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Augusto de Campos


 


Transertões


 

 

No extenso acervo da literatura crítica de "Os Sertões'', tão saturado que parece deixar pouco espaço para alguma nova vereda, diversos estudiosos chamaram a atenção para os aspectos poéticos da linguagem euclidiana. Resistente às categorizações estilísticas, a obra já foi qualificada como quase tudo, de romance-poema-epopéia (Afrânio Coutinho) a ensaio de crítica histórica (Franklyn de Oliveira), nenhuma classificação logrando definir-lhe cabalmente os contornos (1).

Ao próprio Euclides não haveria de desagradar a atribuição da categoria poética ao seu livro, já que ele próprio chegou a conceituá-lo, numa dedicatória, "poema de heroísmo e brutalidade", como lembra Olympio de Sousa Andrade ("História e Interpretação de `Os Sertões' '', São Paulo, Edart, 1966, pág. 359). De fato, as palavras "poesia", "poema", empregadas em sentido amplo, emergem instintivamente à leitura do livro, sinalizando o viés estilístico que nos impede de enquadrá-lo "tout court" como prosa. Outra coisa, porém, é considerar o que se poderia chamar, mais rigorosamente, de poética de "Os Sertões'', ou seja, os traços específicos que definem a linguagem da poesia que reponta no texto, extraindo-o, em momentos relevantes, do domínio típico da prosa, de ficção ou outra.

Dentre tais características avulta o emprego do verso. Nesse sentido, ninguém parece ter ido tão longe como Guilherme de Almeida, nem haver sido tão preciso quanto ele no apontar o implícito e muitas vezes flagrante alento versificatório da frase euclidiana. Em tom despretencioso de cronista, publicou o poeta, há 50 anos, no "Diário de São Paulo" de 18/8/46, percuciente artigo intitulado "A Poesia d'`Os Sertões'±", no qual assinalava a existência de numerosos versos metrificados ou livres e mesmo de alguns excertos poéticos, no texto.

Eu desconhecia o estudo de Guilherme (2), ao qual desde logo rendo minhas homenagens, quando tive a idéia de intentar, por minha parte, uma leitura verso-espectral de "Os Sertões'', pondo ênfase, em particular, nos decassílabos e dodecassílabos (predominantes que são em nossa literatura poética tradicional), para pré-estabelecer limites à pesquisa. As várias coincidências de leituras e conclusões me fazem crer no acerto do caminho vislumbrado, ao mesmo tempo em que situam esta minha modestíssima contribuição aos estudos euclidianos como uma extensão, ou um desenvolvimento, da vereda aberta, há meio século, pela poeta de "Raça''.

Sem pretender ser exaustivo ou completo, até porque há casos de ambiguidade e dúvida que não favorecem uma contagem exata, e procurando privilegiar aquelas situações frásicas em que a trilha métrica soa conatural ao ritmo da fala, cheguei a mais de 500 decassílabos significativos, com predominância dos sáficos (acentuados na 4¦ e 8¦ sílabas) e heróicos (acentuados na 6¦), e a pouco mais de duas centenas de dodecassílabos (dentre os quais muitos alexandrinos perfeitos) (3). "Os Sertões'' começa com um decassílabo heróico: "O planalto central do Brasil desce...'' e, como já observara Guilherme de Almeida, termina com um solene alexandrino: "...as linhas essenciais do crime e da loucura.'' (4.

Se descermos, com Euclides, o planalto do seu primeiro período, defrontar-nos-emos com mais um dodecassílabo, pois a linha, completada, pode ser lida assim: "O planalto central do Brasil desce nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas.''.

Ainda na mesma página encontramos um decassílabo sáfico: "um aparelho litoral revolto'' e um dodecassílabo regular (se lidas com sinérese as palavras "cumeadas" e "corroídas") ou um "alexandrino arcaico" (se assim lida apenas a palavra "cumeadas"): "riçado de cumeadas e corroído de angras''.

Um pouco adiante, chegaremos a um novo decassílabo heróico (já flagrado por Guilherme de Almeida), a finalizar o segundo parágrafo: "...num ondear longínquo de chapadas.''.

E, logo na página seguinte, a um decassílabo e um dodecassílabo ostensivos: "os recessos das matas opulentas'' e "o antagonismo permanente das montanhas.'' (ambos também registrados por Guilherme).

Essa desenvoltura versejante do autor d'"Os Sertões'' não escapou -tão evidente é- a outros estudiosos, que, no entanto, tenderam a vê-la antes como um defeito "parnasiano". Assim, Augusto Meyer, sublinhando na linguagem euclidiana "o fine excess da poesia", indigita na cláusula final de uma descrição da igreja de Canudos, o que chama de "sovado alexandrino antitético e chave de ouro dos sonetos parnasianos": "...a suprema piedade e os supremos rancores...'' (5).

Assim também Eugênio Gomes, que vê "soar às claras", na "trama estilística" de Euclides da Cunha, "o eco do tantã parnasiano".

Contrasta-o com Raul Pompéia, em que aponta, com acerto, ao mesmo tempo a superação da métrica e a presença de resquícios métricos em seus livros, recenseando, a título de exemplo, em "O Ateneu'', o sugestivo decassílabo "como uma sombra por um chão de paina". "Quem quiser captar decassílabos e alexandrinos no estilo de Pompéia'' -afirma Eugênio Gomes- "encontra-los-á em toda a parte de suas obras, sobretudo em `O Ateneu', mas em certos trechos desse romance é que o número cedeu a uma fluidez mais característica de impregnação simbolista" (6).

Sem discordar inteiramente dos dois ensaístas, tenho para mim que Guilherme de Almeida colocou com superior sensibilidade poética a questão do verso n'"Os Sertões''. Descontada a maior inclinação de Pompéia para as nuances e abstrações simbolistas, seria fácil demonstrar em Euclides análoga independência do número métrico, já que o movimento rítmico de suas frases ultrapassa de muito as contagens convencionais, entrando as cristalizações silábico-acentuais pré-determinadas apenas como componentes relevantes em pontos-chaves de suas proposições.

Por outro lado, não só a incidência de padrões métricos é maior na prosa euclidiana como parece injusto identificar os seus "versos" com a caricatura do parnasianismo, havendo em seu acervo coisa muito melhor do que o desestimulante exemplo pinçado por Augusto Meyer.

Para contrapor-lhe só alguns casos expressivos, cite-se, por exemplo, além das linhas já apontadas, aquele dístico dodecassilábico que desponta já no primeiro capítulo ("A Terra"), prestigiado em parágrafo autônomo, e no qual Euclides saúda a mudança da estação na árida paisagem nordestina:

"Sobre o solo, que os amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.'' (56) (7).

Logo adiante, a renomada descrição do sertanejo, que se inicia com um flagrante decassílabo sáfico -"O sertanejo é, antes de tudo, um forte''- passa também por alguns versos enfáticos, como o decassílabo do tipo heróico: "a fealdade típica dos fracos'' e o dodecassílabo: "a translação dos membros desarticulados'' (129), que lembram Augusto dos Anjos (8), para culminar no fecho dodecassilábico, projetado em parágrafo autônomo:
"É o homem permanentemente fatigado.'' (130).

Na conhecida cena da "vaquejada" explode uma das melhores criações do verso alexandrino de Euclides: "estrídulo tropel de cascos sobre pedras'' (141) com a sucessão de células fonêmicas "tr'', "tr'', "br'', "dr'', associada às correntes subjacentes de sons sibilantes e rascantes (cascos) e a inversões semipalindrômicas ("tropel'' - "pedras''), tudo contribuindo para a iconização sonora do tropear da boiada.

Não menos digno de nota é o dodecassílabo alusivo aos "bois espectrais" que se apegam ao vaqueiro, "urrando em longo apelo triste que parece um choro'' (153) (cláusula final de extenso período, também correlacionado ao universo do sertanejo e da seca).

Em pauta oposta à dos dois ensaístas acima referidos, Guilherme levou o seu entusiasmo a comparar uma linha (um dodecassílabo) do conhecido trecho do "estouro da boiada": "ruído soturno e longo de trovão longínquo...'' (143) à "onomatopéia virgiliana": "insonuere cavae, gemitumque dedere cavernae''.

Eu poderia citar aqui muitos outros exemplos que demonstram existir em Euclides muito mais do que um mero epígono parnasiano, um escritor que sabe utilizar-se dos recursos do verso para construir áreas pregnantes de poesia em trechos significativos da sua prosa. Mas prefiro, por ora, sublinhar alguns outros aspectos que ressaltam a importância desses recortes métricos na estilística d'"Os Sertões'', deixando que falem por si próprios em suas múltiplas nuances os "versos" euclidianos, à medida que forem citados.

Observei, desde logo, que tais construções encontradiças em sua prosa se situam predominantemente no início e no fim de períodos. Algumas vezes erigem-se em frases completas, postas em destaque, constituindo até mesmo parágrafos isolados (9). Tal constatação acentua o relevo que Euclides conferia a esses verdadeiros enclaves lingüísticos, onde o enxerto de uma seqüência metrificada parece querer dar à passagem uma luz própria e definida.

Eis, a seguir, uma lista dos principais versos (decassílabos e dodecassílabos) que o autor privilegiou com parágrafos destacados e autônomos n'"Os Sertões'':

Trechos:

"É uma paragem impressionadora.'' (25)
"É uma mutação de apoteose.'' (56)
"Entra-se, de surpresa, no deserto.'' (86)
"É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.'' (87)
"É o homem permanentemente fatigado.'' (130)
"Vimo-lo neste `steeple-chase' bárbaro.'' (131)
"Decorre-lhes a vida variada e farta.'' (137)
"E assim passam numa agitação estéril.'' (139)
"É o prelúdio da sua desgraça.'' (149)
"É mais um inimigo a suplantar.'' (152)
"Esta ilusão é empolgante ao longe.'' (276)
"Ali estava -defronte- o sertão...'' (278)
"Correra nos sertões um toque de chamada...'' (333)
"Foi uma diversão gloriosa e rápida.'' (350)
"Não o combate; cansa-o. Não o vence; esgota-o.'' (466)
"Irrompiam, troteando, no terreiro...'' (509)
"E o dia derivou tranquilamente.'' (591)
"Era a suprema petulância do bandido!'' (597)
"Um primor de estatuária modelado em lama.'' (601)
"Terminara afinal a luta crudelíssima...'' (628).
 

Registrem-se estes dísticos-parágrafos, o primeiro constituído de dois decassílabos:

"A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre.'' (158), o segundo, por um alexandrino e um decassílabo heróico, dominados pela acentuação na sexta sílaba:
"Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio.'' (291).
 

É claro que o simples fato de estarem metrificadas não confere a todas essas frases a condição de poesia. Faltam a várias delas outras características que as distingam da mera enunciação fática ou as façam ultrapassar os casos de coincidência da fala natural com o verso, mas não deixa de ser assinalável a sua apresentação em situações destacadas, com essa configuração. Muitas vezes, a frase autônoma adquire destaque no bojo de um parágrafo. Por exemplo (10):

"O sertanejo é, antes de tudo, um forte.'' (129) (G.A.)
"O vaqueiro do Norte é a sua antítese.'' (132)
"Fez-se homem, quase sem ter sido criança.'' (133)
"Era a objetivação daquela insânia imensa.'' (201)
"Confudia-se com o próprio chão.'' (203)
"Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas.''(251)
"A travessia foi penosamente feita.'' (340)
"Quebrara-se, de vez, o encanto do inimigo.'' (350)
"Far-se-ia o expoente da nevrose.'' (351)
"Renovou-se a investida febrilmente.'' (353)
"Ninguém os vê; ninguém os pode ver.'' (524)
"Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no.'' (524)
"Tinha o que quer que fosse de um castigo;'' (603)
"Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo.'' (604)
"Esvaziou-se, de repente, a praça.'' (628)
"Os demais prosseguiam impassíveis.'' (638)
"Octogenário, não se lhe dobrava o tronco.'' (638)
"Vimos como quem vinga uma montanha altíssima.'' (643),
 

podendo espraiar-se por mais de uma linha versejante:

"O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone.'' (89)
"Enfiava pela frente todos os caminhos, batia o alto de todos os morros,
batia o fundo de todos os vales.'' (425)
"Volvia à noite para o acampamento, desinfluído e com as mãos vazias.'' (460)
"Quem se aventura nos estios quentes à travessia dos sertões do Norte, afeiçoa-se a quadros singulares.'' (511)
"Por fim a existência aleatória, a terços de rações, quando as havia,dividindo-se um boi por batalhão, e um litro de farinha por esquadra.'' (540).

É comum que o discurso se alce em pauta métrica no início da frase, às vezes em seqüência de dois versos, descontinuando-se a seguir em prol do fluxo livre da narrativa. Exemplos significativos:

"Varada a estreita faixa dos cerrados,'' (23)
"À luz crua dos dias sertanejos,'' (27)
"Na postura, no gesto, na palavra,'' (132)
"Rebrilham longas noites nas chapadas,'' (150)
"À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra,'' (152)
"Espécie de grande homem pelo avesso,'' (193)
"Chegavam, estropiados, da jornada longa,'' (204)
"Na claridade amortecida dos braseiros,'' (217)
"A religiosidade ingênua dos matutos'' (275)
"Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham,'' (276)
"A natureza toda quedava-se imóvel'' (305)
"O tropear soturno das fileiras'' (340)
"E nesse prosseguir tumultuário,'' (361)
"Dentro da claridade morta do crepúsculo'' (368)
"Os demais, sucumbidos de fadigas'' (404)
"O Sol irradiava a pino sobre a terra,'' (523)
"Transverberando nas rochas expostas,'' (523)
"Sob a adustão dos dias ardentíssimos,'' (539)
"Enquadrinharam-na, porém, debalde, os êmulos do Muribeca astuto,'' (160)
"Ao chegarem da rota fatigante, rompendo, surpreendidos, pelas ruas'' (278)
"Partira-se o prestígio do soldado, e a bazófia dos broncos cabecilhas'' (379)
"Descia a noite. De Canudos ascendia - vibrando longamente pelos descampados'' (473)
"Mas este resistir a todo transe, em que entravam os próprios moribundos,'' (585).

Chamam a atenção, talvez ainda mais, os numerosíssimos
sintagmas conclusivos de orações. Decassílabos:

"a ossatura partida das montanhas.'' (22) (G.A.)
"o aspecto atormentado das paisagens.'' (25)
"e entoando a cantiga predileta...'' (59)
"o mesmo batedor sinistro, o incêndio.'' (67)
"um círculo vicioso de catástrofes.'' (72)
"a norma `verticalis' dos jagunços.'' (126)
"a fealdade típica dos fracos.'' (129) (G.A.)
"os meandros das trilhas sertanejas.'' (129) (G.A.)
"-é um vitorioso jovial e forte.'' (133)
"o espantalho das secas no sertão.'' (133)
"a insurreição da terra contra o homem.'' (150)
"melopéia plangente dos benditos.'' (204)
"finge que ora, remascando cifras.'' (219)
"lembra uma enorme escadaria em ruínas.'' (279)
"na ossatura rígida da serra.'' (294)
"em arremessos doidos contra o vácuo.'' (300)
"entre caída multidão de espectros...'' (305)
"desafiando as últimas granadas;'' (305)
"a palavra de ordem da desordem.'' (318)
"-era a caricatura do heroísmo.'' (319)
"em longo risco negro e tortuoso.'' (344)
"a onda rugidora dos jagunços.'' (376)
"um empolgante lance teatral.'' (425)
"feitas a um tempo lares e redutos.'' (445)
"caía-se num dédalo de sangas.'' (445)
"ao minotauro de seis mil estômagos.'' (462)
"sem que o jejum lhes sopeasse o arrojo.'' (463)
"o derradeiro ímpeto da tropa.'' (489)
"na praxe costumeira das tocaias:'' (492)
"-desafiando um choque braço a braço.'' (493)
"malbaratado a vida em toda a linha.'' (493)
"moribundos e desafiando a morte.'' (494)
"feito um rasgão no firmamento escuro.'' (498)
"a luta mais brutal dos nossos tempos.'' (517)
"laivos rubros de calças carmesins...'' (521)
"irrefreáveis frêmitos de espanto.'' (570)
"distante dois quilômetros -Canudos...'' (573)
"vigilante, tenteando a pontaria.'' (585)
"a moldura lutuosa dos incêndios;'' (605)
"se acolheram os últimos jagunços.'' (608)
"devorando talvez os próprios donos.'' (619)
"-o templo monstruoso dos jagunços.'' (608)
"seguindo a extensa fila de infelizes...'' (639).


Dodecassílabos:

"para o desenho dos relevos estupendos.'' (25)
"para abranger de um lance o conjunto da terra.'' (35)
"a translação dos membros desarticulados.'' (129)
"a criação bizarra de um centauro bronco:'' (131)
"ruído soturno e longo de trovão longínquo...'' (143) (G.A.)
"evaporando-se sugado pelo solo.'' (151)
"não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.'' (151)
"nas noites misteriosas de luares claros.'' (154)
"mais alto que as mais altas catedrais da terra.'' (160)
"se acotovelam gênios e degerados.'' (169)
"entre a caverna primitiva e a casa.'' (201/2)
`uma torrente escura transudando raios...'' (261)
"matéria-prima dos períodos retumbantes.'' (279)
"-homens inermes carregando armas magníficas.'' (285)
"o homem que foge à morte e o homem que quer matar.'' (351)
"dentro de cinco mil casebres em ruínas.'' (424)
"ressudava o salmear merencório das rezas.'' (493)
"sob uma irradiação de golpes e de tiros.'' (524)
"coberto ainda da poeira das batalhas.'' (556)
"um desmedido semicírculo de assédio.'' (567)
"naquela imensa ruinaria de Canudos.'' (602)
"predispunham-se a um suicídio formidável. (64).
Alguns, dentre esses "versos" obedecem a uma mesma estrutura, privilegiando ora o infinitivo:
"num ondear longínquo de chapadas...'' (14) (G.A.)
"um estalar de chifres embatendo...'' (141)
"um ondular de risos mal contidos...'' (346)
"um cascalhar de risos abafados.'' (578)
"um longo uivar de ventania forte'' (595)
"um convulsivo pervagar de sombras;'' (629/30),

ora o substantivo:

"num delírio de curvas incorretas.'' (214)
"-num desmoronamento secular e lento.'' (291)
"-num vaivém de avançadas e recuos.'' (294)
"numa dissipação inglória de valor.'' (360)
"num longo enxurro de carcaças e molambos...'' (637).
Adquire certa tipicidade a colocação terminal de proparoxítonos, crescentes na parte final do livro:
"caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo.'' (204)
"as noites sobrevinham frigidíssimas.'' (506)
"um círculo vicioso crudelíssimo.'' (539)
"retumbou a atroada de explosões fortíssimas.'' (629).
 

Como nos outros casos, desdobram-se aqui e ali em dísticos os "versos" fim-de-frase:

"exuberando floração ridente em meio da desordem tropical.'' (51)
"a inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo.'' (56)
"gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos.'' (217)
"perturba-se em atalhos, ondulante, tornejando sem número de encostas.'' (436)
"atropelando pelotões inteiros no recuar precípite da fuga.'' (521).
Frequentemente, as cláusulas finais constituem remates de capítulos ou seções destacadas, o que sublinha a sua presença enfática:
"e as geadas branqueiam pelos campos...'' (93)
"que ali estão -abandonados há três séculos.'' (127)
"ocultos no sombreado das tocaias.'' (136) (G.A.)
"e pelo passo tardo do profeta...'' (197)
"como uma nódoa amplíssima de sangue.'' (301)
"caiu durante o dia sobre a tropa...'' (458)
"um esconjuro doloroso e trágico...'' (491)
"-os documentos vivos da catástrofe...'' (503).
Vezes há em que vários metros se combinam, homogeneizados quase sempre pela acentuação fundamental:
"O sol poente desatava, longa a sua sombra pelo chão.'' (40)
"lembrando um bracejar imenso, de tortura da flora agonizante...'' (49)
"O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, (G.A.)
“um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias...'' (136) (G.A.)
"no alto dos muramentos rudes ou em despenhos ao viés das vertentes
-apareceram os jagunços, num repentino deflagrar de tiros.'' (291)
(neste último caso, versos de 8 a 10 sílabas, seguindo-se o dístico já mencionado, composto de um alexandrino e um decassílabo heróico):
"Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio.''.

Ou, mais adiante, combinando um octossílabo e um dodecassílabo com acento na oitava sílaba:

"Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha.'' (639).

 

Além da versificação, que evidentemente não se resume a
decassílabos e a dodecassílabos, estes mesmos oferecendo
variantes como o "alexandrino arcaico", de passo largo, que pode
ser exemplificado por:

"a galhada sem folhas da flora sucumbida'' (39), ou:
"um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.'' (62),
ou ainda:
"a barreira intangível dos descampados brutos'' (97), há recursos
tipicamente poéticos muito bem explorados por Euclides.
Assim as aliterações:
"em tubérculos túmidos de seiva'' (50)
"como víboras verdes pelos ramos'' (55)
"-vasto terraço onde vagueiam dunas-'' (61)
"dédalo desesperador de becos estreitíssimos.'' (201)
"sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes.'' (214)
"Tiroteios durante o dia todo.'' (499)
"Irrompiam, troteando, no terreiro...'' (509)
"diluíam-se em duende'' (522)
"Sob a adustão dos dias ardentíssimos'' (539)
"cômicos, céleres, de cócaras, correndo'' (615)
"transmutação de trecho torturado'' (623)
"Doíam desapontamentos de derrota.'' (632)
 

As sibilações, não raro acrescidas de ecos internos, como nestes
exemplos, onde pelo menos uma linha resulta em dodecassílabo
regular (alexandrino, no primeiro caso):

"riscando um assovio suavíssimo nos ares,
como um `psiu'
insidiosamente acariciador da morte;'' (578)
"num rastejar
serpejante de grandes sáurios silenciosos'' (611).
Ou as paronomásias:
"Erguia, lentamente, a face macilenta,'' (325)
"A tropa combalida abalou à tarde'' (340)
"abombados, rengueando sobre as pernas bambas'' (365)
"rolou até a sanga do hospital de sangue'' (472), às vezes também
combinadas à aliteração, como neste "verso" que finaliza uma
seção:
"o crebro crepitar dos tiroteios...'' (570), logo adiante
desenvolvido numa linha desbordante da métrica:
"o tiroteio, cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de
tabocas estourando nos taquarais em fogo.'' (587).
 

Fruto de pura intuição ou de consciente artesania, o fato é que a todo passo reponta um notável domínio sonoro do encadeamento das palavras na frase, como se pode ver, por exemplo, em: "o tropear soturno das fileiras'' (340), onde a pulsão vocálica ("o-ô-e-á-o-ú-o-á-i-ei'') induz a um decrescendo de vogais abertas para vogais fechadas. Ou ainda em: "um cascalhar de risos abafados'' (578), em que dois grupos vocálicos ("a-a-á'') se interespelham em ecos onomatopaicos.

Embora refuja ao âmbito deste estudo, não é despropositado evocar aqui o acentuado recurso da comparação ou da metáfora, que reforça o teor poético de muitas passagens, sem necessariamente estar vinculado aos "versos", como nos seguintes exemplos, que não resisto à tentação de citar: "semelhando-se a um enorme polvo de milhões de antenas,'' (412)

"Mas o primeiro tiro partiu e bateu em Canudos como um calhau numa colméia.'' (455), ou nestas curiosas associações gráficas ou tipográficas: "feito enormes carimbos, em moldes, os rastros velhos das boiadas;'' (53) "caracteres negros espetados em ponto de admiração, compridos como lanças.'' (550) "pontos de admiração rígidos como estocadas de sabre;'' (558), ou ainda nesta linha que pode ser lida como um dodecassílabo, com diérese entre "terra" e "irradia", e que Guilherme de Almeida aponta como típica das "cintilantes imagens poéticas" do livro: "a terra irradia como um Sol escuro.'' (39).

O mesmo Sol (grafado com maiúscula no livro) propiciaria esta outra imagem apreciável, engastada num decassílabo heróico: "como uma nódoa amplíssima de sangue...'' (301).

Se desprezarmos a metrificação estrita e admitirmos maior liberdade rítmica, chegaremos facilmente à constituição de verdadeiros poemas autônomos, em verso mais ou menos livre, como já acentuara Guilherme de Almeida, "editando", entre outros, o fragmento que denominou de "A Vaquejada'' (11).

(Proponho outro recorte para o mesmo trecho, que intitulo "Rodeio'' -pág. 141-, e que, na minha leitura, se avizinha mais do verso heterométrico que do verso propriamente livre, projetando três decassílabos e um alexandrino).

Procurei identificar alguns desses "poemas", que anexo a este estudo. Quase todos eles foram obtidos sem alteração do texto ou da pontuação. Em geral apenas recorto as linhas para pôr em evidência os ritmos mais expressivos.

"Soldado'' junta dois fragmentos, encontrados respectivamente nas págs. 40 e 41. No caso de "Cabeças-de-Frade'' (54) suprimi duas palavras iniciais ("Têm como'') e no de "Igreja Nova'' (213-214) cancelei algumas passagens definidamente prosaicas ou menos densas de ritmo para aproximar algumas linhas. Os demais estão íntegros: "Os Crentes'' (197), "Tocaia'' (291), "O Atirador'' (293), "O Monstro'' (524). Em "Monte Santo'', os três primeiros trechos foram extraídos da mesma seqüência (págs. 160 e 161), o último de uma passagem bem ulterior (págs. 275-276).

Em "Canudos-Iduméia'' (469), a epígrafe é obviamente minha e quer apenas, no entrecruzamento da referência a Iduméia (a "terra estéril" bíblica, tomada por Stéphane Mallarmé como símbolo da gestação solitária do poema), acusar uma coincidência curiosa, "discordia concors" textual, lembrando também que em 1897, o ano em que Euclides iniciava a árida saga da sua grande obra, Mallarmé lançava os dados do seu livro livre. O mais é tal qual. A última linha pode ser lida como decassílabo, admitindo-se o recurso da sinalefa (a primeira sílaba absorvida pela final do "verso" anterior).

Uma outra experiência foi criar o soneto composto com os dodecassílabos euclidianos (poderia ser a minha "soneterapia 3"), desmontando e remontando frases, um pouco no espírito de John Cage "writing through" textos alheios, como operação crítico-pragmática de exploração prospectiva da linguagem poética virtual.

Qual o sentido dessa perquirição textual e desses exercícios de estilo, que põem a nu os extratos poéticos de "Os Sertões''? Não é, por certo, querer, ingenuamente, converter em poesia a prosa de Euclides, num torneio artificioso de alquimia verbal. O que se pretende é demonstrar o quanto as estruturas poéticas -no seu adensamento rítmico, plástico e sonoro- contribuíram para dar ao texto o "tonus" peculiar que é a sua marca impressionante. Em muitos dos mais altos trechos do seu livro, naqueles precisamente em que ele se revela mais original e persuasivo, recorreu Euclides aos métodos da poesia -o que, é claro, não se restringe à adoção de ritmos e metros, embora estes intervenham com significativa parcela para essa caracterização, mas também no emprego de condensadas figuras de linguagem -metáforas, metonímias, antíteses-, tudo convergindo para transtornar o discurso meramente didático ou expositivo e dar-lhe a configuração sensível e diferencial que eleva o repórter de Canudos às alturas de um notável criador literário.


NOTAS
1. Franklyn de Oliveira dedica o primeiro capítulo de "Euclydes: A Espada e a Letra'' (Rio, Paz e Terra, 1983) à refutação das classificações anteriores de "Os Sertões'' como obra de ficção, romance, narrativa heróica, epopéia em prosa, romance-poema-epopéia, narração romanesca e saga, e o faz com fundados argumentos, mas a que ele mesmo propõe -ensaio crítico histórico- afigura-se no mínimo tão insuficiente quanto as demais.
2. Vi-o referido no livro de Olympio de Sousa Andrade e, após consulta à Casa de Guilherme de Almeida, consegui obter uma cópia microfilmada no Arquivo do Estado de São Paulo.
3. Afirma Guilherme de Almeida: "É notável a preferência de Euclides pelo verso decassilábico. Há nisso, certo, uma imposição atávica, pois que essa, de dez sílabas, é a medida nobre do verso português: a pauta uniforme d'`Os Lusíadas'±".
4. Com muito exagero apreciativo, diz o poeta, a propósito: "Tão dominante é em Euclides, como em todo grande poeta, essa necessidade técnica da chave de oiro, que a derradeira linha d'`Os Sertões', a última de `A Luta', contém, na macabra descrição do cadáver do Conselheiro, um dos mais belos alexandrinos jamais compostos em nossas letras, pela profundeza do fundo e pela formosura da forma''. Embora, a rigor, não encerre o volume, a linha constitui, realmente, o fecho do livro ("Fechemos este livro.", começa esta seção), restando, além dela, apenas as "duas linhas" que compõem a seção VII, proferidas à guisa de "post scriptum" ou nota: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...".
5. Augusto Meyer, "Nota Sobre Euclides da Cunha", em "À Sombra da Estante'', Rio de Janeiro, José Olympio, 1947.
6. Eugênio Gomes, "Pompéia e a Métrica", em "Visões e Revisões'', Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1958.
7. Os números que acompanham as citações se referem às páginas da 37¦ edição (Francisco Alves, 1995).
8. A aproximação foi genericamente enfatizada por Gilberto Freyre e Franklyn de Oliveira. O primeiro vê nos "polissílabos pedantemente científicos" de Augusto dos Anjos "alguma coisa que faz pensar em Euclides da Cunha". Já Franklyn de Oliveira acha que "o estilo `científico' de Euclides encontra, em poesia, o seu correlato em Augusto dos Anjos. V. "Euclides da Cunha", por Franklyn de Oliveira, em "A Literatura no Brasil'' (direção de Afrânio Coutinho), vol. 3, tomo 1, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.
9. Guilherme de Almeida assinalou parcialmente esse traço estilístico, observando, a propósito de alguns dos seus exemplos: "Note-se um detalhe importante: -Todos esses versos citados são terminais de parágrafos: o que sugere, no autor, uma subconsciente vontade de versificador empenhado sempre em criar o valorizante `coup de théâtre' do fecho grandíloquo".
10. Quando utilizada, a seguir, a sigla "G.A." indica que o "verso" foi também registrado por Guilherme de Almeida.
11. Diz o poeta, nesse passo: "Muitos falam os chamados `novos' da velha coisa que é o `verso livre'. Mas tão poucos o sabem praticar! Ora, nesta prática do difícil verso livre -o verso que só existe enquanto a idéia existe, indo apenas até onde vai ela- nessa prática perigosa, Euclides é mestre. Se certas passagens d'`Os Sertões', em vez de compostas tipograficamente em forma de prosa, o fossem em forma de versos livres, muito pasmaria o compilador de uma antologia da moderna poesia brasileira, topando com poemas autênticos, muito mais legítimos que os de muitos catalogados modernistas. É tal trabalho tipográfico convidativa experiência a que não me sei furtar".


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas'' e "Despoesia'', entre outros.
 

 

 


 

24/01/2007