Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Endereço postal, expediente e equipe

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci - link para page do editor

Américo Facó

POESIA COMPLETA
DE
AMÉRICO FACÓ

Organização e estudo introdutório
Floriano Martins

Sinfonia negra (1946)

SEGUNDA PARTE

 

I. SUBURBIA

Tarde azul. Tarde de rir e cantar. Boa tarde… Boa tarde, Pedro Lena! Soltas, as casas trepam nos morros verdes, escondem-se atrás das árvores, fogem no rumo da Mata Escura. Aqui mesmo começa a estrada… Estrada para quem vai! Deixa de ser a quem volta, quando aqui mesmo se perde – engolida pela Cidade… Mas tu, que vais, podes ir – sem saber aonde!

Pedro Lena marchava, sorrindo a pensamentos que rompiam das coisas. À entrada do vale, contornou o monturo – escuro! – onde se despejava o lixo civil. Ardia fogo nas profundidades da estrumeira, e um fumo quase indistinto se alava ao céu sem nuvens… Volutas solutas, suaves na aparência, detestáveis pela exalação acre.

Entre morros paralelos, que a guardavam, a Lagoinha se estirava na frescura do vale como um canal parado. Lagoinha das lavadeiras. E a estrada ia bordando o cristal liso, galgava por vezes a meia encosta – para não se molhar.

Ajoelhadas na água rasa da margem, as lavadeiras batiam nas tábuas as camisas da Cidade. Corpos metálicos. Fisionomias graves, a fisionomias brandas, e fisionomias que se iluminavam a vozes tagarelas. Negras murchas, e Negras luzidias, e Negras menos Negras, que se diriam douradas: mães fatigadas de sol e trabalho, moças de encantos presentes, meninas compridas, indecisas. Negraças! Negrinhas! Negritas!

Pedro Lena passava, e a visão do labor feminino lhe deu nova nota ao pensamento seduzido:

– Mulheres e trabalho de mulheres. A elas o encargo das tarefas imediatas e necessárias. A elas os meneios amáveis, os cuidados úteis, as penas fecundas. A elas os gestos diretos, que se aliam às exigências do corpo… Tratar da casa, dar o de comer, lavar a roupa, aleitar o filho, deleitar o leito!

Na presença azul da tarde faziam-se mais vivas todas as variações do verde – tons inumeráveis, diversos de árvore a árvore, inconfundíveis no chão ervoso. Sombra na tarde azul, uma adolescente cantava… Cantava, e seu canto voava no vale como um pássaro solto:

 Diz o Senhor – que eu sou sua…

 Busto ereto, braços nus, seios altaneiros sob o corpete justo, ela cantava a molhar o linho ensaboado. Brilhava-lhe a pele fina e luzente. Por acaso ergueu a cabeça, e os olhos pasmados pousaram no forasteiro o seu fulgor sombrio. Um momento a cantiga pareceu hesitar, esconder-se; mas num átimo a voz retomou-lhe, em maior limpidez, as notas perdidas:

 Diz o Senhor – que eu sou sua…

Em que papel – me assentou?

Sua – eu não – mas quem é sua,

Que eu bem sei – de quem eu sou!

– É minha, Dalice! Gritou-lhe alguém dentre as árvores da encosta.

Os olhos dela se volveram surpresos para outro homem, que lhe surgia em frente, junto ao caminho, onde o primeiro acabava de passar. E era este agora mais negro do que ela, e olhava-a com ar de gosto e certeza.

– Ué! Joviano! Disse Dalice.

E como Pedro Lena, também surpreso, voltasse a cabeça por cima do ombro, sem deter o passo, para ver o galanteador, franziram-se num riso os lábios da moça. Desdém e momice:

– Joviano, cantiga é cantiga! Por muito que você queira, não chega aos pés do meu dono!

– Aonde queres ir, caminho preguiçoso? Aonde levas Pedro Lena? Tarde azul… Morros verdes… Lagoinha de águas paradas… Tão bom seguir este vale de Paraíso achado! Tão bom ouvir as canções do caminho! E ouvir nomes… Dalice! Um nome que soa macio. Da-li-ce… Dalice!

Pedro Lena comparava. Eram coloridos esses nomes de Negras. Pedro Lena sabia outros… Vira e conhecera muitas outras, e seus nomes pertenciam todos a uma categoria particular. Eram elas, na lembrança, Quitéria – Pulquéria – Damiana – Gertrudes – Apolônia – Rufina – Benedita – Januária – Bárbara… Nenhuma Dalice! Nenhuma de nome que tanto soubesse a flor e mel. Nome para ser guardado como lembrança de uma harmonia…

– Tarde azul… Boa tarde, passeante sem pressa! Bom-bom o perfume do mato! Olha, longe, na colina da outra margem: três vaquinhas pintalgadas, netas de touro holandês. Todas de costas para o Sol… Estão a ruminar cuidados bovinos. Cismam talvez nos bezerrinhos, que ficaram presos, e não podem mamar!

A Lagoinha findava em meio de canaranas viçosas e nelumbos rosados, onde o terreno se alteava. Pedro Lena voltou-se ainda a contemplar a água estirada ao longo do vale como um canal parado; e vislumbrou, distante, o brilho das roupas estendidas ao Sol. Um momento, um claro momento, imaginou também que lhe chegava aos ouvidos um murmúrio impreciso… Como toada longínqua de um canto sem palavras.

 

II. DIVERTIMENTO

Anima-se à tarde um recanto de arrabalde: chamados, gritos, risadas sonoras. Um bando de Negrinhos traquinas corre, brinca, sem cuidados.

Risadas, gritos, alvoroço de crianças. Vem de lado uma voz, doce voz cuidosa, que pergunta a medo:

– Ó meninos, estão brigando?

O Negrinho mais próximo responde:

– É nada, não, mamãe: é briga de brinquedo!

Corridas. Saltos. festivo alarido.

Quantos são? Não há contá-los. Tantos!

Acaso passa ao lado a mais soturna velha da vizinhança. Passa, torce caminho, murmura contrafeita:

– Ó meu Deus, quem pariu tanta criança?

Fidelino, impaciente, guarda a manja:

Manja, manja, manjeleiros!

Quem chega à manja primeiro

É o melhor cavaleiro!

Ora disperso ao redor do círculo mágico, o bando impetuoso arremete, fugindo ao guardião, que tenta fazer um prisioneiro…

Anima-se o jogo. Para quem os vê, os Negrinhos são como as crianças brancas Dir-se-ia que as crianças brancas andaram pela cozinha, e se tingiram com toda a tisna que havia no fundo das panelas.

 

III. MANINHA RITA

Faz sol, Pititi?

– Munto! Munto!

Céu azul?

– Zu-zu-zulinho!

Pititi, de fora, ao pé do lumiar, responde a Pedro Lena, que fala de dentro enquanto afivela as botas de andar no mato. Dois dias a chuva caíra contínua, e o morador da Casa Verde se vira impedido no seu gosto de passear pela montanha. Não raro o aguaceiro tombava com lufadas, que obrigavam Cordolina a fechar portas e janelas; e das goteiras corriam torrentes com grande rumor. Então Cordolina mal disfarçava o receio de ver o amo enfadada; e invectivava o tempo, exclamava:

– Quem havia de dizer? Nunca se viu tempo assim!

Ou falava a Pedro Lena como se pedisse desculpas:

– Isto agora vai mal, Nhonhô. Abril, águas mil!

Pedro Lena ria, divertido:

– Cordolina, Abril passou. Estamos no fim de Maio!

– Dá no mesmo, Nhonhô. É como quem diz!

Cordolina exercia ao redor do amo uma atividade preventiva. Em meio das tarefas caseiras, o seu desvelo se multiplicava em cuidados amenos. O bom apetite, que ele denotasse, jamais a convencia bastante:

– Que pouco comer é esse, Nhonhô? Nem passarinho!

Se Pedro Lena entrava retardado para o almoço após uma caminhada com o Sol a pino, ela exclamava, a modo de brando protesto:

– Mãe de Deus! Não tem medo de morrer, não, Nhonhô? Este Sol pega fogo na gente!

Era uma Negra de idade incerta, quase cinzenta. Tivera uma irmã de lembrança triste, muito mais jovem, a sua Maninha Rita, que o pai, duas vezes viúvo, lhe confiara ao morrer. E essa irmã, filha um pouco de seus cuidados, lhe deixara Pititi… Pobre Maninha Rita! O mal lhe viera de Ter casado com um sargento, um mulato ruim! Ruim! Mas ficou Pititi, e Cordolina somente aceitara o serviço de Pedro Lena com a condição de guardar o menino a seu lado.

Muitas vezes admoestava a criança, com ternura grave:

Pititi ser um menininho bom… Pititi sair do sol… Pititi não fazer barulho… Pititi andar bem direitinho! – E o Negrito vivaz pousava os belos olhos na tia, surpreso de vê-la ignorar a alegria da luz e dos rumores insólitos.

Cordolina também falava às coisas, em voz alta, como se falasse a pessoas. Palavras ao fogo, que não queria arder. Palavras aos legumes, se não eram muito bons para meter na panela… No começo, Pedro Lena ouvia com espanto; depois, imaginou que a espiritualidade de Cordolina abraçava todas as formas. Mas eram extraordinariamente simples as explicações que ela dava.

De tudo, o que mais excitava a curiosidade era ouvi-la falar de feitiços e quebrantos, que são coisas evidentes, ou referir-se a lobisomens e mulas sem cabeça, que vagam de noite pelos caminhos… Igualmente as histórias que contava a Pititi se passavam no mesmo mundo convizinho, onde as pessoas estão sujeitas a artimanhas de terríveis, misteriosos inimigos.

Nas relações comuns, a alma de Cordolina era sensível e mansa. A sua doçura com Pititi jamais se alterava. Só parecia realmente severa quando a criança, magoada nos brinquedos, ousava soltar a interjeição de cólera:

– Diabo!

Então Pititi ouvia a ameaça de um chicote, que estava guardado no baú para a primeira vez em que voltasse a repetir o nome do Sujo!

A Pedro Lena, contata coisas estranhas à maneira de quem conta fatos ordinários, ou dizia feitos de Negros, passados outrora, no tempo da escravaria, e casos de morte, em que o feiticismo vingava penas imotivadas.

Um dia contou-lhe a história de Maninha Rita:

– Nhonhô sabe, a gente é sempre levada pelo coração. E Maninha Rita não gostava do militar… Achava bonitas as calças vermelhas com lista azul, mas era Fausto o que ela trazia no pensamento… Mas tudo foi culpa de Tia Zabelina, a quem Deus perdoe. Tia Zabelina era muito casamenteira, e não via homem que se comparasse a soldado. Salvo se fosse outro soldado! E todo o dia a dar nos ouvidos de Maninha Rita para ela tirar Fausto da cabeça, e casar com o sargento! Afinal, Maninha Rita acabou concordando… Casou, e veio a desgraça. Logo no cabo de três semanas, o homem já lhe batia, e lhe chamava nomes… E a coitada só sabia chorar! Nhonhô sabe, não é? Gente moça precisa de consolação… Maninha Rita e Fausto se encontravam muitas vezes para falar de tristezas. Mas foi mais tarde, quando nasceu Pititi, que a vida de Maninha Rita se tornou mesmo um inferno. Ah! O marido era um mulato ruim! Ruim! Já Maninha Rita não punha pé fora de casa, e chorava muitas vezes com o menininho nos braços… Pregunta Nhonhô se o sargento sabia tudo? saber, saber de verdade, não sabia, não! Mas… sentia coisas no ar, andava sempre falando em matar um diabo! Assim Maninha Rita tremia pela vida de Fausto, e queria a toda força que ele se fosse embora para outras terras… O que ela não podia mais era continuar naquela aflição! Ora, qual é o homem que não faz tudo, quando quer bem? Assim Fausto. Não queria ir, mas afinal arranjou passagem para embarcar… Um Domingo, à noitinha, o sargento saiu de casa, dizendo que ia ficar de guarda no quartel. Maninha Rita logo tratou de deitar a criança. E mal Pititi pegava no sono, uma voz chamou da porta… Era Fausto. Aí ninguém sabe direito o que se passou… Parece que Fausto vinha dizer adeus para sempre, pois muitas vezes a falar na viagem, que estava marcada, ele aventava que nunca mais havia de por os olhos em Maninha Rita… A verdade é que os dois ficaram juntinhos no alpendre, muito tempo, lastimando a sorte. E foi então que o militar apareceu… Não se sabe ao certo como foi! O que parece é que Fausto e Maninha Rita nem deram fé que ele chegava… Ali mesmo, no alpendre, o malvado matou os dois com dois tiros! Ti’ Nilau morava perto, e aconteceu-lhe ser a primeira pessoa que acudiu. Ti’ Nilau contava mais tarde… Quando os dois corpos foram levados para dentro, e estendidos em cima de uma esteira, ainda se via no rosto de Maninha Rita e no rosto de Fausto o sinal das lágrimas que eles tinham chorado!…

Cordolina era alta e magra. Já lhe fugira de muito a mocidade sem beleza. E Maninha Rita?

Oh! Maninha Rita era uma Negra bonita! Bonita! Um tanto cor-de-café-com-leite, um tanto mais baixa, um tantinho cheia de corpo E os olhos de Maninha Rita eram assim como os olhos de Pititi!

 

IV. XANDÔ

Xandô era um que usava barbicha na ponta do queixo, e dizia não ser homem no mundo capaz depor a mão naquilo. Emproado e valente, Xandô. Sua hora chegou cedo: morreu de mordidura de cobra.

Xandô morreu, e Manico das Brotas, moleque ladino, lembrou-se daquela bravata quando ajudava a botar-lhe o corpo no caixão. Manico das Brotas segurou levemente a barbicha de Xandô, balançou-a de um lado para outro, chasqueando:

– Agora, Xandô, você não tem mais prosa por causa destas repas!

Sabem o que sucedeu? O moleque andou mais de um mês adoidado porque via Xandô em toda parte. Até de noite, no sono, sentia umas mãos frias, muito frias, a lhe puxarem pelos pés… Já Manico das Brotas não comia, nem dormia, sem sabia meio de livrar-se daquele assombro.

Um dia, a conselho de gente séria, Manico das Brotas foi a Santo Amaro, onde morava o feiticeiro mais sabedor, um chamado Kulungu. Esse Kulungu ouviu toda a história sem dizer coisa. Mas, ouvida a história, Kulungu moveu a cabeça três vezes, e ficou muito tempo calado. Muito tempo! Depois, Kulungu falou:

– Moleque, isso é para você aprender que não se deve bulir com defunto. Mas eu dou remédio. Tome lá este grigri, e fique noite acordado, com ele seguro na mão esquerda. Quando Xandô aparecer – certo Xandô vai aparecer hoje mesmo! – peça perdão do malfeito.

Esta foi a palavra de Kulungu, a palavra que Manico das Brotas guardou na cabeça. E de noite apareceu Xandô… Logo Manico das Brotas se pôs de joelhos. Tremia todo, e dizia:

– Eu peço perdão, Xandô! Eu peço perdão!

Parece que Xandô não cuidava de perdoar, porque soltou uma risadinha falsa, e falou com voz muito fanhosa, que fez Manico das Brotas arrepiar-se todo. Xandô falou assim:

– Moleque, eu preciso saber se tu és mesmo capaz de pegar em barba de homem!

Manico das Brotas choramingava. Só sabia dizer:

– Perdoe, Xandô! Perdoe!

Xandô, nem como coisa! Xandô ria. Ria com a mesma risadinha de arrepiar a gente, e uns olhos muito fundos como dois buracos na cara; e avançava, gingando, e já estava pertinho de Manico das Brotas, que chorava e tremia…

De repente o moleque se lembrou do grigri que tinha seguro na mão esquerda, e foi como se Xandô acabasse de saber no mesmo instante que ele tinha o grigri seguro na mão esquerda! Xandô soltou um gemido triste, muito triste… Ao mesmo tempo, sem poder mais, lá se foi afastando de costas, sempre de costas, até chegar à parede. E desapareceu na parede!

Desde esse dia Manico das Brotas ficou desaliviado… Era aquele um grigri muito forte como só sabia fazer o velho Kulungu, que foi o feiticeiro mais sabedor de seu tempo.

 

V. CAUSA OCULTA

Há bem dias passa mal o Negro moço, Cazu. Não come, não bebe, não dorme. Sua mãe oferece:

– Um mingauzinho, meu filho?

– Fome, não, mamãe.

– Um pouquinho de água?

– Sede, não, mamãe.

– Veja se pode dormir um nadinha…

– Sono, não, mamãe.

As vizinhas deliberam:

– É preciso chamar Ti’ Onofre. Agora, só Ti’ Onofre. Ninguém mais pode com essas coisas!

À noite vem Ti’ Onofre:

– Que foi isso, crioulo?

Sei não, Senhor.

Mas Ti’ Onofre sabe: pergunta por perguntar. Manda que se afastem todas as mulheres, fecha a porta por dentro.

Muito tempo a mãe e as vizinhas conversam no terreiro, à espera. Afinal, à meia-noite, abre-se a porta, Ti’ Onofre aparece:

– Ele agora pegou no sono. Vai dormir até amanhã de tarde. O mal já passou.

– Era feitiço mesmo, Ti’ Onofre?

Ti’ Onofre explica:

– O rapaz, sem querer, pisou em cima de coisa feita… Encomenda de mulher na força da Lua!

 

VI. CANTIGA

Passarinho verde mal pisou na rama pinicou a fruta que sentiu madura. Depois se escondeu…

Nanja eu!

Quem por maus intentos põe em moça a vista – ou a desengana ou por mau a engana se mal pretendeu…

Nanja eu!

Uma por promessas que eram mal juradas passou da cozinha para a camarinha… Digam se perdeu.

Nanja eu!

(Passarinho verde sabe adonde voa!) – Não via a mucama quando errou de cama que era por mal seu?

Nanja eu!

 

VII. COISAS DA VIDA

Delfina Rebola é ela. Delfina: ninguém lhe diz. Rebola: dizem-lhe todos. Uns o dizem porque a sabem da Nação Rebola, e outros porque pensam que esta Negra velha, meio curvada, que se vai de pés no chão, é coisa perdida a rolar no meio das inutilidades humanas.

Delfina Rebola está sentada no belo alpendre, em casa de Sinhá Linda. Sentada no chão, aos pés da Senhora, que é onde se senta quem precisa e pede. Foi Dondom, a velha ama Dondom, quem a tomou no portão e quem a trouxe a pedir; a mesma Dondom que acaba de acender o lampião do alpendre, e retoma lugar na cadeirinha baixa, ao pé da parede. Rebola fala, e Sinhá Linda escuta. A boa Senhora, que sabe dar a quem não tem, escuta murmúrios de um malfeito, que são resumo de história triste; e, menos curiosa que piedosa, pergunta, acolhedora:

– Que malfeito foi esse, Delfina Rebola?

– Coisas da vida, Sinhá. Ontem de noite, eu já ia dormir quando a Saturnina me apareceu lá no ranchinho. A princípio não desconfiei nada. ela me salvou: Sua bença, mamãe. E eu disse assim: Que andas fazendo a estas horas? Pois a menina sentou-se na tripeça, sem responder, com os cotovelos plantados nos joelhos, e a cara metida nas mãos. – Que é que tu tens, Saturnina? Preguntei, espantada. Ah! Sinhá! A menina abriu num choro que cortava o coração… E eu preguntava, preguntava: Mas que é isso, filha? Que é que tu tens? Mais e mais ela chorava… Era um pranto sentido que vinha de dentro da alma. e despois, uma luz me entrou na mente! Acheguei-me a ela, passei-lhe a mão nos cabelos, devagarinho, bem devagar, e preguntei baixinho… Ela balançou com a cabeça que sim, e caiu nos meus braços. No momento, não quis saber mais nada. é minha filha, não é? Fiz o que pude, até que se calou… Como quando era pequenina! Só hoje de manhã contou tudo, tudo…

– Que idade tem a menina? Falou a voz clara de Sinhá Linda.

– Eu nem sei bem, Sinhá. Se não estou enganada, já anda nos vinte-e-cinco. Assim mesmo é como se tivesse quinze… Uma negrinha boba, boba, Sinhá! Criada e vivida aqui distante, nunca ia à Cidade, nunca via gente de fora… Em Setembro do ano passado, arranjou-se um empreguinho para ela em casa desse doutor lá da Graça… Gente rica, e um filho que vai também ser doutor… Pois o demo do rapaz desencabeçou a menina logo na primeira somana! E todo esse tempo ela vinha disfarçando como podia… Porque foi sempre cheia de corpo, nem parece que está no nono mês! Mas está. A Zefa Parteira, que mora perto, viu, palpou, disse que seria coisas de três ou quatro dias… E pensei em vir pedir uns paninhos velhos!

Vagam distante os olhos de Sinhá Linda. Distantes, piedosos. E depois, no silêncio, ergue-se a boa Senhora, e entra para buscar o que lhe pedem.

No alpendre, as duas, Dondom na cadeirinha, ao pé da parede, a Delfina Rebola sentada no chão, perto da grande cadeira de balanço, de onde se foi a Dona. Dondom, conselheira, conselha:

– Há mais outras pessoas a quem pedir, Rebola.

A isto responde a outra que não sabe. Estava habituada a socorrer-se de Sinhá, conhecia o bom coração que nunca faltava. Bem podia ser que mais alguém quisesse ajudar a pobre que pedia… Mas o rapaz que fez mal era de gente rica!

Um muxoxo de Dondom:

– Tu és boba, Rebola. Se é de gente rica, ainda pior.  Basta Ter feito mal para não querer mais ouvir falar na tua filha. Isso de Brancos, um em mil! Eles fingem que gostam da gente, mas só no começo… É o que se vê todo dia. Tu és quem devia Ter prevenido Saturnina… Agora, é tarde. Se fores fazer queixa ao tal doutor, ele é capaz de dizer que o rapaz foi levado de si por tua filha… Pois eu não sei? As Negrinhas vão servir aos Brancos, e são desgraçadas pelos moços de cada. Não é isto mesmo?

– Às vezes é, Dondom.

– Às vezes? Mas é sempre, Rebola! Onde andas tu que não sabes das coisas? A filha da Leocádia, a Nila do Mané Raimundo, a Rosa, a Nicola, a Florzinha, tantas outras, que a gente pode contar pelos dedos, até que se acabam os dedos e ainda há nomes que contar, todas essas Negras mocinhas, que arranjaram emprego na cidade, acabaram caindo na vida, ficando por lá mesmo, ou voltaram barrigudas, como a Saturnina.

Que se há-de fazer, Dondom? São coisas da vida. Afinal, a gente não há-de botar o filhinho no mato…

– Tu és boba, mulher! Quem fala em botar menino no mato? Menino, se nasceu, é para se criar. Eu só digo é que tu não ganhas nada em fazer queixa aos pais do moço. É agüentar, e cuidar do mulatinho… Ainda bem para a Saturnina se for um menino!

– Pois olha, Dondom, eu até gostava que fosse uma menininha… As meninas são mais pegadas à gente!

– Sabes lá o que dizes, Rebola! Filhas são só cuidados. Eu não vou pensar que seria melhor que a minha Sinhá tivesse um filho em vez de uma filha… Isso, não. Nem haveria ninguém no mundo a quem eu quisesse mais do que a Licinha! Mas Sinhá tem muito de seu… Imagina só que a Saturnina tivesse uma filha, e que a mulatinha fosse mais tarde servir em casa de Branco… Havia de acontecer a mesma coisa!

Ora, eis de novo Sinhá Linda, e atrás a preta Sabina, que sobraça lençóis e camisas. São coisas dadas, que se recebem com as duas mãos. E as mãos, que recebem, mal sabem pegar em coisas tão boas:

– Ah! Sinhá! Deus lhe pague! Deus lhe há-de pagar!

Mas Sinhá Linda pergunta se Delfina Rebola não precisa também de um colchão para a cama da que vai parir. Um colchão? Deus do céu! Em toda a sua vida, esta Negra velha só usou palha dura, ou esteira, em cima da cama de varas.

Desta vez é Dondom, que se vai com Sabina, e traz um bom colchão até o alpendre. E Dondom, duvidosa:

– Podes levar tudo isto, Rebola?

Delfina Rebola sorri com seu sorrisinho triste:

– Que brincadeira de Dondom! Basta enrolar…

Enrolado e atado, ela o põe na cabeça, bem posto sobre a rodilha, que fez do fichu; e enquanto o sustenta com a mão esquerda, o braço direito lhe enlaça a trouxa de roupas brancas:

– Assim mesmo. Não cai, não, Dondom!

Agora, lá se vai Delfina Rebola. Veio magra, vai gorda, formiga provida a caminho da cova.

 

VIII. O COLAR DE OXUMARÉ

Bem no meio do caminho a cobra-coral de anéis cintilantes – vermelhos, brancos, negros. Imóvel. Imóvel como se apenas vivesse no brilho das cores.

Ó tu, que passas, enganador de mulheres, cuidado! Cuidado!

Este é o colar de Oxumaré. Foi por tua causa – por tua causa! – que Oxumaré deixou cair o seu colar aberto.

Oxumaré guarda as fontes. Este é o colar encantado, que Iemanjá, a Mãe-da-Água, prendeu ao pescoço de Oxumaré.

Iemanjá falou assim:

– Oxumaré! Oxumaré! Aqui tens o meu colar.

Oxumaré perguntou:

– Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?

Iemanjá falou grave:

– Oxumaré! Oxumaré! Protege bem as mulheres.

Oxumaré perguntou:

– Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?

Iemanjá baixou os olhos, Iemanjá falou severa:

– Oxumaré! Oxumaré! Castiga os homens que enganam.

Oxumaré perguntou:

– Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?

Iemanjá riu… Iemanjá fica mais bela quando ri… Iemanjá riu na cara de Oxumaré:

– Oxumaré! Oxumaré! Ensina amor a quem não sente.

Oxumaré entendeu… Oxumaré riu também. Oxumaré piscou um olho:

– Hei-de fazer! Hei-de fazer!

Mulher que foi enganada, e se consome de paixão, vai de noite, sozinha, à fonte da mata, onde Oxumaré toma banho.

A mulher vai sozinha. Há-de ser em noite de lua-cheia, à hora da meia-noite… E a mulher deixa cair na água, onde a Luz se mira, um ramo de arruda cortado de fresco.

No mesmo instante Oxumaré já sabe o que ela deseja, e muda o seu colar em cobra-coral…

O colar de Oxumaré jaz no meio do caminho do amante enganador. E agora ele passa… Passa, passa descuidado, e morre da picada venenosa.

Mas, quando o homem ignora o amor da mulher, o colar de Oxumaré lhe fica apenas à vista E amor se acende no coração do homem!

 

IX. MÃE PRETA

Ao teu peito, o teu leite, que mamava,

Alegrava o menino pequenino;

E tu punhas carícias, e blandícias,

No rir, no gesto, na ternura pura,

No olhar escravizado ao neno amado.

 

Mãe de amor, sem ser mãe, por mãe servias

Ao filho que outra teve, flor de neve;

E mais que a mãe, contente e docemente,

Rias como se tua, mas não sua,

Fosse a criança com as esperanças.

 

Mão de amor, mãe de graça, amor compunha

De cantigas antigas a espontânea,

A ingênua e calma festa de tua alma,

Que se pagava de lembranças mansas

Nos afagos e beijos sem desejos.

 

Era um jardim florido o teu vestido:

Na saia todas cores eram flores;

Mil matizes no xale posto a gosto;

E o cabeção de rendas transparentes

Desnudava mal justo o belo busto.

 

Preso o infante no laço de teus braços,

Com teu leite bebia a melodia

De tua voz – o canto de acalanto;

E grave, e suave, a Noite distendia

Sobre as rosas do ocaso as negras asas.

 

Noite fagueira, mensageira alada!

Vinha com ela a paz, o sono, o sonho…

Dormia o filho alheio no teu seio…

Alheio? Não, mas certo teu dileto

Branco filho, que hauriu teu leite branco.

 

Teu filho, mãe de leite, mamãe preta!

Teu no sonho, no sono sossegado,

A desoras, e teu nas horas claras,

Se ria, se chorava, se chamava

Por ti… Teu bem, de quem eras escrava!

 

Menino das meninas de teus olhos,

Que aos dele só prezavas e miravas,

Sem a procura de maior ventura,

Era ele só todo o ano o teu engano,

Jamais negado nem desenganado.

 

Era dele, por ele, o teu cuidado,

Era só dele o atento pensamento,

Os sorrisos, os visos de alegria,

Os íntimos receios, os enleios,

Ou as penas apenas disfarçadas…

 

Onde agora a memória desse tempo?

Onde um traço no espaço percorrido?

Nada sabe o presente indiferente:

Perdeu-se a mocidade na saudade,

E a vida fez-se lento desalento.

 

Triste saudade, soledade da alma,

Vã miragem de imagens enganosas,

Ermo sem termo de íntimas distâncias,

Tanto insiste a alma triste por fugir-lhe

Quanto arde por achá-la em toda parte!

 

Velhinha, tão sozinha, que te resta?

Que pode o fido coração ferido?

Deu-se, perdeu-se todo o teu carinho!

E tu mesma, que o deste, não soubeste

Que isso foi bem roubado, não bem dado…

 

Ou talvez não: amor dá-se por dar-se.

A mãe que ao filho afaga a si se paga

Da ternura e doçura de fazê-lo:

Se mais amor houvera mais lhe deras,

E mais quiseres tê-lo para dar-lhe.

 

X. ENCANTAÇÃO

Eu ia só, pela estrada, quando encontrei Velha Tatá com seu feixe de lenha à cabeça. Ela pediu:

– Samu? Carrega um pouco este fardo, que a velhinha está cansada!

Nosso caminho era o mesmo, com pequena diferença: a velha morava perto, e eu ia para o Engenho. Assim, carreguei-lhe o feixe de lenha até a porta… Ela me deu água a beber. Enquanto eu bebia, preguntou rindo qual era o meu desejo…

Ri também, respondi:

– Ora, Tatá, o meu desejo é ver a Felismina!

A velha piscou um olho:

– Pois vai depressa, que hás-de vê-la três vezes!

Pus-me de novo a caminho. Como o Sol já estava baixo, tomei o atalho do Panta, onde passa pouca gente. Caminhava ligeiro, sem sombra no pensamento… Andei assim nessa pressa coisa de meia légua. De repente avistei uma pessoa, que seguia adiante. Quem havia de ser? Não precisei olhar muito para adivinhar o gesto de cabeça, a cintura estreita de Felismina! O vestido era o mesmo de outra vez… Mas a estrada tomava à direita, escondendo a moça de meus olhos. Então apressei o passo, cheguei à curva do caminho… Acredite quem quiser: não mais viva alma! olhando bem para o chão, não descobri rastro de mulher!

Erro talvez de meus olhos? Fiquei meio bambo… Não era medo, não. Mas não podia entender por que tinha visto e, agora, não via mais a mulata! E fui andando… E pensava sempre nesse engano, quando ouvi uma risadinha de mofa… Quem havia de ser? Pois mal reparo na frente, lá ia Felismina! Podem achar duvidoso, mas a mulata ia ali adiante, voltava a cabeça para o meu lado, ria… Dessa vez estava mesmo brincando comigo! Então gritei:

– Agora, sim!

Gritei, corri para alcançá-la. Correndo, vi a moça esconder-se atrás de uma moita… Isso eu vi com estes dois olhos!  Mas cheguei ao pé da moita – não estava ninguém. Ninguém! Ninguém! Correu-me um frio pelo corpo… Ah! Não nego que me benzi três vezes! Agente lá sabe… E larguei-me a correr!

Ao entrar no portão do Engenho, ainda trazia o pensamento assustado, o coração me batia no peito…

De noite os Negros convidaram para a novena de Tia Benedita:

– Vem daí, Samu!

Não queria ir, mas fui. Pois quem havia de dizer? Mal entrei no terreiro, lá estava a mulata assentada, com o mesmo vestido. E ria para o meu lado! Seria visagem? Não era, não. Logo falei com ela, e disse:

– Ó Felismina, é a terceira vez hoje que ponho os olhos em você!

A mulata riu com mais vontade:

– Só se foi feitiço, que faz um versem ser visto.

Felismina ria, sem dar muito às palavras. Mas nesse instante, só nesse instante, alembrou-me uma coisa… Não diz o povo que Velha Tatá é feiticeira?

Ainda bem que o feitiço tinha sido de meu gosto!

 

XI. ALICA

Alica era Negra, filha de Negra da Outra Banda. E fiava, e comia, e dormia, com um de sua lata chamado Binga.

Os Negros moços maldavam:

– Aquela! Oh! Aquela!…

as Negras moças lhe davam palmadinhas no ombro, riam, diziam:

– esta Alica! Oh! Esta Alica!…

Nada dizia Binga, nem ninguém pensava dizer-lhe o que ele não sabia. Só a Noite, que tem olhos para ver no escuro, só a Noite poderia contar-lhe coisas que o Dia não conhece. Mas quando a Noite chegava, Binga só queria dormir. Quem dorme é como quem está longe…

Certa vez Alica parecia triste. Binga perguntou-lhe:

– Que aconteceu, mulherzinha?

– Ó maridinho, estou a pensar que amanhã é lua-cheia, e que precisas ir à feira da Cidade… E tenho outra vez de ficar sozinha!

– Amanhã é lua-cheia?

– Pois não sabes? Olha que me prometeste trazer uma xale novo! Mas era talvez melhor que eu não falasse Lá nessa feira há tanta Negra bonita!

Binga deu boa risada. Prometeu o xale novo, de que não tinha lembrança, e jurou que na feira não havia Negra bonita como Alica.

Nessa noite disse Alica ao seu amigo:

– Amanhã é lua-cheia. Como Binga deve de ir à feira, há-de matar um carneiro para levar carne à feira, e há-de por o couro espichado no alpendre… Ouve bem, meu benzinho: é preciso que passes ao meio dia pela porta, a ver se ele matou esse carneiro. Se assim for, hás-de ver o couro espichado, o que será bom sinal; mas de tarde passarás outra vez para saber se ainda lá está… E põe o sentido no que vou dizer: se de tarde o couro ainda estiver no alpendre, há-de ter acontecido alguma coisa que impediu a viagem de Binga; se não estiver, então, sim! E como ainda será dia, e hás-de encontrar gente nos caminhos, aqui tens uma roupa de mulher para vestir por cima da tua, afim de que ninguém suspeite…

No outro dia Binga sentiu-se indisposto, resolveu não ir à feira. Porque não ia, não matou nenhum carneiro.

Por sua vez o crioulo ficou-se acordado a mor parte da noite, apensar no ajuste com Alica; e, porque dormiu tarde, dormiu até meio-dia. Já desperto, pensou:

– Como Binga foi viajar, matou o carneiro, e espichou o couro. São coisas que se fazem sempre do mesmo modo. Mas se o couro está espichado no alpendre da casa de Binga, não é preciso que eu veja para Ter certeza. É bastante ir à tardinha, já vestido de mulher, como Alica mandou… Se por acaso o tal couro ainda estiver no alpendre, sinal de que Binga ficou em casa, passarei pela porta sem bater!

Assim pensou, assim fez o crioulo. De tarde, com a roupa de Alica por cima da sua, aproximou-se da porta de Binga, e viu que no alpendre não havia nenhum couro. E riu-se de todo o coração:

– Casa, cama e mulher! Quem mais quer? – E contente bateu à porta, que estava fechada.

Dentro, inquieta, Alica disse:

– Maridinho, estão batendo.

Assim disse Alica. E perguntou, sem abrir a porta:

– Quem bate?

Assim perguntou Alica. E, sem esperar resposta, abriu a porta. Ao ver o crioulo, agora surpreso da presença de Bina, ela voltou prontamente a cara para o marido, e exclamou:

– Maridinho, aqui está minha irmã!

Binga, também surpreso, disse:

– Manda tua irmã entrar.

Alegraram-se os olhos de Binga ao ver a suposta irmã de Alica. E um riso banhou-lhe o rosto:

– Quando os olhos gostam, a boca pode pedir.

Mais tarde, à hora do sono, Alica falou a Binga, baixinho:

– Maridinho, como há-de ser? A casa tem apenas um quarto, que só tem uma cama. Onde há-de dormir a moça minha irmã, que não pode ser junto de homem?

Binga decidiu:

– Vai com tua irmã para o quarto, dorme com ela na cama, que eu passo a noite na esteira da sala.

De manhã cedo, Alica disse ao crioulo que se deixasse quieto como quem dorme; e depois de cerrar-lhe a porta tomou ela o pote, e foi buscar água da fonte, como era seu costume cada dia.

Ora Binga, apenas a viu sair, foi mansamente à porta do quarto espreitar a outra, que o seu desejo agora cobiçava. Desta vez, porém, os olhos de Binga não se alegraram do que viram: os olhos de Binga viram uma calça de homem que saía dentre as sais da irmã de Alica. E o seu coração se encheu de raiva! E a raiva de Binga era tão grande que ele andou muito tempo à procura de uma foice, e não se lembrava onde a tinha guardado… Depois, quando encontrou a foice, a raiva era ainda maior: Binga pensava somente em matar Alica! E correu para a fonte…

Na fonte, Alica enchia o pote quando viu Binga, longe, que vinha correndo, com a foice na mão! E ela caiu de joelhos…

De costas para o caminho, braços erguidos e olhos chorosos, Alica tomava o céu por testemunho de seu desespero. E Binga parou junto da fonte, espantado de ver e ouvir a mulher, que dizia:

– Oh! Desgraçada sorte minha! De onde me vem tanto mal? quem já soube de feitiço tão grande? Filhas de meu pai, doze filhas, nenhum filho… Nenhum macho, todas fêmeas!… E vem esta noite contar-me a que está em casa que as outras dez viraram homens… Eram mulheres, viraram homens!… Quem já soube de sorte tão mesquinha?! Valham-me os Encantados, e tirem-me esta vergonha que me faz chorar!

Binga, primeiro espantado, agora certo, exclamou:

– Ó mulherzinha! Tu não sabes tudo… A que ficou em casa também virou homem!…

– Maridinho de minha alma, que está a dizer?! Desgraça!… Desgraça!…De doze irmãs nascidas da mesma mão, só eu não virei homem!… Mas a vergonha das outras é também vergonha minha… Maridinho de minha alma, vai por favor! Vai depressa dizer à que ficou em casa que se vá embora!… Não quero mais vê-la!… Mas escuta… A pobrezinha não tem culpa… Não lhe digas palavras más! Não tornes maior o seu vexame!…

Binga fez como Alica pedia. E daí por diante procurou cercá-la de maior cuidado, por temor àquele mal de família.

 

XII. SANIM

Sanim pensou em casar como todos os Negros sérios de seu conhecimento. Para evitar erro de escolha foi consultar Papai Dongo:

– Papai Dongo, Sanim quer conselho para tomar mulher.

Papai Dongo tinha os cabelos brancos de dar conselho a pessoas de todas as idades: nunca lhe acontecera decidir em caso desta natureza. Pois então? São as coisas mais simples que mais embaraçam. E Papai Dongo puxou três vezes o fumo de seu cachimbo. Afinal, porque era homem que sabia tudo, sentenciou:

– Fez-se a mulher para o homem: cada um tome a que quer.

Sanim pensou que este conselho era excelente, e escolheu a mulher de seu agrado. Bem moça: para estar sempre alegre. Bem bonita: para dar gosto.

Nos primeiros tempos, correu tudo bem, como queria Sanim. Mas Sanim, Negro sério, temia tornar-se marido enganado.

Foi nele um temor tão grande que se tornou cuidado de todas as horas. Ao entrar em casa, aspirava o ar, olhava a todos os cantos. A mulher, indignada, perguntava:

– Que é, Sanim?

– Nada, não!

A mulher de Sanim reparou naquilo; e foi de tanto sentir-se vigiada que lhe nasceu o desejo de enganá-lo. É verdade sabida: ninguém impede a mulher de fazer o que quer.

Uma noite, por negócio urgente, Sanim saiu de viagem.

Ao sair, disse:

– Fecha bem esta porta, Livana. Fecha bem, que eu só volto amanhã!

Livana encostou a porta. Fechá-la, fechou-a muito bem, mais tarde, depois de entrado um crioulo, que Sanim não conhecia.

Entretanto Sanim andava o seu caminho, e cismava. E tanto andou, e a cisma foi tanta, que ele se deteve em meio do caminho, sem saber se era de homem sério deixar a mulher sozinha por uma noite inteira… E decidiu voltar!

Voltando de tão longe, veio bater à porta ao primeiro cantar dos galos. Bateu fortemente como dono e senhor.

– Quem bate? – perguntou de dentro a voz de Livana.

– É o teu marido: abre.

– Nam-nam! Meu marido foi viajar.

Sanim insistiu, jurou que tinha voltado de meio do caminho. Mas sempre a voz de Livana:

– Nam-nam! Sanim mandou que eu fechasse bem a porta!

Protestos. Pedidos. Juras inúteis de Sanim. Afinal, a mulher disse:

– Só abro se a vizinha conhecer que é o meu marido…

Sanim foi pedir o testemunho da vizinha, que tinha casa um pouco afastado. Sanim bateu. Logo a vizinha veio à porta:

– Tu és mesmo Sanim. Ninguém pode duvidar!

Tornou à própria casa, e outra vez bateu à própria porta:

– Podes abrir, Livana: a vizinha conheceu que eu sou mesmo Sanim!

Livana abriu-lhe a porta. E explicou:

– Há tanto engano neste mundo! Imagina que fosse aí qualquer outro, que me soubesse sozinha…

Sanim riu satisfeito. Estava convencido agora de que tinha mulher tão séria como ele mesmo queria.

 

XIII. CATUTA

O Branco aventureiro e a bela Negra se ajuntaram. Ela ria ingênua, fazia tudo por ele, queria por ele tudo, feliz a cada oportunidade de afagá-lo, e servi-lo.

Ele chamava:

– Catuta!

Catuta era ela; e seus olhos radiavam logo à espera da palavra que fosse ordem: a palavra dele, infalível, a palavra a que havia de estar sempre atenta para executar-lhe o sentido urgente – por ato, lenta carícia, ou doce palavra.

Às vezes um chamado imperativo:

– Catuta!

Ela ouvia, e vinha, inquieta, a perceber na voz estridente a impaciência do homem a quem faltava alguma coisa.

Às vezes um murmúrio cantante:

– Catuta!

Ela vinha a sorrir, pressurosa, alegre de oferecer-se, certa de que era ela mesma que lhe faltava.

Mas, sem ouvi-lo chamar, vinha do mesmo modo, de qualquer modo, de modo a não parecer que vinha, dando sempre feição nova às mil aparências de acaso que a impeliam para o seu lado.

Um dia ele desapareceu – sem nada dizer. Então ela chorou, chorou… Nessa tarde, nessa noite, no dia seguinte, o mundo inteiro se encheu da sua tristeza.

– Foi-se embora o teu homem? Perguntou-lhe alguém.

Catuta moveu a cabeça lenta, que afirmava.

– Por que?

– Sei não.

Não sabe. Aventura-se porém a dar um motivo, o único plausível à sua alma sem culpa:

– Só se eu lhe fiz algum mal sem querer!

 

XIV. ESCRAVOS

A Dona de cabelos brancos alude porventura ao tempo em que havia escravos e escravas.

– Era bom Ter escravos? – pergunta a esposado deputado! E acrescenta convencida:

– Eu sei apenas que hoje em dia muito custa ter criadas!

A Dona de cabelos brancos abana a cabeça – menos para protestar do que para afirmar a relatividade das coisas. E porque se calam as outras, jovens casadas, que escutam como se também quisessem conhecer daquilo de que mal sabem notícia, a Dona de cabelos brancos explica:

– Já naquele tempo acontecia a uma senhora com muitas escravas o mesmo que hoje acontece à que somente conta uma ou duas criadas… Minha tia, a Baronesa, estava sempre a falar mal das dez mucamas que tinha à roda de si, ocupadas em trabalhos de bordado e costura. Costumava dizer às amigas: “Estas Negras são uns diabos. O que elas querem é a minha morte!”

à esposa do deputado isso não parece bastante explicativo:

– Então não valia a pena ter escravos?

Logo a Dona de cabelos brancos responde com vivacidade talvez excessiva para os seus anos:

– Isso, não! Sempre era bom tê-los para vender – e comprar outros!

 

XV. MARTIM JONGO

Quem não ouviu falar em Martim Jongo? Martim Jongo era um Negro da Nação Nagô, birrento como ele só, que tinha uma mulher muito paciente, chamada Maria Benta.

Morava esse Negro na Borda do Mato, lugar sem vizinhos, à beira da estrada. E ninguém, ainda que longe, gostava de Martim Jongo.

Certa vez, à boquinha da noite, Martim Jongo entrou em casa com cara de espanto, foi direto para a cama. O modo era novo, e Maria Benta estranhou esse modo. Estranhou sem nada dizer: Maria Benta não era mulher para fazer perguntas.

No entanto Martim Jongo se pôs logo a gemer, a gemer… E mais do que isso: Martim Jongo, na verdade, se pôs a urrar como se lhe estivessem arrancando o nariz com um ferro!

Maria Benta assustou-se. Quis saber o que era. Aproximou-se nas pontas dos pés, a olhar pela porta semicerrada. Martim Jongo tinha a boca aberta, os olhos arregalados, e resfolegava, e gritava, e bufafa, e berrava, apertando o peito com as mãos…

Maria Benta olhou, e teve medo àquela angústia. Pensou em remédio, e logo se doeu de saber que não havia em casa remédio possível para mal tão grande. Entre medo e surpresa, gritou:

– Que é isto, Martim Jongo?

Martim Jongo não respondeu. Mas, em seguida a um sobressalto mais doloroso, pareceu respirar desafogado, e calou-se, e imobilizou-se. Teria o mal passado? Maria Benta ficou-se a olhá-lo, muito tempo, pela porta entreaberta. Depois, as mãos do Negro lhe escorregaram do peito, os olhos ficaram parados. Eram os olhos parados que punham Maria Benta agora confusa, aqueles mesmos olhos que ela bem conhecia, olhos inquietos, olhos indagadores e suspeitos.

Muito tempo, Maria Benta esteve queda a olhar pela porta entreaberta… Afinal decidiu-se a ver de perto, e avançou devagarinho, até junto da cama. Junto da cama, de pé, Maria Benta ainda se deteve a olhar muito tempo. Depois, lentamente, curvou-se, palpou o rosto a Martim Jongo, palpou-lhe o peito, e conhecer que Martin Jongo estava morto.

Maria Benta era mulher muito paciente. Maria Benta não chorou. Nenhum suspiro, nenhuma queixa lhe saiu da boca. Ajeitou o Negro na cama, estendeu-lhe por cima um lençol branco, o mesmo lençol que noutro tempo Martim Jongo tomava todo para si, quando dormiam juntos. Isso feito, foi buscar a um canto do quarto a grande vela de cera, que Martim Jongo tinha guardada para levar um dia ao Senhor do Bonfim, e cuidadosamente a acendeu e pôs à cabeceira do negro. Outro levaria outra ao Senhor do Bonfim!

Agora Martim Jongo parece dormir. Foi o que pensou Maria Benta, ao sair do quarto para ir sentar-se no terreiro com a vaga esperança de que viesse alguém, por bondade, fazer-lhe companhia a velar o defunto. Sentada, esperou.

Maria Benta esperou muito tempo. Vizinhos? Ali mais ninguém morava, e assim, à noite, quem havia de passar pela estrada?

Foi só depois de muito esperar que Maria Benta apanhou seu rosário de contas grossas, e ajoelhou no quarto, ao lado da cama, a rezar pela alma do Negro. Maria Benta era mulher piedosa. Iam-lhe os dedos desfiando, uma a uma, as contas do rosário. Uma conta marcava um padre-nosso, outra conta uma ave-maria. Quando tinham passado quinze contas de padre-nossos e quinze contas de ave-marias, estava rezado um mistério. Maria Benta rezou até cantarem os galos pela segunda vez…

Porque já sentia os joelhos doridos, sentou-se a descansar, um momento, sobre as pernas dobradas. E olho Martim Jongo, olhou-lhe a boca, entreaberta como num meio riso, em contraste com os olhos arregalados, duros, imóveis. Maria Benta parecia cismar, enquanto olhava a cara do Negro. Cismava, talvez, que a alma de Martim Jongo era a alma de um grande pecador. Ou podia não ser esta a cisma de Maria Benta. A verdade é que ela se pôs outra vez de joelhos, e tornou a rezar um mistério. Só no fim da última ave-maria voltou a reparar na cara do Negro, de onde tivera os olhos afastados durante a reza; de súbito o chamou, com voz severa, como quem pedisse contas certas, que foram muito tempo negadas.

– Martim Jongo! Martim Jongo! – chamou a voz severa de Maria Benta. Martim Jongo! Não te lembras da vez que me deste com um chicote por ciúmes de Petronilo?! Pois toma lá!…

Assim disse Maria Benta, e com gesto resoluto fez do rosário um açoite com que bateu na cara do morto. E apostrofou de novo:

– Martim Jongo, Negro impostor! Não te lembras da vez que me botaste fora da cama, e fiquei a noite inteira a dormir no chão? Toma lá!

De novo o rosário flagelou a cara exânime. E Maria Benta continuou invectivando, e açoitando:

– Martim Jongo, Negro mau! Não te lembras da vez que me amarraste de pés e mãos, e foste embora, e só voltaste no outro dia? Toma lá!

– Martim Jongo, Negro malino, Negro ordinário! Não te lembras que me disseste uma noite que minha mãe estava à morte, e eu corri como doida até Tororó para saber, enfim, que era mentira? toma lá!

– Martim Jongo, Negro sem sentimento! Não te lembras que me fizeste andar de quatro pés, à roda de casa, só porque me tinha esquecido varrer o terreiro? Toma lá!

– Martim Jongo, Negro sem alma! não te lembras que me meteste uma brasa na mão porque não havia água na jarra de beber? Toma lá! Toma lá!

– Martim Jongo, Negro sem coração! Não te lembras de quando me rapaste a cabeça porque não estava a comida pronta? Toma lá! Toma lá! Toma lá!

– Ah! Martim Jongo! Negro ruim! Negro ruim! Não te lembras das muitas vezes que me sujaste com nomes feios, como se eu fosse mulher do mundo que ri para todos os homens? Toma lá, Martim Jongo! Toma lá, Negro do Diabo! Toma lá!…

Com o último açoite caiu-lhe o rosário sobre a cara do Negro. Nisto Maria Benta levantou-se, mais que depressa, e deixou o quarto aberto, onde a vela ardia à cabeceira de Martim Jongo, deixou a casa aberta, e saiu. E fora, na madrugada escura e silenciosa, Maria Benta seguiu direito, sem olhar para trás, caminho do arraial distante, onde morava a sua gente.

 

XVI. NOITE NEGRA

Os atabaques toavam.

Percussão simultânea de três instrumentos… Harmonia a todo instante rompida, e renascida. Vibração continuada, encadeada por indefinita ressonância. Música abafada, soturna música, a um tempo remota e próxima, como sombria, ondulosa murmuração da noite. música da noite, música das trevas, nascida, crescida, levada nas trevas; e, perto, ou longe, o seu reclamo retumbava, tombava, torrente invisível.

Ainda quando nos retiros distantes, as Negras fremiam:

– O batuque de Tia Sabina está animado… Ah! Eu lá!

Em casa de Tia Sabina a festa começava. Os convivas lhe vinham de todos os cantos da noite, movidos da cadência fascinante. Vinham por caminhos quase imperceptíveis à claridade das estrelas; e ao surdirem da escuridão, na entrada do terreiro, onde as candeias fumavam sobre estacas altas, homens e mulheres se retinham, cautamente. Mas rápido o fragor imediato dos tambores penetrava nas almas, dissipava os mais íntimos enleios.

Sentados, os tocadores: Zeferino, Juvêncio, Barnabé. Cada qual segurava entre os joelhos o instrumento em que batia com as mãos espalmadas, a marcar a sucessão do ritmo cavernoso. De tempo a tempo, uma pausa; e o derradeiro acorde se prolongava, rolava no segredo noturno, até perder-se ao fundo de um abismo irreal…

– Êta! Zeferino! Você está mesmo bom! – clamava um louvor ao mestre da música.

A pausa era também desafogo de risos e palavras. Tia Sabina, modesta, respondia a gabos amenos:

– Isto hoje, minha gente, não é festa de santo. Apenas um catimbó!

Tia Sabina faz tudo bem feito. Bastava a lembrança de mandar chamar Zeferino… Hein, Zeferino? Depois que se mudou das Brotas, não há mais quem lhe ponha os olhos em cima!

– A culpa é sua, Bertina, que ainda não quis ir a Santo Amaro… Lá também há folguedo! A falar verdade, eu não vim cá pela vontade da mana Sabina… Vim pelo meu gosto de ver mulher bonita!

A um lado três moças cochichavam, de olhos atentos a tudo. todas três de branco: saias pregueadas, cabeções de linho e rendas, ombros nus, braços nus. Os brincos de ouro e coral, nas orelhas pequeninas, e os colares de cores, no pescoço, lhes davam mais brilho à fina lisura da pele retinta. Eram amigas íntimas, de todos sabidas: Florisa, Canduca, Celina. Falavam de um que não viam chegar. Celina falava:

– Só se ele não vem…

– Achas que vem, Florisa?

Florisa alteou as sobrancelhas, e deu com a cabeça de lado. Canduca afirmou convicta:

– Se voltou do Remanso, não deixa de vir… Quando por mais não seja, pela esperança de ver a outra!

– Ele que perca a esperança… A outra tem outro! – replicou Celina. E logo ajuntou conselho de amizade:

– No teu caso, Florisa, eu não daria mostra de gostar daquele tolo!

Florisa alterou-se:

– Tu és boba! Eu nunca disse que gostava…

– Eu só sei que não desgostas!

Canduca olhava a entrada do terreiro. Foi dela a nova:

– Chegou ele.

Rompiam exclamações:

– Casimiro! Casimiro!

– Aqui está quem se esperava!

– Viva o rei dos dançadores!

Casimiro entrou sereno, certo de si. Vinha com dois amigos, mas eram para ele as atenções. Galante, marchou para a dona da casa:

– A sua bênção, Tia Sabina!

– Deus te abençoe, meu sobrinho. Estava eu dando pela tua falta!

Ele expandia-se, abraçado, lisonjeado. Pagava um sorriso mais largo aos amigos preferidos. Parou alegre a falar com Zeferino. Cavaqueou com Juvêncio. Por último reparou nas moças, procurando acaso a uma que não via. Achou-se junto das três amigas.

– Ó Casimiro, nunca vi homem tão esperado! – disse Canduca.

– Riu-se ele, envaidecido:

– Aposto que você também me esperava.

Canduca deu um muxoxo:

– Não vê logo?!

E Florisa?

– Eu nunca espero por quem se faz esperado…

Em frente a elas, apoiadas as mãos na cinta, ele bamboleava o corpo esbelto. Falava preso a outro cuidado. contou-lhes da própria ausência, retido no Remanso, onde tinha o pai doente:

– Agora vou ficar aqui uns dois meses… Era tanta a saudade!

As amigas se entreolharam. Canduca notou, risonha:

– Ninguém duvida. Você sempre gostou de cá…

Casimiro percebeu-lhe uma alusão. Respondeu, sem se dar por achado:

– É verdade…Gosto antigo!

Já Zeferino o chamava para combinar músicas de dança:

– Ora, Zeferino, eu danço tudo! é melhor combinar com estas moças. Demais, ainda não estou pronto!

Tia Sabina interveio. Por que não havia de ser música de santo? A este alvitre, sentaram-se os tocadores, e não tardou que nos atabaques estrugissem os primeiros compassos de uma coreia antiga.

Formou-se a roda. Braços erguidos, e mãos estendidas, suspensas, a tremularem como asas de aves que estão peneirando para pousar, mulheres e homens se meneavam no caminho sonoro da dança. Iam-se lentos, incertos, mal ocupados por pensares errantes, enquanto as flexões do ritmo eram convite indeciso. Tal a fogueira de ramos úmidos, que o sopro do vento pouco e pouco anima… Sutilmente avançavam, retrocediam; sutilmente deslizavam em giro circular. Breve, no entanto, o mundo se fez unidade, e encheu-se a noite universal do fulgor de todas as vozes, fundidas na voz profunda dos tambores – arroubo, turbilhão, vaga imensa arremessada para uma praia inatingível. A maior aceleração do ritmo ajustava a certeza dos movimentos. Música e dança descreviam as mesmas curvas, como se uma e outra não tivessem expressão separada, e cada uma existisse por efeito exclusivo da outra: a dança vibração uníssona, e a música imagens, por mágica transposição dos gestos aéreos que a mimavam.

Casimiro, que fora vestir o traje de gala, reapareceu no terreiro, ainda inquieto. Os olhos lhe buscavam alguém que não viam, e ele não se guardava do despeito, embora o despeito não passasse de devaneio, ou feição diversa de uma dúvida a que não quisesse dar tento…

Os da roda lhe voltavam a cabeça, as mulheres sorriam. O traje de festa fazia-o magnífico. À semelhança dos outros estava de pés no chão, mas ostentava ele só, o busto e os braços nus, e vestia calças de linho branco, presas à cinta por larga faixa escarlate, cujas pontas lhe caíam de lado, arreadas em borlas a modo de duas rosas vermelhas. De vê-lo os homens, admirados, se moviam mais prontos e ágeis, ao passo que as mulheres criavam da própria sensação outra imagem de inefável certeza.

Algum tempo dançou descuidoso, entre Bertina e Celina, figurante indistinto. Mas a dança lhe ardia no sangue, e da pura espontaneidade surgiam perfeição e graça como dons conquistados. A um passo mais troante dos tambores, atirou-se ao meio da roda a voltear longamente sobre si mesmo, nume de asas invisíveis tornado o eixo da roda encendida. Nada mais o detinha, nem nada da difícil realização do jogo alado se revelava a diminuir-lhe a cintilante maravilha. Dança e canto se reacendiam da sua flama – vibração nova, intenção sedutora, e traslado aéreo de experiências longínquas. O mistério criado do espírito absorvia o mundo aparente: tudo o que era explosiva sucessão de acordes, música dos sentidos, suprimia os sentidos para transmutar-se, e encher a noite em que subiam, estrelas de ouro, as palavras do cântico unânime.

Casimiro, dançando ao centro da roda, mal tocava a terra. Em torno, o círculo móbil, que lhe fugia, somente fugia para voltar, e cercá-lo, e envolvê-lo, e fugir-lhe de novo, e buscá-lo, indefinidamente. Pela sua deparava-se a maga presença imaginária, sortilégio de Xangô: o próprio Xangô descido das alturas, e revelado pelo artifício do cântico numeroso; Xangô manifesto, e munificente, e propício, porquanto manifesto:

Oê!      Oê!      Xangô!…

Oê!…      Oê!…      Oê!…      Oê!…

Do mesmo influxo mudava-se a toada reboante para fazer-se branda; e o fragor dos tambores, que a ditava, e se mudava do mesmo passo, brandamente, gravemente, já sugeria o reflexo do trovão que se amortece ao longe. Agora o tom menor, sobrevindo ao desmaio passageiro, era pura harmonia sem motivo.

Homens e mulheres se meneavam mansamente. Ao que fora exaltação, sucedia a graça esperada. Tocados da certeza do Orixá glorioso, participavam todos da presença incomparável, se não que hauriam misterioso amavio da ventura de senti-la. as mulheres, mais que os homens, como que mergulhavam na comunhão perfeita de que se julgassem a causa e o fim; e fruíam nas profundezas do ser as delícias do instante, qual se as devesse embalar perpetuamente. Uns e outros volitavam isolados no próprio enlevo, somente unidos pela encantação dos tambores. Nem eram música e dança mero jogo inconseqüente: juntas tramavam por encanto um caminho prodigioso, estrada aérea sobre o mar noturno que separa o exprimível do inexprimível. No turvo mar noturno tombavam, perdiam-se, por inúteis, os temores e desejos, as penas e dúvidas. Os olhos abertos não viam o que olhavam. O pensamento sem memória abismava-se no tempo imóvel.

Um grito ressoou – estridente, longo, doloroso, e caiu Bertina, que logo levaram mãos diligentes. Ainda, a seguir, um homem e uma mulher caía também, vítimas frágeis a quem cegara o esplendor magnífico… Oh! Xangô é forte! Xangô desdenha os fracos!

Oê!…      Oê!…

Oê!…      Xangô!…      Oê!…

Ao que sente e tem medo não o quer Xangô!

Ao que nada percebe nem se encanta não o quer Xangô!

Ao que moteja e duvida não o quer Xangô!

Ah! Xangô é grande! Quem não crê em Xangô não lhe conhece a força. Xangô é grande! O seu palácio de bronze tem dez mil portas. É ele quem monta o cavalo negro da tempestade. É ele que fala na voz do trovão, e arremessa das alturas o corisco flamejante, para castigar os maus… Só para castigar os maus!

Ah! Xangô é grande! Xangô é grande, valeroso, justo. Xangô vê e sabe. Xangô vê, sabe, e julga os maus e os bons!

Oê!…      Oê!…      Oê!…

Oê!…      Oê!…      Oê!…      Oê!…

Doçura calorosa, completa, exclusiva. Só de senti-la marchavam todos no caminho suspenso, a larga estrada das almas confiantes…

Quando a música parou, viam-se ainda os braços erguidos, os olhos que olhavam além das aparência. Apenas um instante. Ao silêncio, rompeu-se o véu da magia. Vozes, murmúrios, risadas, satisfação física do repouso, no fim da estrada sonora.

Tia Sabina oferecia toalhas aos que estavam molhados de suor, atenta ela mesma a Casimiro, a quem enxugava os braços e o busto gotejantes. E todos o cercavam a ele para louvá-lo, mais ardentes as mulheres:

– Casimiro! Nunca vi dançar tão bem!

Palavras. Palavras que lhe soavam indiferentes.

Ao lado, Florisa disse baixinho:

– Você está pisando corações!

Olhou-a ele, zombou:

– Aí está do que não gosto. Coração de mulher é como pedra que faz tropeçar!

Ao tom da resposta confrangeu-se a moça. Mas a alegria enchia o terreiro. Todos riam e bebiam. É bom beber e rir! E não foi longa a pausa. Em pouco, os atabaques voltaram a bater: de novo a cadência toante se ajustava aos enleios da noite. a roda, refeita, cantava e bailava…

Assim outra vez. Assim muitas vezes.

Jamais Casimiro dançara tão bem, nem nunca ninguém o vira tão belo. Ardiam as Negras jovens. Sob as camisas rendadas, os seios lhes arfavam – os seios que se adivinhavam à feição de beringelas maduras, guardadinhos como presentes que se hão-de receber um dia… E o que desejavam os seis arfantes, bem o diziam os olhos tenebrosos. Em vão o diziam… Em vão! Alheado a tudo, Casimiro dançava tomado de estranho delírio.

– Senhor! Que tem hoje este Negro?

Ao fim de cada bailado, quedava-se avesso, vago, sem gosto. Era a dança que o transfigurava. Então as Negras jovens acendiam mais o fogo dos olhos, faziam meneios gentis… As Negras jovens tentavam mil maneiras com requebros e risos para excitar-lhe a atenção… Seguiam-no, cercavam-no, sombras afáveis do desejo nu. Damiana, Daninha, Dalinda, chamadas as três Dás, pareciam mais que todas apostadas em vencê-lo.

– Senhor! Quem têm hoje estas Negras?

Celina e Canduca notavam, à parte, o jogo provocante. Entre ambas concertou-se um plano malicioso:

– Há-de ser depois da ceia.

– Ele precisa saber que é tolice pensar na outra!

A ceia começou à meia noite, dentro de casa. Tia Sabina arranjara mesa comum na sala da frente, por ser a maior; e na estreita peça lateral, onde se erguia o Peji, adornado desde a véspera, havia outra mesa, igualmente coberta de iguarias. Na sala grande, a maioria dos convivas; na sala do Peji, uns poucos a quem se distinguia. Mais deferência que diferença. Cada um fazia como em sua casa, e nada impedia entrar na sala do Peji. Comida e bebida, quanto quisessem.

– Tia Sabina sabe arranjar as coisas!

Tia Sabina sabia. Nem havia mãe-de-santo mais prezada e respeitada.

Na sala grande, Florisa, filha de casa, fazia as honras da mesa, ajudada por Juvêncio. Na sala do Peji, Celina e Canduca serviam os convivas de honra, Mãe Andreza, duas comadres menos idosas, Zeferino, Casimiro, Ti’ Onofre, alguns outros. Ora em uma peça, ora na outra, Tia Sabina falava, risonha:

– Isto tudo é de comer, meu povo!

Havia muito que comer. Perna de carneiro assada na brasa, galinha nadando em gordura, muqueca, vatapá, caruru, acarajés, abarás, cuscuz, pamonhas…

– Ceia de Tia Sabina é banquete.

– Coma, coma, minha gente, enquanto não se acaba!

Na sala do Peji entrou Daninha: foi ao altar de mãos postas, beijou a toalha branca em frente à pedra escura de Xangô. Depois, a pretexto de dar uma palavra a Mãe Andresa, ficou-se ao lado da velhinha. Bem sabia por que ficava!

Celina e Canduca se entreolharam, entendidas:

– Esta Daninha!

Casimiro, sem dar fé. Mas Daninha, dengosa:

– Ó Casimiro, deixa-me beber um pouquinho do seu copo? Tanta sede!

Daninha bebeu:

– Foi para adivinhar os seus segredos!

Riu ela. Que riso! Celina e Canduca se entreolharam. Conversa muda:

– Esta Daninha Credo!

Surgiu Damiana. Canduca e Celina pensaram:

– Mais uma!

Damiana, tão sonsa! Passou ao lado da mesa, direto ao Peji. Ajoelhou-se por Obá, se não por Iemanjá, baixando a fronte nas mãos… Contrição! Somente ao levantar-se pareceu notar a presença de Daninha:

– Já estavas aqui! – E deixou-se também.

Dalinda veio em seguida. Nem sequer foi aoPeji: entrou rindo, perguntando a Casimiro se era verdade…

– Que verdade?

– Eu sonhei que você ia dançar a dança do fogo!

Ele fez um gesto de indiferença. Daninha exclamou:

– Ai! A dança do fogo, Casimiro! A meu pedido!

Dalinda protestou:

– A seu pedido, não! A lembrança foi minha!

Zeferino interveio:

– Neste caso tenho de ser ouvido! Pois então? Não há dança sem tambor… Eu também quero ser rogado pelas moças!

Riram as moças e as velhas. Casimiro sorriu:

– Está certo. Mas eu só dança se Mãe Andreza pedir!

As risadas redobraram. Mãe Andreza, jovial, afirmou que o seu não era pedido de moça. Assim mesmo, estava feito. Pedia ainda a Zeferino que se obrigasse a tocar.

Zeferino concedeu:

– Não vejo outro jeito. Mãe Andreza não pede: manda! Mas há uma coisa que muita gente não sabe… Dançador, que dança, ou tocador, que toca a dança do fogo, pode botar o sentido no orixá da sua devoção, dançando, ou tocando, que verá realizado o seu desejo. Por mim, ainda não assentei o que Elegbá me há-de fazer… Há tanta cara bonita nesta festa!

Celina, que buscava um pretexto, disse:

– Eu sei de uma pessoa que pode errar no desejo!

Casimiro, aludido, olhou-a. E ela, com desembaraço:

– É você mesmo, Casimiro! Mas eu sou boazinha… Vou ensinar-lhe uma reza forte, que não deixa errar. Está duvidando? Pois vamos ali para a janela… É segredo!

Deu-lhe de olho, e dirigiu-se ao fundo da sala, onde a janela se abria ao lado do Peji. Pressentiu ele alguma coisa que o interessava, mas seguiu a moça contrafeito, agourando mal do que ia ouvir. E agora as Três Dás pensavam, despeitadas:

– Como ela está saída!

Na janela, aberta para a noite escura, Celina apoiou-se de lado, voltada ara ele, que se aproximava sem pressa:

– Primeiro, deixe esses modos! Nem parece o mesmo… Que soberba! É por que estas moças estão doidas por você? Olhe que eu não sou como as outras!

– Que outras?

– As três Dás, que estão ali! Eu já pensava que Daninha e Dalinda queriam brigar por sua causa…

E mudando de tom:

– Não é disso que se trata. Afinal, eu bem sei que o seu pensamento anda distante… Esperava encontrar aqui uma pessoa que não veio! É que você chegou de fora, e ainda não lhe contaram o que aconteceu…

– Não entendo…

– Ora, Casimiro, não se faça de inocente! Lembra-se da vez em que eu lhe disse que homem não sabe escolher? Já naquele tempo andava a sua cabeça virada por causa da mesma pessoa… Nem via você que ela gostava de outro homem, nem via que a pobre da Florisa chorava por sua causa!

Casimiro zombou:

– Estou entendendo tudo. foi Tia Sabina quem lhe ensinou este recado!

– Ora, Casimiro, não seja tolo! Eu sou amiga de Florisa, devo muito favor a Tia Sabina, mas quando falo é por minha conta. Só quero dizer uma coisa, que todo o mundo sabe, e que você nem ao menos imagina. A Nana da velha Brasilina não é mais a que você pensa… Ouviu?…

O Negro ficou impassível. Celina cuidou que se tinha enganado:

– Que é isso? Será que não gosta mais da Nana? Pois olhe, há bem um mês que ela está vivendo com um negociante da Baixa… Dizem até que vai casar com ele, que é branco!

Nada no rosto de Casimiro. Máscara neutra. E Celina, meio surpresa, pensando que se enganara, riu livremente:

– A bem dizer, já estão casados antes do casamento!

– Bum… um… um… bum!…

Era o aviso dos tambores. Damiana, Daninha, Dalinda, que tinham deixado a sala, tornavam, bulhentas:

– Casimiro! Casimiro!

– Acabou-se a conversa! Vamos dançar!

Maquinalmente o Negro voltou-se, marchou para elas, se não para a porta, rodeado, seguido por elas, que lhe falavam a rir, e atravessou a sala grande, saiu no terreiro, aonde todos voltavam. Não tinha na mente imagem clara do que ouvira. Tudo lhe parecia confuso e mau, e sentia o sangue a ferver-lhe no peito como nos momentos de furor. Mas era menos fúria que surpresa, e apenas se dava conta de inconcebível desamparo.

No terreiro, o regozijo dos outros lhe ignorava essa angústia. Zeferino perguntou-lhe, amistoso:

– Então, Nhonhô? Vai ou não vai a dança do fogo?

Ele estacou. Sob a luz das candeias fumarentas luzia-lhe o torso nu. Os braços pendiam inertes, e junto à mão esquerda as borlas da faixa que o cingia, rosas vermelhas, eram duas flores de sangue. Esquecera até que devia dançar… As palavras do amigo, avivando a lembrança, atiçaram-lhe a vontade de escapar à certeza que pungia, e buscar refúgio na dança. Perder-se, afundar-se na acesa voragem, e sorriu a Zeferino ao dizer-lhe que sim, criança magoada a quem o brinquedo oferecido apartava da pena por que chorava…

Apartava-se acaso dessa pena? Não tanto. Queria ao menos alhear-se dela pelo temor de senti-la presente. Vislumbrava remédio na diversão que o pusesse fora de si. Alívio, delírio, esquecimento, embora um instante.

– A dança do fogo! – bradou Zeferino.

Um murmúrio enternecido fluiu de todas as bocas. Os mais pressurosos já pediam que se abrisse espaço, onde o pudessem contemplar no bailado, que nenhum outro ousava, sobre brasas vivas. Tia Sabina julgou necessário intervir:

– Assim não é possível, minha gente!

Fez ela mesma com que se dispusessem todos em roda, a formarem um grande círculo de filas concêntricas, onde as mulheres ficaram à frente. Ao meio do chão batido, Casimiro sozinho.

Seguindo o prelúdio, que os atabaques tangiam, ele começou dançando no mesmo lugar. Dançava ereto, nas pontas dos pés, a fronte inclinada, os olhos baixos, e os braços como duas asas mal desprendidas para o intento do vôo… Depois, pela bordado círculo, foi uma fuga fantasista. O movimento e a música traçavam por imagens, logo desfeitas, o proêmio de um conto da floresta mágica…

Na mágica floresta o ardente amado corre em pós da amada risonha, da amada que mais se nega, e se esconde, para Ter maior o prazer de dar-se: os gestos desenham na trama da harmonia sinuosa as negaças e o meneios daquele que busca, pressentidos, iludidos, pela bela fugitiva.

Na mágica floresta o ardente amado detém-se para escrutar o silêncio, o silêncio que foge. Seu instinto suspeita de perigo que não sabe, criado longe, e que talvez se aproxima… Suspeita, e receia pela moça que se oculta no mistério da espessura.

Já o perigo está perto: é o fogo! O jogo abraça e abrasa a mágica floresta, e infiltra-se, diviso, e voa, múltiplo, e passa, fantástico. E o bramido, feito de tonos profundos, e crepitações tumultuosas, engana os sentidos… Como se viesse das entranhas da terra! Como se reboasse de toda parte!

Clama nos tambores – nos tambores! – o rúbido bramido, como a reboar de toda parte. No meio do terreiro, vive o terror com a surpresa: Casimiro dança sobre brasas vivas. É o bailado que se faz remoinho, vertigem e alucinação, a unir no mesmo símbolo a realidade do fogo e a dolente visão de amor…

O homem dança no meio da floresta, dentro do fogo, que o separa: em torno, a multidão se teme por saber que o envolvem malefícios iníquos; e olhando, e ouvindo, acompanha o quimérico desespero em que o sente sozinho contra as forças punitivas do destino…

Casimiro dança. Dança, arrebata-se ele mesmo na ilusória representação para ver realizar-se o mundo que arranca aos arcanos da magia sonora. Dança, procura a sombra imaginária que foge, e que se lhe afigura a outra, humana e dileta, escolhida do seu desejo. Dança e conhece agora, somente agora, que o feriu a malícia de fados inimigos, enquanto sobre a púrpura de brasas, derramada no terreiro, as imposições do ritmo, a que se encadeia, mais e mais o exasperam, aumentando-lhe confusamente a impossibilidade de livrar-se, do amor não, das forças odiosas e contrárias que o impedem… A púrpura de brasas, já confundida no pó do chão, foi apenas pretexto. Toda a sugestão deriva do jogo instável, o jogo numeroso que os tambores lhe ensinam a bordar na trama de escuros sentimentos. A mágica floresta é a sua alma, que arde, prisioneira do próprio desespero. Mais e mais os desígnios da música se fazem bravios; e mais o enleiam as flamas, flama ele mesmo, dispersa, una, incoercível, infalível, que se lança, e se retrai, e se precipita de novo, surpresa constante, renovada constantemente – até perder-se na imobilidade silenciosa.

O clamor das vozes cobriu a última ressonância dos atabaques. Zeferino gritou:

– Ah! Negro bom! Você dançou como dez!…

Casimiro, a quem já Tia Sabina enxugava o suor, que lhe corria do rosto, das costas e do peito, parecia tranqüilo. Mas logo, sem dizer palavra, atravessou o terreiro, lentamente, e desapareceu no meio das árvores.

Ninguém mais teve notícia desse Negro.

 

XVI. MESTIÇA

Vaga reviva sonha

Na plenitude noturna de teus olhos

A insondável magia

Da Afrodeia primária – a amante insone

– Alma solar que o Sol tomou sozinha.

 

Revemo-la por ti… Sombria irmã da Noite!

Repousa-lhe a cabeça encantadora

Em travesseiro de areias moles

– Nas areias de onde lento o Nilo rola:

Suspende-se alto o céu azul do leito

E ela oferta estendido ao luminoso amante

O imane corpo dormente.

 

Túrbida imagem miragem vertigem!

– Cerra-se o laço dos braços tenebrosos

Na muda volúpia do conúbio divino

E sobe no mistério das idades

O eflúvio obscuro das florestas virgens

O quente olor do seio promissório…

 

Na plenitude escura de teus olhos

Revive a graça ingênua e vária

As mudas carícias da deusa sombria

E o delírio de estranhos amavios

Que se guardou na candidez antiga

Da raça nua e sem pecados.

 

Mas tu és só, glória do mundo! Glória!

Glória! As sutis influências lunares

Pressentem sentem a inata semente

Que dorme intacta no teu ventre

– Dom que será de outra sazão mais clara…

 

Para o vale de teu corpo onduloso

Vieram de ínvios extremos dois rios silenciosos

– A corrente do Sul profunda e lenta

E a do Norte caudal de mil torrentes…

(No úmido vale onduloso

Sob o espelho da água escura

Um deus ignoto oculta um signo obscuro…)

 

Em tua pele macia

Amanhece um destino que promete

– Promessa de ouro nova claridade

Menos presente que suspeita…

De tua pele dourada se evade

A certeza da Noite de onde vieste!

 

Purpúrea síntese promessa de unidade

Maravilhoso instante entre dois mundos!

Promessa – e coisa dada!

Aparência esperada!

Flor de magia a tua boca se desata

No sorriso de desígnios profundos!

 

Forma nova purpúreo vaso de promessas

Forma gentil sombra purpúrea… Forma e sombra!

– Ó tímida mensageira indecisa

No indeciso limite de dois mundos

O deus ignoto vela o segredo de teu sorriso.

 

Promessa inefável! Mensagem flagrante!

 

(Da invisa margem distante

– da outra margem do Tempo

As almas passam – insetos incertos…

Voam revoam em redor da mesma flma

Incessantes clamantes amantes!)

 

Quando amor sopre a subitânea centelha

Para abrasar-te sombria amada

– O eleito irá perder-se em teu regaço

Atado às lisas lianças de teus braços…

E tombará sobre teus pés uma rosa vermelha

Flor de sol flor de sangue – desfolhada.

 

Clique aqui: quase 3.000 poetas e críticos da lusofonia!

Agulha - Revista de Cultura

 

 

Secrel, o provedor do Jornal de Poesia

 

 

 

Só a DIDÁTICA em prol do Homem legitima o conhecimento

A outra face do editor Soares Feitosa, o tributarista