali a Senhora Dona querem acabar comigo este negócio, eu lhes pago cem contos pela Casa Grande hipotecada como está, e lhe deixo o usufruto dela pelo prazo de três anos…

Brilham furtivamente os olhos de Sinhá. Afigura-se-lhe que a venda está feita, e que se irá um dia com o marido e as filhas para a Cidade. Mas Henriques ainda fala:

– Há outra coisa. Eu deixei nas Alagoas a mulher e uma filha de três anos. Quando de lá parti, muito me recomendou a senhora que lhe leve de cá uma escrava de qualidade para ama da menina. Este assunto me tem ocupado dês que cheguei à nossa terra, e de tudo o que tenho visto, e ouvido, já tirei a segurança de que só irei bem servido se Vossas Mercês consentirem vender-me a escrava Dadá. Pago-lhes por ela dois contos, que é preço dobrado, e um negócio tem de concluir-se juntamente com o outro.

Tudo parece desfeito. Senhor Quinquim e Sinhá quase consideram a Segunda proposta um desaforo. Exigir que lhe vendam a ama das filhas! Nada podia ser mais chocante. No entanto o gordo Henriques não se dá por vencido:

– Negócio é negócio: faz-se ou não se faz. Neste caso são Vossas Mercês quem decide. E, agora, eu me vou até a Cidade. Antes, porém, quero dizer-lhes que ainda me fico todo este mês, porque mandei fazer um túmulo de pedra no cemitério do Bem Grande, onde me descansem os ossos dos velhos pais, que lá se acham sob duas cruzes de pau. Se acaso Vossas Mercês quiserem reconsiderar o trato que tivemos hoje, é só mandarem uma palavra à Cidade, e eu cá tornarei. Está claro que as condições são as que digo.

– Sem a escrava?

– Senhor, não. Eu digo com a escrava.

 

Sinhá e Senhor Quinquim a sós. Silêncio. Silêncio! Afinal, Senhor Quinquim:

– Melhor fora não lhe ter dado ouvidos.

Silêncio. Silêncio! Afinal, Sinhá:

– Como aprendeu a falar o filho do sapateiro! Bem sentiu que este negócio há-de fazer-se algum dia…

Olhar estranho, incerto, inquieto. É Senhor Quinquim o que olha desta maneira, como quem pergunta pelo que mais sabe e receia. Pesa maior o silêncio – obscuro, inquietante. Três vezes Sinhá deixa a sua cadeira, divaga pela vasta sala, braços cruzados e olhos baixos. Três vezes se detém diante do marido, sem dizer palavra. Também três vezes Senhor Quinquim se teme do que há-de ser.

Por fim, desesperada, silva no ar a voz da Senhora:

– Que há-de ser, Senhor Quinquim? Faz-se ou não se faz este negócio?…

quem responderá? Quem pode responder? Será Senhor Quinquim? Será ele o que quer e decide? Mas subitamente, lá fora, na varanda, soam risadas felizes – e ambos, Senhor Quinquim e Sinhá, se encolhem, trêmulos, aterrados, ansiosos por escapar a um negro, infiel pensamento. São as filhas que riem lá fora, e é Dadá quem as faz alegres. Dadá! Dadá!

Volta mais torvo o silêncio, enquanto Sinhá e Senhor Quinquim parecem contritos, isolados, separados, na vasta sala, um sem o outro, e perdidos de todos. E nada ousa nem um nem outro, antes inertes se deixam levar soltamente em um remoinho de imagens confusas, no remoinho das inumeráveis e diferentes imagens que os salteiam: imagens do presente e do passado, que os tornam sem vontade. Mais talvez que o sentimento, punge-os aos dois o sentido de uma força exterior, coerciva, que os tivesse desde sempre condenado a irremissíveis penas, e que ora os precipita na miséria de escura desolação. E parece-lhes que não podem eles nem ninguém poderá jamais subtrair-se à fatalidade, que nos move a todos pela mesma sombra eterna, onde acaso o destino traçou por antecipação os nossos caminhos sem desvios…

Não!

Não? Quem diz não? É Sinhá. É Sinhá quem o pensa, e o diz a si mesma. É Sinhá, que se lança de pé, resoluta e severa, e passa voluntariosa pela frente de Senhor Quinquim, e marcha através da vasta sala, e vai perder-se ao fundo, na larga porta, que lhe dá passagem para a realização de ato impreteríveis.

Na vasta sala, o tempo se confunde com o silêncio. Senhor Quinquim sabe que já aconteceu o que há-de acontecer, e fecha os olhos para esconder-se de si mesmo, da própria consciência, que vê mais claro quando os olhos estão abertos. E as horas já não passam… Não passam; antes se imobilizam, subdivididas e multiplicadas como se cada instante fora por sua vez uma hora, e se erguem no pensamento, por trás dos olhos fechados, impositivas e presentes. São todas as suas horas, todas as horas vividas, que Senhor Quinquim vê diante de si, formas etéreas, indefiníveis, quais se feitas da leve substância dessas névoas que flutuam no cimo das serranias. Não as vê dispostas em ordem como passaram na duração dos dias sucessivos, porém confundidas, caóticas, mais próximas as que sabia mais distantes, e mais claras porventura as que tinha por menos significativas, e todas a lhe darem, na própria diversidade aparente, com a pura impressão de coisas sonhadas a simultânea certeza de que, suas embora, são como se fossem alheias, estranhas, incaracterísticas, absurdas, sem motivo. E das pálpebras cerradas de Senhor Quinquim as lágrimas vão correndo, suavemente, lentamente…

 

X. ROUPA NA CORDA

 

Ernestina Lavadeira, Ernestina dos Braços Nus, prendeu na corda a roupa enxaguada… Para bem corar ao Sol, para bem secar ao Vento.

Vestidos claros, lençóis de linho, camisas de cambraia, os panos finos das Donas, muito tempo ali ficaram dependurados, imóveis…

Muito tempo? Pouco tempo! O Sol e o Vento fizeram quanto esperava Ernestina dos Braços Nus. Ao Vento e ao Sol a roupa, agora, está branca, branca! e enxuta, enxuta!

Quem passa à beira do rio vê um jogo fantástico na corda. O jogo do Vento ao Sol O jogo do Vento que anima a roupa das Donas.

Cabeções de renda, corpetes claros! Inflam-se, parecem viver… São como os mesmos bustos que tantas vezes cingiram.

Mangas compridas de camisas de dormir! Agitam-se, agitam-se… Como alvos braços que querem abraçar.

Largos lençóis, alvos lençóis de linho! Elevam-se, estendem-se em plano horizontal… Como leitos oferecidos e desertos.

Quando vier buscar a roupa, Ernestina dos Braços Nus, Negra Ernestina dos Olhos Redondos, não saberá o que viu o Sol e o que fez o Vento.

De nada saberás, Ernestina Lavadeira. Nem ao menos saberás que umas calças de mulher, as calças de Sinhazinha, coraram pegadas aos calções de montar de Primo Lulu!

 

XI. ALMA PENADA

 

O senhor do Retiro morria, e os Negros duvidavam:

– Verdade?

Era verdade. A notícia, levada à cozinha pelas mucamas, chegava à casa do engenho, espalhava-se nos eitos, fazia-se de todos, estranha mensagem a correr em voz baixa de escravo a escravo.

– Verdade?

– Verdade!

Mandou logo Sinhá Dona que cessasse o trabalho no engenho por que nenhum rumor viesse à Casa Grande, onde se andava nas pontas dos pés; e duas vezes Belisa saiu a levar uma bacia cheia de sangue negro, de coisas ascosas, que o Senhor lançara pela boca, e foi deitá-la bem longe, ao fundo dos barreiros.

– O Homem está apodrecendo! dizia a mensagem soprada de escravo a escravo.

– Verdade?

– Verdade!

À noite a morte veio: justamente à meia noite, que é hora de assombros. E no mesmo instante toda a senzala, onde os Negros cismavam sem sono, recebia misteriosamente a certeza desejada:

– Acabou-se o Homem!

– Verdade?

– Verdade!

Suspiros de alívio dos Negros. Ficava-lhes apenas o receio que a noite e a morte, presença dupla, lhes metiam na alma… Era um senhor tão mau! Todos fugiam de vê-lo. Fazia medo o seu olhar… Ainda agora a simples lembrança fazia tremer. Alto, grosso de corpo, olhos azuis meio sumidos que entravam na gente como duas pontas, e um carão vermelho, duro, que parecia de pedra. Oh! Como era mau! E pior ainda quando ria… Que modo de rir! Era um riso que mostrava os dentes arreganhados como os de cão que rosna… Ria assim quando dizia ao feitor:

– Mete este Negro na fornalha!

Nem um só, nem dois. Muito Negro tinha morrido, por seu mandado, em cima das grelhas ardentes. Nos mais engenhos falavam:

– O Senhor do Retiro queima Negro na fornalha!

Era rico e poderoso, o Senhor do Retiro. Que lhe importava o falar alheio? No quarto de dormir tinha grandes arcas cheias de ouro e prata: somente o seu orgulho era maior que toda a riqueza. Por mandar queimar um Negro, mal se sentia da censura silenciosas de Sinhá Dona; e porque julgava absurdas as fraquezas de mulher, costumava dizer, ao feitor, por exemplo, de maneira que ela ouvisse:

– Não há prejuízo onde fica o exemplo. Demais, era um Negro ordinário que não valia dois patacões!

Agora, sim. Estava ele também morto. Bem morto! E os Negros respiravam, aliviados.

 

Agora, sim!

Um mês inteiro, por ordens novas, houve trabalho somente nas plantações, longe da casa do engenho, e proibiu-se ao feitor castigar os escravos.

– Sinhá Dona, Negro sem castigo não trabalha…

– Mas não haja castigo, feitor, que mando eu!

Um dia, afinal, como outrora, as moendas recomeçaram a moer, encheram-se de novo as caldeiras de ferro. Como outrora, o foguista meteu lenha na fornalha, ateou-lhe fogo… Uma acha, após outra; as chamas cresciam, as pedras das grelhas se faziam vermelhas. Afeito à sua tarefa, o Negro mal atentava no crepitar do braseiro. Só uma vez, por acaso, espiou cuidoso a caverna ardente… Que viu lá dentro? O foguista deu um salto para trás com gritos apavorados, e aos outros, que acudiam, inquietos por vê-lo assim, apontava para a fornalha, e gritava, convulsamente:

– O Homem! O Homem está lá! Dentro do fogo!…

Ninguém compreendia:

– Que homem?!

– Ele mesmo!… O Homem!…O Homem!… gritava o foguista, fora de si,

Ninguém compreendia, mas era grande a estranheza de quantos o viam gritar, e tremer.

Bernardino, Negro velho, perguntou:

– Onde está esse homem?!…

– Eu bem vi!… Dentro do fogo!…

Duvidoso, Bernardino balançou a cabeça:

– Uma coisa destas!

Disse, e avançou lentamente para a boca da fornalha. Os escravos em redor, que já eram muitos, seguiam ao velho com os olhos, na suposição aparente de que nada podia haver lá dentro, senão lenha abrasada.

Bernardino curvou-se, e olhou.

– Ui!… – foi o grito espantoso de Bernardino, que saltou para trás, desfigurado; e todos, com ele e o foguista, correram, atropeladamente, para longe da fornalha.

O feitor, que chegava, clamou, inquieto à vista de tamanho tumulto.

– Que é isso?! Que é isso?! – clamava o feitor.

Logo todos se atiraram para o seu lado, como a pedir-lhe auxílio. Falavam ao mesmo tempo. Mal podia o feitor entendê-los… Soube, enfim, que o foguista e Bernardino tinham visto o corpo do Senhor do Retiro dentro da fornalha!

Olhou-os bem o feitor, e conheceu que estavam deveras amedrontados. Habituado porém a duvidar do juízo dos Negros, dirigiu-se ele mesmo à boca do fogo, e se deteve a divisar a lenha, que ardia lá dentro. Voltou-se, depois, carrancudo, para o foguista:

– Viste o Senhor no meio das brasas?

Aflito, o escravo agitou a cabeça, afirmativamente.

– Mentira de teus olhos! – gritou-lhe o feitor.

O mesmo à Bernardino:

– Dizes também que o viste? Mentira! mentira!

Os Negros, incertos, não replicavam. Como poder convencê-los? O feitor chamou um deles:

– André, vem cá! Vem mostrar que tens a vista boa! Olha, como eu olhei, para dentro da fornalha, e dize a esta gente que lá não há nada…

André obedeceu. Quando se aproximava, o feitor segurou-lhe o pulso, e o fez curvar-se à boca do fogo. Mas o escravo olhou, e o mesmo assombro o feriu:

– Eu vi!… Eu vi!… – gritava André.

Tornou-se enorme o pânico dos Negros. Já o feitor, perplexo, hesitava. E mais uma vez se inclinou diante da caverna encendida, e ficou-se a reparar no fogo, demoradamente, como se procurasse distinguir lá dentro algum reflexo ilusório, que lhe explicasse o terror dos escravos: via apenas as flamas, a lenha ardente sobre as grelhas vermelhas.

– Eu vejo o fogo! – disse o feitor, voltando-se para os Negros. Mas aqui três homens pensam Ter visto o corpo do Senhor Silveira no meio das brasas… Que aconteceu a esses homens? Nada, não é verdade? Venham outros ver quem tem razão!

Aos Negros pareceu a idéia justa. Mais confiantes, embora receosos, consentiram fazer como o feitor dizia. E um, depois outro, a começar pelos mais velhos, mal se punham diante do fogo, saltavam precipitados, arregalando os olhos pávidos:

– O Homem está lá!

Exasperou-se o feitor:

– Bando de poltrões!

A esse momento vinha dos canaviais Negrinho Joel, o pagem do feitor, que tinha doze anos. Na mente do feitor novo pensamento:

– Silêncio! Mandou ele.

Os escravos silenciaram, imóveis. E o feitor chamou:

– Joel!

Negrinho Joel acudiu correndo. Certo de os confundir a todos, o feitor pôs a mão no ombro do pagem para falar-lhe em tom simples:

– Olha aqui a boca da fornalha. Olha bem a ver se alguma coisa está lá dentro.

O pagem saltou lesto ao meio do ladrilhado raso, que resguardava a boca do fogo, e ajoelhou para bem divisar a lenha acesa. Logo os seus olhos se alargaram, e ele voltou a cara espantada para o feitor:

– Estou vendo!

– Que estás a ver? – perguntou-lhe o feitor com voz tranqüila.

Negrinho Joel, sempre de joelhos, olhou de novo, atentamente, o interior da fornalha, e tornou a erguer os olhos para o feitor:

– É o Senhor meu amo!

Profundo murmúrio subiu do peito dos Negros. Uma voz temente pediu:

– É bom apagar este fogo!

O feitor fez um gesto:

– Eu vou falar com Sinhá Dona.

O fogo apagou-se por si mesmo. Nem nesse dia nem nunca mais se acendeu a fornalha do Retiro. Da fábrica do engenho e casa senhorial resta apenas a tapera, onde árvores não crescem.

SEGUNDA PARTE

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A outra face do editor Soares Feitosa, o tributarista