Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Antonio Carlos Osorio


 

O “petit chien” de Geneviéve

 

Nunca fui particularmente afeiçoado a cachorros, embora tenha possuído vários, excelentes amigos. Guardiães de casa (Dobermann Dog alemão), cãesinhos peludos, pequineses, vira-latas comoventes. Sempre me pareceu talvez e mais ainda hoje, que o cão tem o defeito de suas qualidades. Sua obediência torna-se servilismo, sua fidelidade escravidão, seu amor derramamento, sua humildade capachismo. Sempre preferi o orgulho e o mistério do gato.

Poucos deles deixaram marcas. Por certo, um pastor, alemão belíssimo que chamamos Jangal Kan (guardei o nome da compra, talvez corruptela de Jungle Khan, rei da floresta), que ficou muitos anos em casa, e prestou bons serviços. E duas ou três graciosas pequinesas, Topy e Poopy, em nomes repetidos, todas incorrigíveis amorosas que a cada ano deitavam ninhadas de pêlos vários.

Mas há um cãosinho francês que me deu uma “petite histoire” curiosa. É o que estou chamando o “petit chien” de Geneviève. A ele não cheguei a dar nome.

Em dezembro de 1951, estando a viver em Paris, fui com uma excursão de jovens para uma temporada natalina em Chamonix, a famosa estação de ski. Tinha o propósito de aprender a esquiar, propósito esse sobre o qual não devo me estender. Foi a primeira vez que vi neve, e os Alpes na sua lívida e orgulhosa altivez.

E na pousada, ou hotel, onde ficara o grupo, havia uma menininha de 3 ou 4 anos de nome Geneviève. Que, não sei porque, se afeiçoou a mim e eu também a ela. Sempre gostei de conversar com crianças, e do lado dela talvez porque fui o único a lhe dar atenção.

Num gesto surpreendente, e com o consentimento da mãe, na hora de partirmos no retorno a Paris, deu-me de presente um pequeno cachorrinho. Tão pequeno que cabia numa caixa de sapatos. Hesitei em aceitar. Que fazer com ele, morando em hoteisinhos do Quartier Latin.” Mas como recusar presente tão curioso e tão gentil?

Levei-o então na caixa à estação e ao trem, para a viagem noturna, lembro bem. Os jovens companheiros e companheiras do bulhento grupo (já fui jovem um dia, “helas!”) , mangando comigo e querendo brincar com o animalzinho assustado, na caixa de sapatos ao meu lado, ou quem sabe debaixo do banco.

Passa o “contrôleur” para ver e conferir as passagens. Vai perfurando com a velha maquininha uma por uma. E então alguém, acho que foi uma mocinha enxerida, indaga a ele e a todos em voz alta: “et le billet du petit chein?” Pergunta o zeloso burocrata se efetivamente alguém e quem transporta um cãosinho. Identifico-me, e ele me responde, já enérgico, que o animalzinho deve também pagar passagem. O transporte não era proibido, mas a SNCF queria receber a tarifa correspondente.

Recusei-me a pagá-la, também por achar que se tratava de uma gozação, tanto mais provável quanto com um jovem “du tiers monde”, um “brésilien”, categorias pelas quais os franceses mantêm, e até hoje, um discreto desprezo.

Vem aí o próprio “chef du train”, e reafirma a cobrança. Persisto na resistência, com o apoio brincalhão dos companheiros. Mas ele me pede passaporte, “carte d’étudiant”, endereço, etc. E em alguns papeluchos, escreve qualquer coisa.

Encerrado o episódio, chego com meu “petit chien” a Paris. Levo-o comigo até o pequeno apartamento onde morava, então ou pouco depois, na companhia do meu dileto amigo, ainda à época solteiro, o grande poeta Moacyr Felix de Oliveira. Na Rue du Luxembourg, próximo ao Theâtre l’Odéon, segunda sala da Comédie Française.

O cãozinho? Não tinha como cuidá-lo, e dele fiz presente algum tempo após a uma pálida namoradinha fugaz, que morava em Neuilly-sur-Seine, àquela altura bairro distante, hoje magnificamente integrado na sempre deslumbrante Paris.

Com o coração volátil dos moços, quase havia esquecido, um ou dois meses depois, o “petit chein”, a namorada magra e breve, e a menina Geneviève, que tanto me comovera com seu gesto generoso.

Mas eis que lá um dia chega um “facteur” com uma intimação de um juiz do “Tribunal de la Seine”. Com a cobrança da tarifa não paga, pela viagem Chamonix-Paris do cachorrinho, e indiciamento por “contravention pénale”, sujeita às penas de detenção e multa pela recusa ilegal ao pagamento.

Tudo com carimbos, selos, assinaturas, Armas da République Française, endereços, etc., nessa parafernália que corrói o sangue produtivo das nações. Não à toa os franceses inventaram a palavra “burocracia”, embora a origem dela seja prussiana. Os russos quase mataram sua grande nação nas mãos dos “aparachniks”.

Mas a verdade era que meu “petit chien” e eu havíamos posto em movimento o sistema judicial francês, tão notável sob outros aspectos, e na própria Paris.

Penitencio-me hoje de não haver resistido à ridícula cobrança do ínfimo valor, certamente menor do que o custo burocrático da movimentação do aparelho. Teria guardado, absolvido ou culpado, uma valiosa e rara documentação, instrutiva sobre os defeitos e virtudes do Estado Moderno.

Alguns dias após compareci ao Palais de Justice (imaginem!, perto da fantástica Sainte Chapelle de Saint Louis), paguei tarifa e multa e saí quitado.

Mas devo ao “petit chien” de minha amiguinha esquecida Geneviéve (hoje por certo avó) essa primeira e única experiência de réu na zelosa Justiça francesa.
 

 

 

 

 

13.07.2005